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Direito Administrativo nas lições de Marcelo Rebelo de Sousa

Anotações em Sala de Aula

Agenda 22/09/2018 às 11:46

O autor destes relatórios foi aluno do curso de doutoramento em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Trata-se de anotações de aulas ministradas pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa, atual Presidente da República de Portugal.

AULA DO DIA 27 DE OUTUBRO DE 2010.

 

Na aula do dia 27 de outubro de 2010, o professor Marcelo Rebelo iniciou sua exposição fazendo um paralelo entre a Revolução Francesa e o Big Bang, no seguinte aspecto: A revolução francesa significa, para os Estados democráti cos modernos, o estabelecimento de uma nova ordem, onde os ideais de liberdade sugerem uma menor intervenção do Estado no domínio econômico e social. É o que se chama de Estado minimalista. Neste tipo de Estado, há uma preocupação mínima com alguns tipo de intervenção estatal, mantendo-se apenas o serviço básico de segurança pública. As constituições deste período refletiam esta idéia da mínima intervenção, sendo denominadas de constituições liberais.

O constitucionalismo deste período lançava as bases de uma segurança jurídica pautada em constituições escritas, as quais tinham como objetivo precípuo listar e garantir as liberdades civis e políticas dos cidadãos. Neste período, surge na Europa a idéia da Administração Repressiva, a qual pretendia realizar a polícia de segurança, no sentido mais amplo do termo segurança.

Na evolução dos Estados europeus, notadamente Portugal, houve uma influência muito forte do direito francês, tido como o direito matriz em sede de direito administrativo. Os franceses idealizaram um tribunal administrativo, o qual tinha a função de estruturar e controlar as outras estruturas. Neste sentido, o tribunal administrativo seria o tribunal do próprio estado, que defendia mais os interesses dos Estados do que os interesses dos seus cidadãos, com exceção dos casos absolutamente injustos e arbitrários. O que fortalece esta idéia é sem dúvida o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. A principal fonte do direito administrativo francês, que mais tarde se consolidou como o direito administrativo europeu continental, eram as jurisprudências dos tribunais administrativos e não a lei. A lógica actual dos estados europeus é que a principal fonte do direito como um todo é a lei. No entanto, no estágio inicial do estabelecimento de um direito administrativo sistemático, os julgados emanados de tribunais administrativos levantaram as bases para o estabelecimento de uma principiologia específica do direito administrativo.

 

Na sequencia de sua exposição, o professor Marcelo Rebelo destacou que a Constituição norte-americana era uma constituição minimalista, pois seu principal objetivo é garantir a liberdade de contratar, liberdade de explorar determinadas atividades econômicas, ou seja, que as relações sociais e econômicas fluam com uma maior liberdade. Para a resolução de casos surgentes no seio das relações intersubjetivas, a lei teria uma maior destaque e importância do que a própria constituição, pois aquela não tem função regulatória, mas apenas de garantir um mínimo de direitos, tidos como fundamentais.

No momento em que os estados aderem à política da mínima intervenção nos domínios econômicos e sociais, aumenta-se a importância dos contratos administrativos, que têm como principais objetivos assegurar uma maior gama de serviços e atuações. Pela lógica da competição de mercado, as empresas privadas tiveram que desenvolver técnicas que permitissem uma melhor gestão de suas atuações e serviços. Isso colocou os estados em um patamar de inferioridade, no que tange à qualidade destas prestações de serviços públicos. Nesta ótica, alguns estados preferiram se afastar diretamente da realização destes serviços, passando a conceder, permitir ou autorizar tais tarefas a algumas empresas privadas, tudo isso em nome de uma maior eficiência administrativa.

O princípio da boa governança, denominado de princípio da eficiência no Brasil impõe que os Estados sejam mais diligentes em suas tarefas de garantir o bem-estar todos, até porque o que fundamenta a existência dos Estados é uma melhor gestão de diversos aspectos da vida, tais como saúde, educação, energia, transporte público, entre outros. À medida que aumentam a gama de serviços e atuações dos estados em face de uma sociedade cada vez mais complexa e globa, aumentam também a necessidade de celebração de contratos administrativos.

Na lição do professor Marcelo Rebelo, a Administração Pública no sistema europeu continental servia ao Estado e não aos administrados. Desta forma, percebe-se que existe no direito administrativo europeu continental uma dualidade de jurisdição, onde se tem uma jurisdição comum, exercida pelo Poder Judiciário e uma jurisdição administrativa, conferindo esta última, como já exposto anteriormente, privilégios para a Administração Pública.

Neste sentido vale lembrar que no Brasil não há esta dualidade de jurisdição, existindo apenas um tribunal comum para a solução de controvérsias entre a Administração Pública e os administrados. No entanto, no que tange aos contratos administrativos vale a regra que garante à Administração Pública poderes que em contratos comuns seriam considerados cláusulas abusivas. Tal situação ocorre com as chamadas cláusulas exorbitantes, ou seja, cláusulas que colocam a Administração Pública em patamar de superioridade em relação aos administrados, tendo como principal fundamento o interesse público.

Desta forma, lembrou o professor Marcelo Rebelo que na Administração executiva há privilégio para a Administração Pública, enquanto que na Administração judiciária não há privilégio algum. Vale destacar ainda que as decisões dos tribunais administrativos europeus fazem coisa julgada, enquanto que os tribunais administrativos no Brasil não esgotam o exercício da jurisdição, cabendo ao administrado se socorrer do Poder Judiciário.

Na sequencia de sua exposição, o professor Marcelo Rebelo destacou a importância de uma irreversível reforma administrativa, concebida esta de uma forma que o Estado fique fortalecido.

Neste sentido, é possível afirmar que os tribunais administrativos surgem em função de uma maior necessidade de especialização na realização dos fins estatais. Cabe então à jurisdição administrativista aplicar o direito administrativos.

Em outro momento, o professor Marcelo Rebelo salientou que o neoliberalismo, difundido no final do século XX não conseguiu recuperar o liberalismo do século XIX, ou seja, nos países da europa continental um mínimo de intervenção estatal mostra-se necessário, para que então se possa corrigir as distorções havidas em um cenário de globalização e de uma sociedade tida como uma sociedade de riscos.

Por fim, o professor Marcelo Rebelo destacou que a Revolução Francesa representa para o direito administrativo atual a radiação originária, da mesma forma que muitos elementos da física nuclear possuem um pouco da radiação originária liberada após a explosão do big bang. Em outras palavras, mesmo que o fenômeno do big bang tenha acontecido à bilhões de anos, parte de sua radiação originária pode ser percebida no universo. Em pensamento análogo, parte dos ideais e fundamentos da revolução francesa continuam a repercutir na europa continental e em outros países, mesmo que a idéias originais de liberdades políticas, civis e econômicas não estejam sendo exercido em sua plenitude.

 

AULA DO DIA 03 DE NOVEMBRO DE 2010.

 

Na aula do dia 03 de novembro de 2010, o professor Marcelo Rebelo iniciou sua exposição destacando a forma como nasceu o direito administrativo, no contexto de um Estado Pós-Liberal, também denominado Estado Social. Este novo formato de Estado surgiu logo após a 1ª grande guerra mundial, em um momento em que a Europa estava completamente arrasada. Neste momento, percebeu-se que um impulso estatal era necessário para que houvesse a reconstrução da sociedade. Houve, portanto, um  largamento dos fins do Estado, que antes se resumiam a garantia da segurança interna e externa (idéia liberal).

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A esta transformação no papel do Estado foram aditados dois novos fins, a saber: o fim da justiça distributiva, imbuído de um critério de justiça, implementador do princípio da igualdade e o fim do bem-estar econômico e social. Neste contexto, o Estado se reconhecia como garantidor não apenas da segurança pública e da ordem liberal, mas como um Estado com uma postura mais ativa, realizador de transformações materiais no contexto de uma sociedade tendencialmente desigual. Este novo tipo de Estado, consciente de seu papel integrador e desenvolvimentista passou a promover a justiça entre cidadãos, revelando-se um Estado intervencionista.

O Estado de então passou então a corrigir as desigualdades sociais e econômicas, uma vez que a idéia liberal de que o próprio mercado supriria tais lacunas nunca fora preenchida, ou seja, verificou-se uma inércia no funcionamento do mercado, no que tange ao seu papel integrador e desenvolvimentista da realidade social. Com este novo “formato” de Estado (social) passou-se a perceber a existência de salário mínimo e de inúmeras prestações sociais, revestidas sobre a forma de politicas públicas de saúde, habitação, educação.

O professor Marcelo Rebelo destacou que em um Estado Social há um peso maior da Constituição em relação às leis, ao contrário do que acontece com os Estados Liberais. As Constituições passam a funcionar como diretrizes mestras para um desenvolvimento Estatal, sendo também denominadas constituições programáticas, uma vez que possuem em seu bojo inúmeros programas de realização social e promoção de equidade em termos de distribuição de renda e de oportunidades. Em Estados Sociais, por seu turno, passou-se a dar maior importância ao controle de constitucionalidade de leis e actos normativos. Essa idéia de controle de constitucionalidade é típica de estados preocupados com a materialização direitos antes declarados em textos Magnos.

Verifica-se que no modelo americano, tipicamente liberal, ninguém poderia controlar o parlamento nem os tribunais, exceto eles mesmos. Esta é a idéia de uma restrita observância ao princípio da separação dos poderes. Ocorre que a idéia de controle passa a ser necessária em qualquer ordem, sob pena de se excluir um absoluto e se instituir três absolutos, o que não se revela interessante do ponto de vista democrático. Neste contexto de necessidade de controle de constitucionalidade de leis e actos normativos o professor Marcelo Rebelo destacou bem a contribuição de Hans Kelsen, tido com o mentor deste processo.

O direito, como fato social em transformação, necessita de mecanismos que o torne atual e forte, sob pena de cair em desuso até desaparecer ou tornar-se injusto aos olhos da sociedade transformada. Os Estados Liberais em regra possuem constituições flexíveis, estando apenas presente nos textos constitucionais aqueles traços essenciais garantidores de direitos individuais fundamentais. A regulação dos demais direitos e deveres fica a cargo das leis e principalmente dos costumes. Já as constituições dos Estados Sociais tendem a ser semi-rígidas, o que implica em dizer que são extensas e prolixas em matéria de regulação de direitos e deveres. Para manter-se forte, podem ser revisadas e atualizadas, é certo que por um processo mais dificultoso do que ocorre com as constituições flexíveis.

As constituições de estados sociais acolhem novos tipos de direitos fundamentais, tais como direitos e liberdades individuais e direitos econômicos e sociais. Acolhem também direitos de igualdade, salvaguardando idéias máximas de liberdade e igualdade de oportunidades. O professor Marcelo Rebelo destacou ainda que neste contexto de transformações a função de revisão constitucional vive um momento de complexidade crescente, até porque em um mundo cada vez mais globalizado, surgem ou afloram direitos antes inexistentes. Em razão desta complexidade vivenciada nos dias atuais problemas tais como a inflação legislativa ganham relevo. Surgem as leis-medidas, aquelas que são necessárias para regular cada novo aspecto da vida, em situações específicas.

Neste contexto em que estamos situados ampliam-se o número de tribunais, onde a intervenção político-constitucional passa a ser muito mais presente. Amplia-se também a função administrativa com a multiplicação dos entes públicos. Entre tais órgãos estão as agências, institutos públicos, empresas públicas e outros. O aparelho estatal sofistica-se, em nome das suas inúmeras atribuições. Com este quadro ampliado de órgãos, o direito administrativo cresceu em tamanho e importância. Este crescimento se deu inicialmente com o direito administrativo geral, e mais tarde, com o direito administrativo específico. No caso especial da França e de Portugal, houve a ampliação da atuação dos tribunais administrativos.

Estes tribunais administrativo têm uma importância muito grande, na medida em que são órgãos jurisdicionais que sempre atuarão nos casos em que o Estado for parte em uma relação processual. As decisões dos tribunais administrativos fazem coisa julgada material e formal.

O professor Marcelo Rebelo destacou ainda o papel de relevo que o princípio da legalidade tomou neste curso. Como decorrência de sua aplicação verifica-se também os subprincípios da prefrência da lei e o da reserva da lei. Com base neste princípio, a Administração Pública pode, com base em uma lei anterior, ordenar vários aspectos da vida cotidiana. A lei seria, neste contexto, o fundamento legítimo para a intervenção do Estado no domínio privado. No caso europeu, verifica-se a preferência de bloco de legalidade, composto pela Constituição e de normas do direito europeu, destacando entre estas normas as leis parlamentares, os costumes internacionais e os costumes internos.

A partir dos anos 1960 e 1970 passa a haver uma reserva de lei para qualquer atividade administrativa. Neste contexto vale a regra que reza que o Estado só pode fazer aquilo que está previamente previsto em lei (legalidade restrita). A lei, neste caso, condiona a atividade administrativa. Compete à lei formular políticas públicas que venha a ser implementadas pela ação do Estado. A Administração não profere comandos de primeiro grau (constituição) nem de segundo grau (lei), mas apenas de terceiro grau.

Neste diapasão, pode-se afirmar que no Estado Social passa-se a se olhar para o direito dos administrados, ou seja, passa-se a proteger os administrados. No Estado Liberal não havia privilégio em favor do Estado, pois o mesmo era minimalista, sendo chamado a atuar apenas quando se clamava pela segurança pública e pela ordem. No final do século XIX, com o surgimento do Estado Social, passou a figurar um novo tipo de contrato, onde o Estado era parte. Surgiam os primeiros contratos públicos, em que havia uma prevalência do interesse estatal sobre o particular. Por este motivo estes contratos não eram paritários.

Na sequência de sua exposição, o professor Marcelo Rebelo destacou ainda que no Estado Social multiplicaram-se os regulamentos e passou a haver conflitos de aplicabilidade entre leis e regulamentos. Estes regulamentos, primeiramente tinham a características de meros complementadores de leis inespecíficas. Seu papel era tipicamente de execução, ou seja, tinha por objetivo auxiliar a lei em seu papel disciplinador, permitindo a sua execução. Em outro momento, ganhou importância  os denominados regulamentos autônomos. Estes possuem certa autonomia para disciplinar, ele próprio, determinadas situações do cotidiano Estatal. Sua importância ganha relevo na medida em que através destas normas é possível realizar prestações ou atuações estatais com maior agilidade, sem depender dos incansáveis e demorados debates no parlamento.

Neste contexto, multiplicam-se os tipos de contratos públicos, entre eles os contratos de concessão de obras públicas, os contratos de empreitada pública, entre outros. A fase inicial do Estado Social é caracterizada pela multiplicação dos atos administrativos. O Estado nesta fase produzia bens econômicos, fornece transporte público de passageiros e de mercadoria, opera o serviço postal, enfim, realiza diversas operações materiais. A primeira fase do Estado Social está situada entre a primeira e a segunda grande guerra mundial. No entanto, só no período pós segunda guerra mundial é que experimenta um crescimento acentuado. É na década de 1950 e 1960 que o Estado Social vivencia sua fase mais aguda. Recebe aqui a denominação de Estado Providência. Surgem em muitos países da europa tribunais administrativos. É nesta fase que multiplicam-se os já referidos contratos administrativos.

Com esta ampla gama de atuações, o Estado passou também a ser responsabilizado pelas suas ações. Surge então a responsabilização civil do Estado. Em momento anterior a esta fase o funcionário respondia por determinado ato causador de dano a terceiros em razão da atuação estatal. Agora quem responde é o próprio estado. Esta é uma forma mais sofisticada de entender a responsabilidade estatal. A responsabilidade subjetiva (do agente) ainda persiste, mas não afasta a responsabilidade do próprio Estado. Isto é ainda uma herança do Estado Liberal.

Vigora no Estado Social a responsabilidade objetiva do Estado, aquela em que o Estado responde, independentemente da necessidade de se provar a culpa. O professor Marcelo Rebelo recordou ainda que não se deve confundir processo com procedimento administrativo e que o processo administrativo gracioso também ocorre no Estado Social. O procedimento administrativo é um conjunto de três elementos: ato + regulamento + contrato. Um vício qualquer no procedimento gera a invalidade do ato.

 

AULA DO DIA 17 DE NOVEMBRO DE 2010.

 

Na aula do dia 17 de novembro de 2010, o professor Marcelo Rebelo iniciou sua exposição falando de um estágio posterior ao Estado Social denominado Estado pós-social prestacional. Para tanto, relembrou do Estado providência, que nas décadas de 1960 e 1970 do século XX estava preocupado em providenciar em suprir as necessidades coletivas, no que tange às lacunas e desequilíbrios resultantes do desenvolvimento liberal do século XIX. Este processo se fez sentir na Europa, na América do Sul, em alguns países da África e em alguns países asiáticos. Foi uma realidade particularmente forte na Europa. Este processo tinha por finalidade o alargamento dos fins do Estado (econômicos, culturais e sociais).

Nesta realidade, foram criadas políticas públicas, que se converteram em sistemas sociais públicos de educação, saúde, segurança social, habitação, ordenamento do território, em alguns casos no domínio cultural, no domónio da política dos solos. Houve um alargamento do Estado e da Administração Pública, em geral. Havia, como consequência deste processo, um crescimento das funções do Estado, podendo-se dizer o crescimento da função legislativa, da função administrativa.

Este estado providência, segundo o professor Marcelo Rebelo, implicou uma mobilização de recursos financeiros como nunca tinha acontecido, para cobrir a nova dimensão da Administração Pública. Implicou políticas fiscais muito progressivas, com taxação dos rendimentos mais elevados e criação de novos impostos, com objetivos redistributivos, atingindo taxas elevadíssimas em alguns países europeus, taxas superiores a 50% sobre os níveis de rendimento. Estas políticas fiscais geraram fortes reações e nos anos 1970 as reações começam a se intensificar, sobretudo das classes médias.

Diante destas mobilizações passaram a surgir Estado na europa partidos contra estatal, a exemplo de um partido da Dinamarca, chamado Partido do Progresso, cujo seu líder foi à televisão anunciar que não pagaria mais impostos e convidou os concidadãos a fazerem o mesmo, tendo um grande sucesso. O partido cresceu muito na Dinamarca, chegando a ser o segundo maior. Segundo o professor Marcelo Rebelo, este partido não tinha base ideológica, tendo como principal objetivo a rejeição à alta de impostos. Visava o desmantelamento do Estado Social. Terminou com a prisão deste líder, uma vez que não estava a pagar os impostos devidos e a não respeitar a decisão dos tribunais.

Na década de 1980 houve o aparecimento de idéias neoliberais, econômicas e sociais em rigor eram diferentes do liberalismo do século XIX, mas que tiveram dois expoentes importantes, um o americano, com política do presidente Ronald Reagan e na Europa a política personificada pela chanceler, a primeira ministra britânica, Margareth Tatcher. Esta política neoliberal se estendeu por um período longo, cerca de 20 anos, tendo como seu principal objetivo a redução do Estado Social e compressão dos fins do Estado. Na europa este fenômeno do Estado Providência tinha sido potenciado pelo fenômeno de integração europeia. Houve a formação, a partir dos anos 1950, de 3 comunidades européias (zonas de comércio livre, zona pró carvão e aço, a Euroátomo). Neste sentido, nas décadas seguintes de 1960 e 1970, passou-se a verificar o estabelecimento de políticas econômica comuns, tais como políticas agrícolas, política industrial, política de transportes, entre outras.

O Estado Social teve uma expressão comunitária, multiplicando-se as funções do Estado. A reação ideológica e fiscal, como tratado em linhas passadas, veio nos anos 1980, quando o eleitorado passou a punir aqueles políticos e partidos que defendiam a alta de impostos para o alargamento dos fins do Estado. Houve então uma limitação de receitas fiscais e um endividamento de vários estados. Pode-se dizer em síntese que isto tudo significou a colocação de limites financeiros ao desenvolvimento do Estado Social.

Este momento de transformação vivenciado entre as décadas de 1970 e 1980 faz com que muitos autores deixem de falar em Estado Social para falar de Estado Pós-Social. O professor Marcelo Rebelo prefere chamar de Estado Social Pós-Providência, pois segundo ele, em rigor o estado contunuou a ser social. Apesar das idéias liberais, estas idéias não encontraram na Europa o mesmo solo fértil que encontrou na América e na Inglaterra. No entanto, trata-se de um Estado Social que recua em seus fins e recua nos meios em relação ao estado providência. O Estado reduz as prestações sociais, mantê-as, mas reduz. Assume uma dupla função: criador de infra-estrutura e regula a atividade dos privados e por isso alguns autores falam de um Estado Regulador e infra-estrutural.

O Estado regulador não deixar de ter a administração agressiva ou repressiva, não deixa de ter a administração prestacional. Mantém a atividade prestacional, mas reduz o seu peso na atividade administrativa e evita uma nova dimensão de administração reguladora e infra-estrutural. O estado que nasce nos anos 1980 e que dura até os dias atuais é um estado que tem 3 dimensões, estado enquanto Administração Pública: administração agressiva ou repressiva na disciplina dos direitos pessoais e de participação política dos cidadãos, o estado prestacional ou administração prestacional e a administração infra-estrutural e reguladora. Estas dimensões estão entre si ligadas. O mesmo acto pode ter a tripla dimensão. Um plano de urbanismo tem uma dimensão reguladora, na definição do uso dos espaços no ordenamento do território, mas pode ter uma dimensão prestacional se prever subvenções ou facilidades fiscais como estímulo a utilização ou a afetação de certa espaços e tem uma dimensão agressiva ou repressiva, sancionatória na disciplina do comportamento dos particulares. Passa a haver atos com uma tripla dimensão.

Por outro lado, a Administração Pública que tinha crescido no Estado Providência, ao lado do Estado tinha nascido os serviços públicos personalizados. Depois os estabelecimentos públicos são no fundo serviços do estado dotados de personalidade que efetuam prestações individualizadas, na saúde, na educação, nos transportes e nas tarefas mais diversas, sem caráter lucrativo. Depois as empresas públicas, com caráter lucrativo e em alguns casos concorrencial com empresas privadas, as fundações públicas, institutos públicos, vão crescendo a partir dos anos 1950, 1960 e 1970. Ao mesmo tempo formam-se as administrações autônomas, para além do poder local ou do poder regional e na fase que corresponde a transição do estado providência para o estado pós-providência encontra-se o fenômeno da privatização das atividades públicas com a compressão de empresas públicas em empresas privadas de capitais públicos ou mistos ou de capital público minoritário.

Nesta fase de transformação, serviços públicos tipicamente estatais passam a ser concedidos aos privados, o que ser efetiva através dos contratos públicos. Nesta fase multiplicam-se os contratos públicos, entre eles contratos de empreitadas, contratos de concessão de obras públicas, contratos de provimento, contratos de prestação de serviços, contratos de arrendamento e de aluguer, contratos de subsídios ou de subvenções, contratos de urbanismo (que passam a intervir no ordenamento do território e a exigir condutas ambientalmente corretas). Segundo professor Marcelo Rebelo passa a haver neste momento um debate sobre a razão de ser dos contratos administrativos ou sobre a necessidade de um código para os contratos públicos. O Professor destacou ainda que os regulamentos (autônomos e de execução) diminuem no Estado Pós-Providência.

O professor lembra o trabalho desenvolvido por Maria João Estorninho: Requião pelo contrato administrativo, que desperta a curiosidade sobre algumas questões, entre as quais: faz sentido falar em contratos administrativos no Estado Regulador (Pós-Providência)? Por onde passa a fronteira entre contratos privados da Administração Pública? Estar-se-ia visando fugir do controlo do tribunal de contas com a celebração de contratos privados pela Administração? Estar-se-ia a realizar uma fuga para o direito privado?

No Estado Providência, praticamente todos os contratos do Estado eram contratos administrativos, ou seja, contratos com prevalência de privilégios para o Estado, regidos por princípios do direito administrativo. Os contratos surgem no direito privado, em razão do acordo de vontade entre particulares. Só que quando uma das partes é o próprio Estado surge a necessidade de flexibilizar a idéia de equilíbrio, justificando-se tal medida no interesse que deve prevalecer: o interesse da coletividade, o interesse público.

O professor Marcelo Rebelo entende que os contratos públicos, tanto no Estado Social como no Estado Social Pós-Prestacional são todos contratos administrativos (contratos da administração), embora com graus diversos de administrativização dos contratos. Aplicam-se aos contratos administrativos todos os princípios que regem o direito administrativo e a gestão pública como um todo. Os velhos contratos administrativos tem o grau máximo de disciplina do direito administrativo, quase tudo é direito administrativo.

Por fim, o professor Marcelo Rebelo destacou a existência de alguns sistemas diferenciados de regras para o direito administrativo. Um deles é o sistema romano germânico, outro é o sistema do common law, e ainda outro, misto entre os dois, o sistema canadiano. O maior representante da commom law é os Estados Unidos. Neste país nunca houve o Estado Social. Passou-se do Estado Liberal diretamente para um Estado Regulador. O professor destacou ainda que no contexto atual de estados Pós-Prestacionais ou Regulador infra-estrutural há uma relutância do Estado em aceitar a independência de atuação das agências reguladoras ou entes reguladores independentes. Estas agências não deveriam estar submetidas a nenhum poder, atuando com plena liberdade, movida apenas pela sua consciência de fiscal e normatizadora da atividade administrativa conferida aos particulares.

Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Informações sobre o texto

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