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O pluralismo jurídico em Angola e a privatização possessiva do Direito

Agenda 25/09/2018 às 01:01

Ao contrário de muitos países, a realidade angolana sempre mostrou existirem outros sistemas jurídicos que convivem, para o bem e para o mal, com o direito estadual positivo.

I. INTRODUÇÃO

Em Angola é comum ouvir-se dizer que é um país especial. Sob as mais variadas razões, desde o aumento da produção de petróleo à conquista de um campeonato de basketball, exulta-se o conjunto de potencialidades que se julgam poder levar o país, no futuro, à patamares importantes no contexto das nações.

Sendo verdade que essas potencialidades existem, é igualmente verdade que perdura um conjunto de factores menos bons, que, porque descurados, tendem a estorvar o alcance das realizações e metas auguradas. Sem dúvida, dentre estes factores menos bons estão a exclusão e as más condições sociais a que está votada grande parte da população angolana.

Esta introdução, quiçá politizada, serve somente de chamariz, desde logo, para um um dos caminhos pelos quais se pode desenvolver, em Angola, o pluralismo jurídico, que, entretanto, a nosso ver, há muito existe.

Lato sensu, o pluralismo jurídico pode ser percebido como a situação em que “no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica[1].

No caso de Angola, o pluralismo jurídico liga-se à sua história de definição ou constituição territorial, à sua história colonial e aos vários elementos que lhe são próprios. Angola tem a particularidade de não se tratar de um país nascido, se assim podemos dizer, de limitações territoriais ancestrais e étnico-culturais “naturais”. Pretende-se com isso dizer, melhor especificando, que Angola, enquanto país, não é o resultado de um território natural e historicamente delimitado, relativamente ao qual, ao longo dos tempos, determinado povo exerceu um poder soberano. Pelo contrário, Angola é uma construção, um resultado sócio-político da aglutinação colonizadora de vários territórios e povos da região austral de África, cada um com o seu modus vivendi, com os seus próprios valores culturais e éticos, com as suas próprias leis.

Foi sobretudo com a realização da conferência de Berlim, entre 1884 e 1885, e com a corrida que a ela se seguiu para ocupação efectiva de territórios africanos pelas potências colonizadoras europeias, que Angola tornou-se territorialmente o país que é hoje, embora se saiba que apenas nas primeiras décadas do século XX ficaram demarcadas definitivamente as suas actuais fronteiras.

II. O CONTEXTO ANGOLANO DE PLURALISMO JURÍDICO

A história de Angola é marcada, desde a colonização – cujo marco inicial foi a chegada do navegador português Diogo Cão, no século XV, à foz do Rio Zaire – até aos dias de hoje pela existência de um mosaico jurídico plural, coexistindo, lado a lado, um sistema de direito positivo, de fonte estadual, e vários sistemas de direito comunitário de cariz e fonte tradicional, vigentes em determinados grupos específicos de pessoas, que por referência a critérios étnicos e regionais funcionam alternativamente como instâncias de resolução de conflitos e de regulação social. Em Angola é um caso paradigmático da valia relativa da concepção monista de que a ordenação do Estado, entendida em termos absolutos, é a maior expressão da normatividade jurídica.

Face à realidade histórica de África e de Angola, em particular, fortemente marcada pelo processo de colonização, mostra-se-nos oportuna e necessária uma breve abordagem o sobre o pluralismo em Angola no período da colonização portuguesa, caracterizada pela coexistência de normas positivas de fonte estadual portuguesa e de normas de direito consuetudinário, aplicável aos autóctones.

A administração colonial portuguesa não fez questão de unificar o sistema geral de justiça vigente em Angola. Constituiu-se-lhe óbice, a priori, a dimensão do território colonizado, a qual se aliou a falta de meios humanos e materiais, não permitindo que a administração colonial tivesse chegado a todas as regiões do imenso território africano. Por assim ser, tornou-se conveniente que as regiões fora da efectiva e imediata administração do Estado Português continuassem a ser administradas tal como tinham sido até aí. Foi este o contexto que propiciou às entidades ou autoridades tradicionais locais o contínuo exercício da sua ampla autoridade em muitos domínios, porém, no interesse da administração colonial.

No século XX, mais concretamente em 1920, foi introduzido formalmente em Angola o «regime do indigenato», pelo qual os residentes de Angola foram divididos em cidadãos e indígenas (os autóctones), correspondendo essa divisão à existência e aplicação de estatutos jurídicos distintos, ligados a sistemas jurídicos e a justiças – aqui tomadas como critério de decisão – igualmente distintas. Com isso, desde a implementação em Angola do «regime do indigenato» passou formalmente a existir um direito e um sistema de justiça positivado aplicáveis aos colonos – modelo esse similar ao existente em Portugal – e um direito costumeiro (integrado por vários “direitos” locais de cariz étnico) aplicável aos indígenas, administrado pelas autoridades tradicionais, no interesse dos colonizadores.

Além dos colonos e dos indígenas, passaram a existir também os assimilados, que constituíam um conjunto restrito de indígenas que, em razão de preencherem determinados requisitos discricionariamente fixados pelas autoridades coloniais (como por exemplo falar bem o português e não falar as línguas nativas em público, não viver no musseque, ter um determinado nível de escolaridade ou um certo emprego, etc), sendo de um estatuto social inferior, eram mais benquistos, gozando de outra consideração das autoridades. Aos assimilados, por exemplo, era permitido o acesso a determinados espaços e permitido o gozo de determinados direitos vedados aos indígenas (O indígena estava sujeito a regras jurídicas diferentes do cidadão português. O regime salarial, a obrigação ou dispensa do «contrato» compulsivo, o regime de impostos, a assistência médica, o serviço militar, a posse de terras, a escola dos filhos, a carta de condução, etc)[2].

Alcançada a independência de Angola, a 11 de Novembro de 1975, mudou o espectro político e administrativo, mantendo-se, apesar disso, a estrutura pluralista herdada do período colonial.

Dado o facto de o processo de independência não ter sido pacífico, a guerra que a partir de 1961 irrompeu pelo território e que teve o cariz de luta de libertação, transformou-se, logo após à independência – senão mesmo antes disso! – e até Abril de 2002, numa guerra civil.

Os efeitos da guerra civil pós-independência em Angola desestruturam mais ainda, ou quase totalmente, a administração do Estado, tornando-a, em muitos casos, desconhecida pelas populações das zonas mais recônditas. Tal circunstância não apenas manteve, como reforçou as formas alternativas de administração da justiça a nível local. Houve um momento particularmente crítico da história de Angola em que apesar de existir um Estado internacionalmente reconhecido, o país estava dividido em dois, com parte do território, praticamente metade, sob o controlo de forças militares não governamentais e sob a administração efectiva das autoridades tradicionais.

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As autoridades tradicionais, no período de guerra civil, colmataram a vacância “deixada” pela administração do Estado, tornando-se responsáveis, dentre outros aspectos, pela administração da justiça e pela realização do direito. E a questão que se poderão colocar é: de que justiça? De que direito?

A população de Angola, devido sobretudo ao passado colonial, é constituída maioritariamente por pessoas com um baixo grau de escolaridade ou analfabetas, havendo um grande desconhecimento sobre a justiça e o direito estadual positivado. As comunidades das zonas fora do controlo do Estado regiam-se e ainda se regem, em alguns casos, pelos usos e costumes locais, que foram sendo transmitidos geracionalmente.

O direito consuetudinário assumiu-se assim como critério de ordenação social, tão válido quanto o emanado pelas autoridades estaduais. Não estamos aqui a falar de zonas ou territórios de extensões mínimas. O direito consuetudinário chegou a ser plenamente válido e de cumprimento obrigatório em regiões com dimensão superior a países como Portugal, por exemplo, e com uma densidade populacional considerável. Na região Leste/Sudeste de Angola, verbi gratia, temos províncias com municípios recônditos cuja extensão é comparável e/ou superior a muitos países da Europa e não só.

Pela importância tida ao longo da história de Angola (para o bem e para o mal, diga-se!), o Estado Angolano tem reconhecido o papel e a «importância» das autoridades tradicionais, reservando-lhes, de alguma forma, um tratamento diferenciado. Por isso, além do direito ao uso de vestes próprias, às autoridades tradicionais é reservado o direito a um salário pago pelo Estado.

Há que dizer, contudo, que mesmo se reconhecendo o contributo que ao longo dos anos tem dado à administração do Estado, evitando que, face à ausência do Estado, questões de cariz jurídico-judicial fiquem sem composição, o direito consuetudinário aplicado em Angola também apresenta traços menos positivos e não conformes aos valores civilizacionais que hoje os sistemas jurídicos estaduais, genericamente, e o Estado Angolano, no caso, procuram estabelecer e preservar[3]. Não segredo para ninguém, a título exemplificativo, que os sistemas tradicionais africanos, em regra, tratam discriminatoriamente a mulher, subalternizando-a ao homem. Outrossim, o direito à vida e/ou à integridade física não tem a mesma protecção oferecida pelos ordenamentos estaduais positivos. Há ainda outra particularidade muito comum aos sistemas tradicionais de justiça africanos, que é a de se debruçarem ou tratarem de questões sobre o feitiço.

O ordenamento jurídico estadual angolano, como dito, reconhece o papel das autoridades tradicionais. Porém, nos quadros do direito geral, apenas as regras consuetudinárias secundum legem e praeter legem (entenda-se, a lei positiva) têm valia reconhecida. As práticas “contra legem”, de contrário, além de não reconhecidas, são passíveis de sanções, inclusive criminais.

Sucedeu – e ainda sucede, embora em menor escala – que dada a inexistência ou uma menor presença do Estado lá onde se situam alguns “quimbos”[4] ou comunidades rurais nos quais o direito consuetudinário impera, não havia o olho crítico e a mão pesada e sancionadora do Estado que permitissem, digamos, separar o trigo do joio e assim se evitarem “conflitos jurídicos desnecessários[5]. Isso permitiu o enraizamento, o desenvolvimento e expansão social de práticas costumeiras repudiantes e a sedimentação de princípios e normas de justiça tradicional não apenas não conformes, mas, sobretudo, ofensivas aos mais elementares postulados sustentadores do direito positivo vigente em Angola. E é marcante, em tudo isso, que ao se deslocarem das comunidades ou regiões a que originalmente pertencem, muitos dos seus membros transportam estas práticas e preceitos próprios dos sistemas de justiça consuetudinária que conhecem, procurando aplicá-los em contextos sociais diferentes, assim se constituindo como verdadeiras pedras de escândalo, foco de conflitos ou forçando, perante à passividade do Estado e dos demais cidadãos, que determinadas situações sejam solucionadas em termos totalmente disformes aos aceites nestes espaços heterogêneos.

Vejamos dois casos reais que são paradigma do que ora se diz:

O primeiro destes, ligado a questões de feitiçaria, tem que ver com uma situação que se deu entre Junho e Setembro de 2002, estando nela envolvido o então governador da província do Cuando-Cubango, que se situa no sudeste de Angola. Segundo informação veiculada nos mais variados órgãos da comunicação social angolana (rádios, televisão, jornais, etc), sucedeu que a determinado momento certos camponeses começaram a queixar-se da não produtividade das suas lavras (campos de cultivo) e que, além disso, de noite, em determinadas lavras vizinhas, viam pessoas já falecidas a capinar ou lavrar. No entendimento destas pessoas era preciso resolver o caso e, naquelas circunstâncias, os responsáveis pela sua desgraça eram, sem margem para dúvidas, os donos das lavras onde de noite os “cazumbis” trabalhavam.

Os camponeses queixosos levaram o caso à apreciação das autoridades tradicionais (sobas, regedores e seculos da região), que o fizeram chegar ao conhecimento do governador da província. Cremos que por estar enraizado das mesmas concepções e crenças na justiça tradicional, o governador da província ao invés de aconselhar as pessoas e os camponeses que se sentiam lesados a procurarem os meios legais de resolução do problema ou a procurarem ajuda mais técnica para a questão da fraca produtividade das suas terras, preferiu, de acordo com a «cultura da terra», chamar os mais velhos locais, conhecedores e feitores da justiça tradicional, justiça essa que é pensada e materializada segundo padrões subjectivos da realidade cultural, como de resto é a natureza ontológica do direito consuetudinário[6].

Segundo os administradores da justiça tradicional local, os acusados detentores das lavras onde os cazumbis ou entes do outro mundo trabalhavam de noite teriam de ser mortos e lançados posteriormente a um rio infestado de crocodilos. Assim foi feito! Com a anuência do governador provincial, o mais alto representante da administração do Estado Angolano na província, vários camponeses foram mortos e lançados ao rio de crocodilos. Este episódio verídico ficou conhecido como caso “Kamutukuleni[7], ditando posteriormente a prisão do governador provincial e dos demais envolvidos.

Outro exemplo que é sintomático das divergências inconciliáveis entre normas integrantes de sistemas diferentes do mosaico jurídico plural angolano, tem que ver com o tratamento que é dado às questões sucessórias. Passamos a citar aqui um caso real, do nosso conhecimento, e que se deu em Agosto de 2007, altura em que faleceu em Luanda, onde residia, o Sr. Fernando, angolano, natural da província angolana do Uíge. O Sr. Orlando deixou 5 filhos biológicos. Quatro deles foram perfilhados. Não o foi o mais velho destes quatro, embora socialmente todas as pessoas soubessem ser também filho do senhor e como tal tratado. De igual forma, os filhos perfilhados e as famílias souberam desde sempre que o Sr. Fernando tinha aquele filho que não chegara a ser perfilhado.

O Sr. Orlando deixou alguns bens. Deixou três viaturas, uma casa registada em seu nome, que construíra para si e para a sua família (mulher e filhos), mas na qual nunca chegara a habitar porque teve de cedê-la ao seu pai e irmãos quando estes vieram para Luanda fugidos da guerra. Deixou também um pequeno estabelecimento comercial, um pequeno terreno na periferia da cidade e era arrendatário de uma casa em que ainda vivem a sua esposa e três dos seus filhos.

Pelo facto do Sr. Orlando ser bakongo, uma etnia do norte de Angola, após a sua morte, foi resolvido pela sua família, mas sem terem sido ouvidos a mulher e os filhos, que deveriam ser obedecidos os preceitos da lei tradicional, ou seja, as normas e rituais que os bakongos obedecem em situações de óbito. E assim foi feito!

Da aplicação da lei costumeira à questão da partilha dos bens da herança do Sr. Orlando decidiu-se a divisão dos bens nos seguintes termos: uma das viaturas que se encontrava avariada seria entregue ao filho mais velho, não perfilhado; as outras duas viaturas seriam vendidas com o fim de se pagarem algumas dívidas deixadas pelo de cujus; a moradia construída foi entregue ao pai do Sr. Orlando, pois, segundo foi argumentado, este precisava de um sítio para viver com a sua enorme família e se o filho o havia aí deixado significava que os seus netos não poderiam de lá o tirar; «os filhos da sua esposa ficariam com a casa arrendada»; o estabelecimento comercial ficaria para os irmãos do Sr. Orlando que se encontravam no Congo, país fronteiriço à Angola; o terreno da periferia ficaria com a última filha do Sr. Orlando, fruto de uma relação extraconjugal.

Assim foram partilhados os bens do Sr. Orlando, por aplicação do direito consuetudinário que vigora entre os bakongos. Neste contexto, a esposa foi totalmente excluída e os filhos nascidos da sua relação marital tiveram apenas “direito” à casa onde viviam, mas que não pertencia ao seu pai, pois era arrendada. Assim, quer o filho não perfilhado (que pela lei positiva angolana não teria direito a nada), quer a filha mais nova, resultante de uma relação extraconjugal, quer o pai e quer ainda os irmãos do de cujus tiveram mais direitos que a família nuclear, ou seja, que a esposa e os filhos com quem aquele viveu em comunhão de cama, mesa e habitação durante 21 anos.

Mostram, tanto o primeiro como no segundo caso relatados, ser manifesto que a aplicação do direito consuetudinário conduziu a resultados tidos pela ordem jurídica estadual positiva como intoleráveis, atentatórios aos mais elementares postulados do Estado de Direito que Angola é, sendo, portanto, demandantes da pronta intervenção da justiça estadual positiva, assim se permitindo a correção de tais situações. Contudo, particularmente no domínio dos direitos da família e das sucessões, em Angola o direito consuetudinário tem vingado e, em muitos casos, absurdamente contribuído para o crescimento de injustiças que se perpetuam.

III. A PRIVATIZAÇÃO POSSESSIVA DO DIREITO

Até aqui foi feita uma abordagem que permitiu deixar patente o contexto do pluralismo em Angola. Apesar de serem facilmente perceptíveis as razões deste mosaico jurídico plural, importa, seguidamente, referirmo-nos a outro fenómeno apto a criar ou a estender a multiplicidade de sistemas de direito em Angola existentes. Este fenómeno liga-se à exclusão social, que nos termos e com base no adiante exposto veste melhor o fardo da segregação.

Se é verdade que todas as sociedades se debatem com o problema das desigualdades sociais, existindo vários escalões para o designado bem-estar social, há sociedades em que, claramente, se promove esta diferenciação para termos condenáveis. Há como que uma alavanca que leva poucos ao cume da montanha e muitos para os confins do inferno.

Nota-se em Angola e particularmente em Luanda (embora tenhamos ouvido sobre práticas similares noutras províncias), que desde algum tempo atrás instalou-se a caça à terra. Cada pedaço de terra, vulgarmente designado «terreno», é disputado a ferro e fogo. Os motivos são vários, mas destacam-se dois: falta de habitação e especulação imobiliária[8].

Durante o período de guerra, sobretudo, verificou-se um êxodo massivo de população para a capital do país e, assim, ao longo dos anos, todos os espaços existentes na periferia e no casco urbano da cidade foram ocupados para fins habitacionais. Com isso, atendendo a condição social da maioria da população, no geral, a cidade “mussecalizou-se”[9]. Ou seja, a população carente construiu, à sua maneira, em todos os cantos da cidade. Nem bairros ditos nobres, como Alvalade, foram poupados.

Hoje, num contexto diferente, não apenas se procura dar uma melhor imagem à cidade, como há quem se aproveite da conjuntura existente para enriquecer no negócio imobiliário. Infelizmente, não há espaços livres em Luanda. Daí o recurso à força para se obrigar pessoas que ocupam determinados espaços a deixarem-nos “aptos” ao florescimento dos edifícios modernos e vidrados, onde um apartamento com cem metros quadrados pode custar mais de um milhão de dólares.

Com esta prática milhares de pessoas, senão milhões, que são retiradas compulsivamente da cidade são colocadas em zonas que distam, algumas, há 40 kilómetros da cidade e sem as mínimas condições de habitabilidade. No que nos interessa, importa dizer que na maior parte destas zonas de degredo do século XXI, as pessoas são entregues à sua própria sorte. Além das zonas distantes não serem ou serem mal urbanizadas e faltar o elementar, nomeadamente, água, luz e saneamento básico, faltam também os cuidados de saúde, a escola, o posto da polícia, o tribunal e outros serviços que o estado deve garantir. Falta, inclusive, a possibilidade de, em caso de necessidade, o indivíduo poder clamar pelo socorro das autoridades, salvaguardando a si, aos seus bens e até preservando interesses públicos.

Não estranha, pois, que nestas zonas cada um viva à sua maneira. E em função de vários elementos (as circunstâncias em que os as pessoas são “atiradas” para estas zonas de degredo, a miséria e muitas vezes a perda do pouco que tinham, a falta de alternativas, o estado de abandono em que se sentem, etc.), nestes polos de segregação a interacção comunitária tende a ser difícil, impossibilitando assim a criação de mecanismos comunitários não oficiais de ordenação e controlo social. Se a isso se juntar a ausência declarada do Estado, pensamos que estão criadas todas as condições de existência da privatização possessiva do direito[10], situação em que cada indivíduo se apropria da criação e aplicação das normas disciplinadoras das condutas humanas socialmente. Ou seja, os indivíduos vivem uns próximos aos outros não em consonância com normas de vivência social e critérios de justiça comuns, mas sim de acordo com os padrões de conduta que para si definem autonomamente e que, a seu entender, prevalecem sobre qualquer outro indivíduo. Isto não significa, necessariamente, conflituosidade. Há tolerância entre os vários poderes individuais soberanos, centros de juridicidade, e só quando a realização de cada um desses poderes é obstaculizada por um outro poder é que por meio da violência, e sem intervenção de mediadores, se compõe o litígio.

É, pois, este um fenómeno social que se sedimenta hoje na realidade social angolana, que se enquadrando neste contexto do pluralismo jurídico, apresenta, no entanto, esta vertente social disforme aos valores sócio-jurídicos de um Estado civilizado e de direito.

IV. CONCLUSÕES

Angola é, inegavelmente, um país em que coexistem, com grande autonomia vários sistemas realizadores do direito e da justiça. Embora a Lei Constitucional (art. 2º) em vigor estabeleça que “A República de Angola é um Estado democrático de Direito”, exista um grande acervo de normas positivadas reguladoras dos múltiplos aspectos da vida social e o Estado exerça a sua soberania em todo o território nacional, Angola não é um Estado monista. A história do povo angolano, as suas inúmeras raízes culturais e outras condições específicas ditaram a existência de um sistema jurídico positivo que corre paralelamente com variados sistemas de justiça de fonte consuetudinária. Para além destes, as desigualdades sociais crescentes, a exclusão e abandono a que estão votadas muitas pessoas, que vivem com completa ausência do Estado, das suas instituições e das suas normas regulamentadoras, tem permitido o surgimento do fenómeno, que se pode designar por privatização possessiva do direito.

BIBLIOGRAFIA

  1. MANUELA PAZOS LORENZO, Do monismo estatal ao pluralismo, in www.direitonet.com;
  2. SILVINA RAMIREZ, Diversidad cultural y pluralismo jurídico: administración de justiça indígena, in www.juragentium.unifi.it;
  3. HONÓRIO MEDEIROS, A respeito do pluralismo jurídico, in www.universia.com.br;
  4. SARA ARAÚJO, Acesso à justiça e pluralismo jurídico em Moçambique. Resolução de litígios no Bairro Jorge Dimitrov, in http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/62.pdf;
  5. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, in www.scholar.google.pt;
  6. MARIA DA CONCEIÇÃO NETO, Ideologias, contradições e mistificações da colonização de angola no século xx, in http://www.lusotopie.sciencespobordeaux. fr.

[1] Assim BOAVENTURA SOUSA SANTOS, Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, p. 1, texto publicado em http://www.scholar.google.pt.

[2] Assim MARIA DA CONCEIÇÃO NETO, Ideologias, contradições e mistificações da colonização de Angola no século xx, in http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr.

[3] Sobre os benefícios ou vantagens apontadas vide SARA ARAÚJO, Acesso à justiça e pluralismo jurídico em Moçambique. Resolução de litígios no Bairro Jorge Dimitrov, p. 6, in http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/62.pdf.

[4] O mesmo que «aldeia».

[5] Entendendo-se estes como existentes naquelas situações em que determinada solução preconizada pela ordem jurídica consuetudinária colide e ofende não apenas as soluções (normas específicas), mas os valores da ordem jurídica positiva, sendo, por isso, punível a sua realização por aplicação em casos concretos. A este respeito vide ALBANO PEDRO, O egologismo cossiano versus positivismo kelseniano, in http://jukulomesso.blogspot.com.

[6] Parafraseando ALBANO PEDRO, texto citado.

[7] Expressão em língua Nganguela, língua local, que significa feitiço.

[8] Que no fundo não deixam de ser duas realidades que andam associadas.

[9] Usando uma expressão pouco ortodoxa, mas muito ilustrativa de Pepetela, escritor angolano, para referir-se à existência de uma cidade impregnada de bairros de latas ou de construção muito precária.

[10] Expressão subtilmente empregue por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, p. 11, in www.scholar.google.pt.

Sobre o autor
Heraclito Albino Pedro

Jurista há 16 anos, com trabalho em várias áreas do Direito.

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