1 INTRODUÇÃO
O princípio da insignificância é um instituto supralegal aplicado no direito penal brasileiro como excludente de tipicidade material, tendo seus requisitos elencados pelos tribunais superiores. O STF defende que a reincidência é fator que impede a excludente. Já o STJ assentou que isso não obsta a incidência do princípio se presentes os seus requisitos, salvo se se tratar de agente multireincidente, quando então a conclusão é a mesma da Suprema Corte.
No entanto, as decisões das Cortes Superiores não são uniformes, restando possível a incidência do instituto em vários delitos, analisando-se caso a caso.
Assim, tem-se que Juízos de primeira instância e os demais tribunais aplicam tal princípio sem convergência, na comparação de casos idênticos ou semelhantes.
Diante disso, o tema foi objeto de debate por parte da equipe da 8ª Promotoria de Justiça de Ponta Grossa no mês de setembro de 2018, o qual possibilitou a formação de interessantes apontamentos, os quais passam a ser brevemente expostos a seguir.
2 ANÁLISE JURÍDICA
2.1 Origem
O princípio da insignificância, também chamado de bagatela, surgiu no Direito Civil, derivado do brocardo “minimus non curat praetor”[1], cujo ramo jurídico não deveria se preocupar com assuntos irrelevantes, que não têm capacidade de lesar um bem jurídico[2].
Em 1964, houve sua importação para o Direito Penal pelo jurista alemão Claus Roxin, que o mencionou em sua obra “Política criminal e sistema jurídico-penal” (Zur kriminalpolitischen Fundierung des Strafrechtssystems). O autor concebeu que o fato punível exige conduta, tipicidade ofensiva, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade, levando-se em conta os princípios político-criminais na aplicação do Direito Penal, afirmando que “a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade a bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico”’[3], devendo-se excluir a tipicidade da conduta em caso de danos de pouca importância.
Assim, é necessário que as condutas tenham tipicidade, nos aspectos formal e material. O primeiro é o perfeito encaixe da conduta no tipo penal descrito; e o segundo é a relevância da conduta, a lesividade ao bem jurídico. Nas palavras de Nucci:
Na realidade, preenche-se o tipo formalmente, desde que todos os seus elementos estejam adequados a fatos da vida real. Ainda assim, nem sempre se fere o bem jurídico tutelado, por fatores variados. Por isso, o tipo formal é o tipo legal de crime, a mera descrição feita pelo legislador. O tipo material abrange, além dessa descrição legal, a capacidade de provocar danos inaceitáveis ao bem jurídico tutelado.[4]
Deveras, a insignificância de certa conduta não pode ser aferida apenas em relação à importância do bem atingido, mas também em relação ao grau de sua intensidade, que é valorada através da consideração global da ordem jurídica.[5]
Como afirma Zaffaroni, “a insignificância só pode surgir à luz da função geral que dá sentido à ordem normativa e, consequentemente, a norma em particular, e que nos indica que esses pressupostos estão excluídos de seu âmbito de proibição, o que resulta impossível se estabelecer à simples luz de sua consideração isolada”.[6]
O princípio da insignificância está diretamente ligado aos postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado. Com base neles, o Direito Penal deve tutelar os bens jurídicos relevantes e a intervenção penal deve ter o caráter fragmentário, protegendo apenas os mais importantes e em casos de lesões de maior gravidade.
Nucci advoga que “a ofensividade (ou lesividade) deve estar presente no contexto do tipo penal incriminador, para validá-lo, legitimá-lo, sob pena de se esgotar o Direito Penal em situações inócuas e sem propósito”.[7]
Como dito, a natureza jurídica do princípio da insignificância é de causa supralegal de exclusão da tipicidade, pois não está previsto na lei como umas das causas excludentes. Desse modo, não havendo tipicidade material, há de ser reconhecida a atipicidade da conduta. Nesse sentido:
O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas, primordialmente, em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, consagrando os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima. Indiscutível a sua relevância, na medida em que exclui da incidência da norma penal aquelas condutas cujo desvalor da ação e/ou do resultado (dependendo do tipo de injusto a ser considerado) impliquem uma ínfima afetação ao bem jurídico. A tentativa de subtrair seis frascos de xampu, seis frascos de condicionadores e três potes de creme para pentear, embora se amolde à definição jurídica do crime de furto tentado, não ultrapassa o exame da tipicidade material, mostrando-se desproporcional a imposição de pena privativa de liberdade, uma vez que a ofensividade da conduta se mostrou mínima; não houve nenhuma periculosidade social da ação; a reprovabilidade do comportamento foi de grau reduzidíssimo e a lesão ao bem jurídico se revelou inexpressiva.
(STJ: HC 89.357/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 11.03.2008, 5ª Turma).
De plano, muito embora falte amparo legal para a aplicação desse princípio, a insignificância é “avaliada” através do conhecimento direto e imediato da realidade social, com possibilidade de dimensionamento e de verificação entre o mal da conduta e a mal da pena.
Destarte, fica a cargo do intérprete, operador do direito, analisar a infração penal criada, afastando a tipicidade das condutas que atingem de forma mínima os bens jurídicos tutelados.[8]
Nessa questão, Nucci afirma que não se busca o consenso social acerca da insignificância, bastando que o magistrado a apure, sendo que avaliar a bagatela, como excludente de tipicidade, envolve alguns fatores que vão além do valor do bem em questão.[9]
Ademais, Cezar Roberto Bitencourt alerta que “a aplicação do princípio da insignificância não pode caracterizar invasão da função que o Poder Legislativo tem de selecionar os bens jurídicos que devem ser tutelados pelo Direito Penal”. Ou seja, o fato de determinada conduta constituir infração de menor potencial ofensivo não significa que deva ser aplicado o princípio da insignificância.[10]
Também, conforme Prado:
[...] a restrição típica decorrente da aplicação do princípio da insignificância não deve operar com total falta de critérios, ou derivar de interpretação meramente subjetiva do julgador, mas ao contrário há de ser resultado de uma análise acurada do caso em exame, com o emprego de um ou mais vetores – v. g., valoração sócio-econômica média existente em determinada sociedade – tidos como necessários à determinação do conteúdo da insignificância. Isso do modo mais coerente e equitativo possível, com intuito de afastar eventual lesão ao princípio da segurança jurídica.[11]
Importante destacar ainda, nas palavras de Cesare Beccaria[12], que “o legislador é o único agente capaz de estabelecer normas, tendo em vista que esse representava toda a sociedade, unida por um contrato social, onde somente estas leis, feitas seguindo determinada forma, possuem a prerrogativa de indicar as penas de cada um dos delitos”.
Portanto, em determinados casos, excepcionalmente aplica-se o postulado, sendo necessário um posicionamento mais consentâneo com os ditames da justiça, devendo o operador do direito observar o princípio da equidade na “letra fria da lei” para que com isso faça predominar o bom senso no caso concreto, evitando-se, assim, drásticas disparidades entre a sanção penal e o comportamento tido como criminoso.
2.2. Requisitos para aplicação
Apesar da incidência massiva do princípio em diversos casos encontrados na jurisprudência, não existe uma posição pacífica quanto ao assunto, pois seria compatível com vários delitos e admitido em inúmeras situações.
E diante dessa gama de possibilidades de aplicação, há o risco da indevida banalização do instituto, que o tornaria pernicioso ao direito penal, na medida em que a abertura argumentativa/hermenêutica pode criar uma panaceia excludente de fatos criminosos atentadores de bens jurídicos mais importantes/graves.
É isso que se evidencia com a presente análise.
Sabe-se que, segundo a jurisprudência, o princípio da insignificância pode ser aplicado às infrações penais de menor potencial ofensivo, nos crimes de médio potencial ofensivo, e, em alguns casos, também incide em crimes de elevado potencial ofensivo.[13]
Porém, ele não é admitido em crimes praticados com emprego de violência ou grave ameaça, já que suas consequências não podem ser consideradas insignificantes, ainda que o bem seja de valor econômico ínfimo.
Nesse sentido, um exemplo de aplicação da bagatela é o chamado furto famélico, hipótese de furto simples sem violência ou grave ameaça, na qual o agente subtrai algo para satisfazer uma necessidade urgente e relevante, como quando furta um pacote de pão ou caixas de leite para saciar a fome.
Outro requisito para a configuração do furto famélico, praticado em estado de necessidade, é a proporcionalidade e quantidade do produto subtraído além do exame das circunstâncias do caso, devendo estar o agente precisando do bem para sobreviver. Veja-se julgado nessa linha:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FURTO SIMPLES. BISCOITOS, LEITE, PÃES E BOLOS. CRIME FAMÉLICO. ÍNFIMO VALOR DOS BENS. AUSÊNCIA DE LESIVIDADE AO PATRIMÔNIO DAS VÍTIMAS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. PROVIMENTO DO RECURSO.
1. O princípio da insignificância em matéria penal deve ser aplicado excepcionalmente, nos casos em que, não obstante a conduta, a vítima não tenha sofrido prejuízo relevante em seu patrimônio, de maneira a não configurar ofensa expressiva ao bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora. Assim, para afastar a tipicidade pela aplicação do referido princípio, o desvalor do resultado ou o desvalor da ação, ou seja, a lesão ao bem jurídico ou a conduta do agente, devem ser ínfimos.
2. In casu, conquanto o presente recurso não tenha sido instruído com o laudo de avaliação das mercadorias, tem-se que o valor total dos bens furtados pelo recorrente - pacotes de biscoito, leite, pães e bolos -, além de ser ínfimo, não afetou de forma expressiva o patrimônio das vítimas, razão pela qual incide na espécie o princípio da insignificância, reconhecendo-se a inexistência do crime de furto pela exclusão da ilicitude. Precedentes desta Corte.
3. Recurso provido, em conformidade com o parecer ministerial, para conceder a liberdade ao recorrente, se por outro motivo não estiver preso, e trancar a ação penal por falta de justa causa.
(RHC 23.376/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 28/08/2008, DJe 20/10/2008)
Entretanto, como o referido princípio não está previsto na lei, a análise do caso concreto deve ser minuciosa, com obediência a requisitos mínimos para sua aferição. São eles: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente; (b) a ausência total de periculosidade social da ação; (c) o ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento; e (d) a inexpressividade da lesão jurídica.[14]
Faz-se necessário o exame das circunstâncias do fato e daquelas concernentes à pessoa do agente, não se aplicando a todos os casos.
Contudo, nota-se a discricionariedade e o ativismo judicial na aplicação da bagatela, quando casos iguais ou semelhantes não são tratados da mesma forma.
Exemplo disso são dois casos julgados pelo STF. No primeiro, o agente foi acusado de furtar água, causando um prejuízo de R$96,33, restando a tipicidade penal excluída pela incidência da insignificância[15]. No segundo caso, o agente furtou caixas de gomas de mascar, no valor de R$98,80, mas o valor não foi considerado ínfimo e nem a conduta foi tida como penalmente irrelevante[16].
Considera-se valor ínfimo, conforme entendimento do STJ, o correspondente a 10% do salário-mínimo vigente à época do fato[17].
Vale dizer, não é apenas o valor do bem lesionado que importa, mas também a falta da tipicidade material concretizada através dos requisitos de ordem objetiva considerados. Nessa esteira:
A verificação da lesividade mínima da conduta, apta a torná-la atípica, deve levar em consideração a importância do objeto material subtraído, a condição econômica do sujeito passivo, assim como as circunstâncias e o resultado do crime, a fim de se determinar, subjetivamente, se houve ou não relevante lesão ao bem jurídico tutelado. Hipótese em que o bem subtraído possui importância reduzida, devendo ser ressaltada a condição econômica do sujeito passivo, pessoa jurídica, que recuperou o bem furtado, inexistindo, portanto, percussão social ou econômica. Não obstante o valor da res furtiva não ser parâmetro único à aplicação do princípio da insignificância, as circunstâncias e o resultado do crime em questão demonstram a ausência de relevância penal da conduta, razão pela qual deve se considerar a hipótese de delito de bagatela.
(STJ: REsp 1.218.765/MG, rel. Min. Gilson Dipp, 5ª Turma, j. 01.03.2011).
Ademais, as condições da vítima podem influir na aplicação do princípio. Entende-se que a análise da extensão do dano causado ao ofendido é imprescindível, pois o valor sentimental do bem exclui a insignificância, ainda que o objeto do crime não apresente relevante aspecto econômico. Nessa esteira:
O pequeno valor da res furtiva não se traduz, automaticamente, na aplicação do princípio da insignificância. Além do valor monetário, deve-se conjugar as circunstâncias e o resultado do crime, tudo de modo a determinar se houve relevante lesão jurídica. Precedentes do STF. Tendo o fato criminoso ocorrido contra vítima analfabeta e de 68 anos de idade, que teve seu dinheiro sacado do bolso de sua calça, em via pública, em plena luz do dia, é inviável a afirmação do desinteresse estatal à sua repressão. Precedentes. O princípio da bagatela, ou do desinteresse penal, consectário do corolário da intervenção mínima, deve ser aplicado com parcimônia, restringindo-se apenas às condutas sem tipicidade penal, desinteressantes ao ordenamento positivo, o que não é o caso dos autos.
(STJ: REsp 835.553/RS, rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 20.03.2007).
Outrossim, vale mencionar que “o fato do bem ter sido restituído à vítima em nada altera referida conclusão de inaplicabilidade do instituto, pois, se assim fosse, o que imperaria no ordenamento jurídico seria a mais completa impunidade frente a um fato típico, antijurídico e culpável”[18].
Ainda, conforme indica Nucci, há três vetores que devem ser seguidos para a aplicação do princípio da insignificância:
1) consideração do valor do bem jurídico em termos concretos.
É preciso certificar-se do efetivo valor do bem em questão, sob o ponto de vista do agressor, da vítima e da sociedade. Há determinadas coisas, cujo valor é ínfimo sob qualquer perspectiva (ex.: um clipe subtraído de uma folha de papei não representa ofensa patrimonial relevante em universo algum). Outros bens têm relevo para a vítima, mas não para o agressor (ex.: uma peça de louça do banheiro de um barraco pode ser significativa para o ofendido, embora desprezível para o agressor). Neste caso, não se aplica o princípio da insignificância. Há bens de relativo valor para agressor e vítima, mas muito acima da média do poder aquisitivo da sociedade (ex: um anel de brilhantes pode ser de pouca monta para pessoas muito ricas, mas é coisa de imenso valor para a maioria da sociedade). Não se deve considerar a insignificância;
2) consideração da lesão ao bem jurídico em visão global.
A avaliação do bem necessita ser realizada em visão panorâmica e não concentrada, afinal, não pode haver excessiva quantidade de um produto, unitariamente considerado insignificante, pois o total da subtração é capaz de atingir valor elevado (ex.: subtrair de um supermercado várias mercadorias, em diversas ocasiões, pode figurar um crime de bagatela numa ótica individualizada da conduta, porém, visualizando-se o total dos bens, atinge-se valor relevante).
Além disso, deve-se considerar a pessoa do autor, pois o princípio da insignificância não pode representar um incentivo ao crime, nem tampouco constituir uma autêntica imunidade ao criminoso habitual. O réu reincidente, com vários antecedentes, mormente se forem considerados específicos, não pode receber o benefício da atipicidade por bagatela. Sena contraproducente e dissociado do fundamento da pena, que é a ressocialização do agente. A reiteração delituosa, especialmente dolosa, não pode contar com o beneplácito estatal;
3) consideração particular aos bens jurídicos imateriais de expressivo valor social.
Há diversos bens, penalmente tutelados, envolvendo o interesse geral da sociedade, de modo que não contêm um valor específico e determinado. O meio ambiente, por exemplo, não possui valor traduzido em moeda ou em riqueza material O mesmo se diga da moralidade administrativa ou do respeito aos mortos, dentre outros. Portanto, ao analisar o crime, torna-se essencial enquadrar o bem jurídico sob o prisma social merecido.[19]
De acordo com a doutrina citada, a reiteração delituosa impede a excludente de tipicidade.
Todavia, em certas ocasiões, o STJ[20] e turmas do STF[21] já decidiram em sentido contrário, afastando o óbice da reincidência.
Data vênia ao entendimento jurisprudencial, não há que se falar em reduzido grau de reprovabilidade do comportamento lesivo quando o agente é reincidente e tem habitualidade criminosa. Ilustrativamente, no sentido que adotamos:
A 1ª Turma indeferiu, em julgamento conjunto, habeas corpus nos quais se postulava trancamento de ação penal em virtude de alegada atipicidade material da conduta. Ademais, cassou-se a liminar anteriormente deferida em um deles (HC 110.932/RS). Tratava-se, no HC 109.183/RS, de condenado por furtar, com rompimento de obstáculo, bens avaliados em R$ 45,00, equivalente a 30% do salário mínimo vigente à época. No HC 110.932/RS, de acusado por, supostamente, subtrair, mediante concurso de pessoas, bicicleta estimada em R$ 128,00, correspondente a 50% do valor da cesta básica da capital gaúcha em outubro de 2008. Mencionou-se que o Código Penal, no art. 155, § 2º, ao se referir ao pequeno valor da coisa furtada, disciplinaria critério de fixação da pena – e não de exclusão da tipicidade –, quando se tratasse de furto simples. Consignou-se que o princípio da insignificância não haveria de ter como parâmetro tão só o valor da res furtiva, devendo ser analisadas as circunstâncias do fato e o reflexo da conduta do agente no âmbito da sociedade, para decidir sobre seu efetivo enquadramento na hipótese de crime de bagatela. Discorreu-se que o legislador ordinário, ao qualificar a conduta incriminada, teria apontado o grau de afetação social do crime, de sorte que a relação existente entre o texto e o contexto – círculo hermenêutico – não poderia conduzir o intérprete à inserção de norma não abrangida pelos signos do texto legal. Assinalou-se que, consectariamente, as condutas imputadas aos autores não poderiam ser consideradas como inexpressivas ou de menor afetação social, para fins penais, adotando-se tese de suas atipicidades em razão do valor dos bens subtraídos. O Min. Luiz Fux, relator, ponderou que não se poderia entender atípica figura penal que o Código assentasse típica, porquanto se atuaria como legislador positivo. Aduziu que, por menor, ou maior, que fosse o direito da parte, seria sempre importante para aquela pessoa que perdera o bem. Aludiu à solução com hermenêutica legal. O Min. Marco Aurélio complementou que a atuação judicante seria vinculada ao direito posto. Enfatizou haver balizamento em termos de reprimenda no próprio tipo penal. Admoestou que o furto privilegiado dependeria da primariedade do agente e, na insignificância, esta poderia ser colocada em segundo plano. O Min. Dias Toffoli subscreveu a conclusão do julgamento, tendo em conta as circunstâncias específicas de cada caso. Ante as particularidades das situações em jogo, a Min. Rosa Weber, acompanhou o relator, porém sem adotar a fundamentação deste. Vislumbrava que o Direito Penal não poderia – haja vista os princípios da interferência mínima do Estado e da fragmentariedade – atuar em certas hipóteses.
(STF: HC 109.183/RS, rel. Min. Luiz Fux, 12.06.2012 e HC 110.932/RS, rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 12.06.2012, noticiados no Informativo 670).
A Turma denegou habeas corpus no qual se postulava a aplicação do princípio da insignificância em favor de condenado por crime de furto qualificado e, subsidiariamente, a fixação da pena-base no mínimo legal. Na espécie, o paciente, por subtrair de veículos objetos avaliados em R$ 75,00, foi condenado à pena de dois anos e sete meses de reclusão em regime semiaberto. Inicialmente, ressaltou-se que o pequeno valor da vantagem patrimonial ilícita não se traduz, automaticamente, no reconhecimento do crime de bagatela. Em seguida, asseverou-se não ser possível reconhecer como reduzido o grau de reprovabilidade na conduta do agente que, de forma reiterada e habitual, comete vários delitos ou atos infracionais. Ponderou-se que, de fato, a lei seria inócua se tolerada a reiteração do mesmo delito, seguidas vezes, em frações que, isoladamente, não superassem certo valor tido por insignificante, mas o excedesse na soma. Concluiu-se, ademais, que qualquer entendimento contrário seria um verdadeiro incentivo ao descumprimento da norma legal, mormente tendo em conta aqueles que fazem da criminalidade um meio de vida.
(STJ: HC 150.236/DF, rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. 06.12.2011, noticiado no Informativo 489).
Logo, o réu que subtrai um objeto, avaliado em menos de 10% do salário-mínimo nacional, deve ter reconhecida sua atipicidade, ainda que reincidente? Se o réu tem habitualidade delitiva ou pratica crimes reiteradamente, não se encontra presente o ínfimo grau de reprovação ou o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento. Por exemplo, se o réu subtrai um objeto, no valor de R$50,00 (cinquenta reais), uma vez por mês, durante um ano, ao final do ano terá furtado R$600,00.
Destarte, a incidência do princípio da insignificância a todas as situações incentiva a continuação delitiva, haja vista a ausência de punição por agir de tal modo. Ainda, a sociedade notará a impunidade, deixando de acreditar no sistema penal e no Estado.
Nesse sentido, para Cintra, o grau de reprovabilidade é a análise das condições pessoais do agente:
Esse complexo de fatores não deve ser reduzido a uma análise formal da primariedade ou de bons antecedentes. Trata-se de analisar, por exemplo, se o agente procurou causar o mínimo dano possível, mós motivos da conduta, se ele não tomou tal prática como ofício. Na verdade, essa análise coincide com a dos elementos do art. 59 do Código Penal (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime, comportamento da vítima)[22].
Portanto, apesar da haver julgados dos Tribunais Superiores em sentido contrário[23], não há que se falar em insignificância da conduta quando o agente for costumeiro nas práticas delitivas. Caso contrário, se estimulará o cometimento de mais crimes[24].
Nessa linha de raciocínio, os que cometem crimes após a prolação de uma decisão de atipicidade material, certamente alegarão que merecem novamente decisão similar, o que pode acarretar impunidade desenfreada a longo prazo, colaborando no crescimento da criminalidade.
Dessa forma, os requisitos traçados pela jurisprudência e fomentados pela doutrina devem ser analisados conjuntamente em cada caso concreto, não sendo o critério econômico o único vetor a nortear o entendimento do julgador na aplicação da insignificância.
2.3. Análise da aplicabilidade
Como adiantado, por terem certas características específicas, alguns crimes não admitem a incidência do princípio da insignificância. A título ilustrativo, colacionamos alguns julgados das cortes superiores nos quais restou afastado o princípio, analisando seus fundamentos e contrapondo com julgados em sentido contrário.
Destaca-se, de início, que a inaplicabilidade do princípio da insignificância é pacificada quanto aos crimes de roubo[25], violência doméstica[26], moeda falsa[27], descaminho[28], crimes eleitorais[29], militares[30] e também em relação a atos infracionais[31].
Quanto aos crimes da Lei nº 11.343/06, a jurisprudência, via de regra, obsta a sua incidência, afirmando que “É pacífica a jurisprudência desta Corte Suprema no sentido de não ser aplicável o princípio da insignificância ou bagatela aos crimes relacionados a entorpecentes, seja qual for a qualidade do condenado”[32].
Isso se dá porque os delitos que envolvem substância entorpecente descritos na Lei de drogas são de perigo abstrato e possuem a saúde pública como objeto jurídico protegido pela norma.
Inclusive, decidiu-se pela não aplicação do princípio da insignificância no âmbito do crime do artigo 28 da referida lei, visto que, “mesmo que se trate de porte de quantidade ínfima de droga, convém que se reconheça a tipicidade material do delito para o fim de reeducar o usuário e evitar o incremento do uso indevido de substância entorpecente”[33].
Noutro giro, a 1ª turma do STF já aplicou o instituto em caso de posse de droga para consumo pessoal, excluindo a tipicidade material em situação na qual o usuário portava 0,6 gramas de entorpecente. Este caso revela o risco que a inexistência de uniformidade entre as decisões de uma mesma Corte acarreta à segurança jurídica, pois pouco mais de um ano antes, em caso semelhante, no qual a quantidade de drogas era de 0,8 gramas, a insignificância não foi reconhecida pela Corte Suprema[34].
Contudo, afora a questão da disformidade das decisões dos tribunais, o fato é que, por ter a saúde pública como objeto, a conduta de possuir drogas para consumo atinge o agente e a sociedade como um todo, sendo presumido o perigo ao bem tutelado. Em outras palavras, não deve incidir a bagatela, independentemente da quantidade de droga apreendida com o usuário.
Em relação aos crimes contra a administração pública, da mesma forma, não há que se falar na aplicabilidade do princípio. Apesar de haver decisões favoráveis[35] e contrárias[36], entende-se, consoante o enunciado nº 599 da súmula de jurisprudência do STJ[37], que o princípio da supremacia do interesse público veda tal situação, existindo tipicidade formal e material.
No que concerne aos crimes ambientais, existem julgados vedando[38] a incidência do princípio da insignificância, principalmente quanto ao crime do artigo 34 da Lei n.º 9.605/98, bem como julgados que a autorizam[39]. Pensa-se que não deve prosperar a incidência do princípio para tais crimes, dada sua relevância social e penal, tendo a Constituição Federal destinado um capítulo inteiro à proteção do meio ambiente.