1.INTRODUÇÃO
Nos dizeres de Misabel Derzi, "certeza (ou segurança), economicidade e capacidade contributiva" seriam os principais alicerces do sistema constitucional tributário brasileiro, posto que "mesclam não só padrões mínimos de ética e de justiça, como de técnica e razoabilidade". Disto se depreende, sem medo de errar, que os princípios constitucionais limitam a atuação do legislador infraconstitucional, seja complementar, seja ordinário, contrabalançando o poder de tributar e tornando equivalente, pois, Estado de Direito e legalidade na tributação.
O Art. 150 da Constituição Federal arrola uma série de limitações ao poder de tributar, tais como, dentre os mais importantes, o princípio da legalidade, da anterioridade e da irretroatividade das leis. Em última análise, todos esses princípios têm por escopo garantir ao contribuinte o mínimo de tranqüilidade, de confiança e de certeza quanto à política a ser adotada pelo Governo, fazendo cessar, pois, a improvisação e o imediatismo.
Sacha Calmon Navarro Coelho e Valter Lobato, citando lição de Torstein Stein, reafirmam que:
"O conceito de segurança jurídica é considerado conquista especial do Estado de Direito. Sua função é a de proteger o indivíduo de atos arbitrários do poder estatal, já que as intervenções do Estado nos direitos dos cidadãos podem ser muito pesadas e, às vezes, injustas. No entanto, se tais intervenções têm base em lei e visam o bem-estar público, será preciso decidir-se pela avaliação conjunta do interesse coletivo e do interesse do particular afetado para se aferir a juridicidade (conformação do direito) da medida estatal. Esse princípio é frequentemente denominado ‘princípio da proporcionalidade" (1)
A Lei Complementar n. 118, de 9 de fevereiro de 2.005, dispôs, em seu art. 3º, que, para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 do Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito à lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o ̕§1º do art. 150 do referido Diploma legal.
Conforme será exposto a seguir, esta nova disposição, sob o pretexto de esclarecer o verdadeiro sentido da regra exposta no art. 168 do CTN, fixou novo entendimento acerca da contagem do prazo prescricional para o exercício do direito do contribuinte à repetição do indébito, ao arrepio de entendimento já consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, prevendo-se, ademais, a aplicação imediata de tal disposição, haja vista o que dispõe o art. 4º da acima referida Lei Complementar.
2. APRESENTAÇÃO DO TEMA.
Nos termos já citados, a Lei Complementar n. 118, de 2005, por meio de seu art. 3º, dispôs que, para efeito de interpretação do art. 168, I, do CTN, a extinção do crédito nos casos de tributos sujeitos à lançamento por homologação dá-se quando do pagamento antecipado de que trata o art. 150, §1º do mesmo Código.
Em um primeiro momento, há que se ter em vista o que dispõe o art. 165 do Código Tributário Nacional:
"165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos: (I) - cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido; (II) - erro na edificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento; (III) - reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória.".
Este dispositivo tem supedâneo no princípio que veda o enriquecimento sem causa, sendo certo, no entanto, que as ações que tem por escopo reaver aquilo que se desembolsou além do devido, as quais recebem o nome genérico de ações de in rem verso, devem ser ajuizadas dentre de um determinado lapso de tempo, qual seja o lapso prescricional. No caso de tributo pago a maior, o art. 168 do CTN prevê, por sua vez:
"Art. 168. O direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados: (I) - Na hipótese dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário; (II) - Na hipótese do inciso III do artigo 165, da data em que se tornar definitiva a decisão administrativa ou passar em julgado a decisão judicial que tenha reformado, anulado, revogado ou rescindido a decisão condenatória".
Assim, o termo inicial para o exercício do direito de pleitear a restituição, para as hipóteses dos incisos I e II do art. 165 do CTN, é a data da extinção do crédito tributário, a qual, nos casos dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, dá-se, ex vi do inciso VII do art, 156 do CTN e do entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, com o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no artigo 150 e seus §§1º e 4º. Em tempo, segue o que dispõe os §§1º e 4º do art. 150:
"Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.
§1º O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação ao lançamento.
(...)
§4º Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.’
Como na prática a Fazenda Pública nunca homologa expressamente, considera-se extinto o crédito tributário cinco anos depois de ocorrido o seu fato gerador (homologação tácita). Assim sendo, o prazo de cinco anos para exercer o direito de pedir a restituição tem como termo inicial justamente o termo final da Fazenda Pública para homologar expressamente o crédito restituendo.
Segue uma das várias decisões proferidas pelo STJ a respeito do assunto:
"TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. COMPENSAÇÃO. PIS. PRESCRIÇÃO / DECADÊNCIA. INÍCIO DO PRAZO. PRECEDENTES.
1. Está uniforme na 1ª Seção do STJ que, no caso de lançamento tributário por homologação e havendo silêncio do Fisco, o prazo decadencial só se inicia após decorridos 5 (cinco) anos da ocorrência do fato gerador, acrescidos de mais um qüinqüênio, a partir da homologação tácita do lançamento. Estando o tributo em tela sujeito a lançamento por homologação, aplicam-se a decadência e a prescrição nos moldes acima delineados.
2. Não há que se falar em prazo prescricional a contar da declaração de inconstitucionalidade pelo STF ou da Resolução do Senado. A pretensão foi formulada no prazo concebido pela jurisprudência desta Casa Julgadora como admissível, visto que a ação não está alcançada pela prescrição, nem o direito pela decadência. Aplica-se, assim, o prazo prescricional nos moldes em que pacificado pelo STJ, id est, a corrente dos cinco mais cinco.
3. A ação foi ajuizada em 28/02/2002. Valores recolhidos, a título de PIS, no período de 01/89 a 01/95. Não transcorreu, entre o prazo do recolhimento (contado a partir de 02/1992) e o do ingresso da ação em juízo, o prazo de 10 (dez) anos. Inexiste prescrição sem que tenha havido homologação expressa da Fazenda, atinente ao prazo de 10 (dez) anos (5 + 5), a partir de cada fato gerador da exação tributária, contados para trás, a partir do ajuizamento da ação." (2)
4. Precedentes desta Corte Superior.
5. Embargos de divergência parcialmente acolhidos para, com base na jurisprudência predominante da Corte, declarar a prescrição, apenas, das parcelas anteriores a 02/1992, concedendo as demais, nos termos do voto."
A Doutrina, no que pertine aos tributos sujeitos ao chamado lançamento por homologação, também deixou registrado que a extinção do crédito se dá, nestes casos, com a ulterior homologação, expressa ou tácita, por parte do fisco. Pontifica o Prof. Paulo de Barros Carvalho:
"Quero limitar-me, por agora, a consignar dois tópicos sobre o pagamento antecipado e a homologação do lançamento.
De primeiro, que o pagamento antecipado é uma forma de pagamento, cumprindo o sujeito passivo a conduta que dele se esperava e provocando, com isso, o desaparecimento do direito subjetivo de que esteve investido o credor. Desfaz-se o crédito e, correlativamente, o débito, extinguindo-se a obrigação. Mas, precisamente aqui, ingressa um dado que é peculiar ao instituto, tal qual o prescreve o direito tributário brasileiro: ainda que o factum do pagamento tenha efeitos extintivos, requer a legislação aplicável que ele se conjugue ao ato homologatório a ser realizado (comissiva ou omissivamente) pela Administração Pública. Só assim dar-se-á por dissolvido o vínculo, diferentemente do que sucede nos casos de pagamento de dívida tributária apurada por lançamento, em que a conduta prestacional do devedor tem o condão de pôr fim, desde logo, à obrigação tributária." (3)
Não obstante a sedimentação deste entendimento, o legislador complementar, certamente cedendo à intensa pressão exercida pelos entes tributantes, editou, 39 anos após a promulgação do Código Tributário Nacional, a Lei Complementar de n. 118, através da qual alterou o entendimento jurisprudencial consolidado, interpretando o art. 168, inc. I do CTN de forma a reduzir o prazo prescricional da ação de repetição de indébito, considerando, para tal fim, como data da extinção do crédito nos tributos sujeitos a lançamento por homologação, a data do pagamento antecipado, independentemente da homologação, expressa ou tácita, da Fazenda competente.
Como se não bastasse, partindo do que dispõe o art. 106 do CTN, determinou que tal disposição teria aplicação retroativa, entendendo-se, daí, o caráter meramente interpretativo da disposição in comentum.
3.DAS LEIS INTERPRETATIVAS
Conforme já exposto, o art. 150, inciso III, da Constituição Federal, determina que é vedado aos entes tributantes cobrar tributos "em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado". Tem-se aí o princípio da irretroatividade das leis tributárias, o qual, como visto, tem por escopo a segurança jurídica dos contribuintes, impedindo-se, pois, sejam os mesmos surpreendidos pela mudança na política tributária dos governos.
Como exceção a esta regra, o Código Tributário Nacional, em seu art. 106, inciso I, dispõe que a lei se aplica a caso pretérito "quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados". Trata-se, no caso, da chamada interpretação autêntica, qual seja aquela promovida pela mesma fonte que criou o dispositivo interpretado.
Como se sabe, as leis interpretativas surgiram quando o poder centralizava-se nas mãos do legislador, ou à época, do imperador, ou do ditador. Com o fim do absolutismo, passou-se a admitir novas fontes de direito, sedimentando-se, assim, a interpretação exercida pelos magistrados e pelos doutrinadores. Desta feita, o monopólio da hermenêutica foi desfeito, reconhecendo-se, assim, a existência de outras fontes de interpretação.
A despeito da existência de balizados entendimentos doutrinários, que defendem a inexistência de leis interpretativas, tal qual ensina Roque Antônio Carrazza (4), o Supremo Tribunal Federal reconhece a função das leis interpretativas, tendo encerrado, pois, qualquer dúvida que pudesse pairar sobre a pertinência das mesmas em nosso ordenamento. Em tempo:
"Ação direta de inconstitucionalidade - Medida provisória de caráter interpretativo - Leis interpretativas - A questão da interpretação de leis de conversão por medida provisória - Princípio da irretroatividade - Caráter relativo - Leis interpretativas e aplicação retroativa - Reiteração de medida provisória sobre matéria apreciada e rejeitada pelo congresso nacional - Plausibilidade jurídica - Ausência do "periculum in mora" - Indeferimento da cautelar. - É plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autentica. - as leis interpretativas - Desde que reconhecida a sua existência em nosso sistema de direito positivo - Não traduzem usurpação das atribuições institucionais do judiciário e, em conseqüência, não ofendem o postulado fundamental da divisão funcional do poder. - Mesmo as leis interpretativas expoem-se ao exame e a interpretação dos juizes e tribunais. Não se revelam, assim, espécies normativas imunes ao controle jurisdicional. - A questão da interpretação de leis de conversão por medida provisória editada pelo Presidente da República. - O princípio da irretroatividade "somente" condiciona a atividade jurídica do Estado nas hipóteses expressamente previstas pela Constituição, em ordem a inibir a ação do poder público eventualmente configuradora de restrição gravosa (a) ao "status libertatis" da pessoa (CF, art. 5. XL), (b) ao "status subjectionais" do contribuinte em matéria tributaria (CF, art. 150, III, "a") e (c) a "segurança" jurídica no domínio das relações sociais (CF, art. 5., XXXVI). - na medida em que a retroprojeção normativa da lei "não" gere e "nem" produza os gravames referidos, nada impede que o estado edite e prescreva atos normativos com efeito retroativo. - As leis, em face do caráter prospectivo de que se revestem, devem, "ordinariamente", dispor para o futuro. O sistema jurídico - constitucional brasileiro, contudo, "não" assentou, como postulado absoluto, incondicional e inderrogável, o princípio da irretroatividade. - a questão da retroatividade das leis interpretativas".
Há quem afirme ainda que a lei interpretativa não retroage, mas apenas clareia o sentido do dispositivo legal interpretado. Trata, assim, de garantir a plena eficácia da lei anterior, que, se corretamente interpretada, não teria sofrido certas limitações. Assim, não obstante hoje paire certo consenso acerca da existência das leis interpretativas, o certo é que as mesmas não introduzem nenhum elemento novo no ordenamento, cingindo-se apenas a explicar o sentido do texto interpretado. Tanto assim o é que tais leis não estão imunes ao controle jurisdicional, sujeitas, pois, ao crivo do Judiciário.
Cabe-nos proceder, ainda assim, a uma breve crítica da função interpretativa reservada ao legislador. A interpretação autêntica, como se diz, ao lado de implicar assunção de equívoco cometido anteriormente, haja vista a má redação do dispositivo legal pretérito, é de utilidade questionável. Isto porque, se inovar, não poderá retroagir, e, se não inovar, limitar-se-á a repetir a redação do texto interpretado. No entendimento de Luciano Amaro:
"Ocorre que, de um lado, o legislador, nas matérias que se contêm no campo da irretroatividade, só legisla para o futuro. De outro lado, dar ao legislador funções interpretativas, vinculantes para o Judiciário na apreciação de fatos concretos anteriormente ocorridos, implicaria conceder àquele a atribuição de dizer o direito aplicável aos casos concretos, tarefa precipuamente conferida pela Constituição ao Poder Judiciário. Mais uma vez, não se escapa ao dilema: ou a lei nova dá ao preceito interpretado o mesmo sentido que o juiz infere desse preceito, ou não; no primeiro caso, a lei é inócua; no segundo, é inoperante, por retroativa (ou porque usurpa função jurisdicional)." (5)
De fato, há que se ressaltar que o art. 106, I, do CTN, dispõe que a lei interpretativa retroagirá, excluída a aplicação de penalidade pela eventual infração aos dispositivos interpretados. Ocorre que a lei interpretativa, salvo se se limitar a repetir o dispositivo passado, pelo quê inútil, sempre vai inovar. No caso presente, a Lei Complementar n. 118, ao arrepio do entendimento majoritário da jurisprudência, reduziu o prazo prescricional da ação de repetição de indébito, asseverando que, por estar interpretando o art. 168 do CTN, aplica-se retroativamente aos casos pretéritos, haja vista o que dispõe o já citado art. 106. Ocorre que, para ser útil, a lei interpretativa sempre implicará em aplicação de penalidade ao contribuinte, ainda que indireta. Isto porque a se fazer retroagir a novel legislação, o contribuinte será privado de prazo que anteriormente lhe era garantido pelo Poder Judiciário, penalizado, pois, pela nova interpretação.
Ademais, a lei interpretativa gera a insegurança dos cidadãos, posto que a qualquer momento o legislador pode alterar o sentido das regras legais vigentes. Ainda que o STF defenda o controle judicial exercido sobre tais leis, o fato é que a se garantir sua existência, está-se a reconhecer que o legislador tem o poder de alterar o sentido consolidado da norma, dando-lhe, a seu único e exclusivo critério, e a qualquer tempo, o entendimento que mais lhe convier. Além disso, as leis interpretativas terminam por minar a função hermenêutica exercida pelos doutrinadores e pelos magistrados. Se essa função também lhes compete, descabe falar em interpretação autêntica, posto que não poderá o legislador ter a última palavra, sob pena de se retornar a era do absolutismo.
Veja-se, por todos, a clássica lição de CARLOS MAXIMILIANO:
"O ideal do Direito, como de toda ciência, é a certeza, embora relativa; pois bem, a forma autêntica de exegese oferece um grave inconveniente – a sua constitucionalidade posta em dúvida por escritores de grande prestígio. Ela positivamente arranha o princípio de Montesquieu; ao Congresso incumbe fazer as leis; ao aplicador (Executivo e Judiciário) – interpretá-las. A exegese autêntica transforma o legislador em juiz; aquele toma conhecimento de casos concretos e procura resolvê-los por meio de uma interpretação geral.
Amplifica-se, deste modo, a autoridade da legislatura, num regime de freios e contrapesos; revela-se desamor pelo dogma da divisão dos poderes, pedra angular das instituições vigentes.
Em resumo: se a lei tem defeitos de forma, é obscura, imprecisa, faça-se outra com o caráter franco de disposição nova. Evite-se o expediente perigoso e retrógrado, a exegese por via de autoridade, irretorquível, obrigatória para os próprios juízes; não tem mais razão de ser; coube-lhe um papel preponderante outrora, evanescente hoje." (6)