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Uma decisão sensata

Agenda 30/09/2018 às 11:40

Na prática, a decisão impede que Temer seja eventualmente alvo de uma terceira denúncia durante o exercício do mandato presidencial.

Segundo o Estadão, em sua edição de 26 de setembro do corrente ano, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu ao ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), a suspensão do inquérito que investiga o presidente Michel Temer no caso do “quadrilhão” do MDB. Na prática, a decisão impede que Temer seja eventualmente alvo de uma terceira denúncia durante o exercício do mandato presidencial.

No relatório final do inquérito sobre repasses de R$ 10 milhões da Odebrecht para integrantes do partido, a Polícia Federal concluiu pela existência de indícios de que o presidente cometeu crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O documento também indica a prática dos mesmos crimes pelos ministros Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Minas e Energia).

O caso está relacionado com o jantar no Palácio do Jaburu, em 2014, que foi detalhado nos acordos de delação de executivos da Odebrecht. Então vice-presidente, Temer teria participado do encontro em que os valores foram solicitados.

A procuradora-geral da República Raquel Dodge lembrou em sua manifestação que a Constituição proíbe que o presidente seja denunciado por atos anteriores ao mandato.

“A Constituição veda, portanto, a possibilidade de responsabilizar o presidente da República e de promover ação penal por atos anteriores ao mandato e estranho ao exercício de suas funções, enquanto este durar”, escreveu Raquel Dodge. “Assim, deve-se aguardar o término do mandato presidencial para a formação da ‘opinio delicti’ em relação aos fatos relacionados.”

Ainda em seu parecer, a procuradora-geral escreve que, embora Eliseu Padilha e Moreira Franco não sejam parlamentares, são alcançados pela nova interpretação do foro privilegiado. Segundo ela, os dois se desvincularam de seus cargos anteriores em 2015 e retornaram ao posto de ministros apenas em 2016, em pastas diferentes daquelas relativas aos fatos investigados.

Em relatório concluído no início do mês, a Polícia Federal (PF) apontou indícios de que Temer cometeu os crimes corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do jantar realizado no Palácio do Jaburu, ocasião em que ele e Padilha teriam pedido ao empreiteiro Marcelo Odebrecht uma doação eleitoral de R$ 10 milhões. O dinheiro, segundo o empreiteiro revelou em delação, foi repassado em espécie ao grupo político de Temer. Padilha foi acusado dos mesmos crimes, e Moreira, de corrupção passiva. Os três negam as acusações.

O inquérito foi aberto no ano passado, com base na delação premiada de executivos da Odebrecht. Inicialmente, apenas Padilha e Moreira eram investigados. Em fevereiro deste ano, Raquel Dodge pediu para Temer ser incluído. Ela discordou do seu antecessor no caso, Rodrigo Janot, que preferiu não incluir o presidente na investigação. A procuradora-geral considera que, apesar de não poder ser responsabilizado, o presidente pode ser investigado, para que as provas não se percam. Esse entendimento foi reforçado na manifestação de ontem.

Do que se tem na informação os fatos ocorreram antes do exercício do mandato do presidente e não estão relacionados ao exercício da presidência.

 Lembre-se da lição de Paulo Brossard (O impeachment, 1965) quando explicou que “o fim do processo de responsabilidade é afastar do governo, ou do tribunal, um elemento mau; não se instaura contra governo renunciante, porém atinge o reconduzido”.

Nessa lógica de argumento, tem-se que não há poder do presidente sem a respectiva responsabilidade.

A Constituição de 1891 adotou o sistema norte-americano de responsabilidade. Pela primeira Constituição republicana, o processo e julgamento dos crimes comuns do Presidente da República e dos ministros de Estado é do Supremo Tribunal Federal e ao Senado, os de responsabilidade. O decreto da Câmara sobre a procedência da acusação importava a suspensão do Presidente da República ou do ministro no exercício de suas funções, artigo 53, parágrafo único. Restringiu o impeachment, contrariamente à Constituição norte-americana, ao Presidente da República, ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal(artigo 52, § 2º, art. 53 e art. 57, § 2º).

A Constituição de 1934 estatuiu que a pena a impor seria de perda do cargo, com inabilitação até  o máximo de cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, consagrando a doutrina de Epitácio Pessoa, Pedro Lessa e Aníbal Freire no sentido de que o impeachment é um processo misto, tanto que a renúncia não impede o prosseguimento ou, mesmo, o início do processo.

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A Constituição de 1937, do Estado Novo, tornou quase inviolável a figura do Presidente da República, imunizando-o de responsabilidade por atos estranhos às suas funções, durante o exercício delas(artigo 87). Cometido um delito comum, o processo devia ser sustado, até que o Presidente deixasse as funções, contrariamente ao que estabeleciam as Constituições anteriores, que o faziam processar e julgar pelo Supremo Tribunal Federal, depois de decretada a acusação pela Câmara dos Deputados.

As demais constituições republicanas, até a Constituição democrática de 1988, não  contemplaram a imunidade penal temporária, e sob todas essas  outras Constituições, o presidente da República poderia ser processado até por fatos estranhos ao desempenho do mandato presidencial.

A Constituição de 1946 veio consagrar a doutrina de Felisbelo Freire, segundo o qual a renúncia do acusado impede o início do processo, porque uma é a pena: perda do cargo com a inabilitação para o exercício de qualquer função pública, até cinco anos.

Acentuava-se na Constituição de 1946:

Art 88 - O Presidente da República, depois que a Câmara dos Deputados, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, declarar procedente a acusação, será submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal nos crimes comuns, ou perante o Senado Federal nos de responsabilidade.

Art 89 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição federal e, especialmente, contra:

- a existência da União;

II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos Poderes constitucionais dos Estados;

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País;

- a probidade na administração;

VI - a lei orçamentária;

VII - a guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos;

VIII - o cumprimento das decisões judiciárias.

Parágrafo único - Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

A Constituição de 1967 não prestigiou a instituição do impeachment, como era de se desejar, mas manteve o instituto nos termos das Constituições anteriores.

A Constituição de 1988, democrática, trouxe uma hipótese de imunização:

O 'impeachment' na Constituição de 1988, no que concerne ao Presidente da Republica tem o seguinte procedimento: autorizada pela Câmara dos Deputados, por dois tercos de seus membros, a instauração do processo (C.F., art. 51, I), ou admitida a acusação (C.F., art. 86), o Senado Federal processará e julgará o Presidente da Republica nos crimes de responsabilidade. É dizer: o 'impeachment' do Presidente da Republica será processado e julgado pelo Senado Federal. O Senado Federal e não mais a Câmara dos Deputados formulará a acusação (juízo de pronuncia) e proferirá o julgamento. C.F./88, artigo 51, I; art. 52; artigo 86, § 1º, incisos I e II (MS no 21.564-DF).

A lei estabelecerá as normas de processo e julgamento. Constituição Federal,  art. 85, par. único. Essas normas estão  na Lei n. 1.079, de 1.950, que foi recepcionada, em grande parte, pela  Constituição Federal de 1988 (MS n. 21.564-DF).

Estabelece o art. 86, caput, da Constituição Federal de 1988, que, admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. Como já salientado, as infrações penais comuns opõem-se às infrações político-administrativas (crimes de responsabilidade), e tanto estas como aquelas podem ser cometidas pelo Presidente da República durante o exercício do mandato presidencial.

Em sendo um crime comum (peculato, corrupção passiva, concussão,  etc.), admitida a acusação por maioria qualificada de dois terços da Câmara dos Deputados o Presidente da República sujeitar-se-á ao Supremo Tribunal Federal, que permitirá ou não a instauração de um processo contra o Chefe do Executivo Federal. Percebe-se, pois, que o Presidente da República dispõe de prerrogativa de foro (prerrogativa de função). Somente a Corte Suprema poderá processá-lo e julgá-lo por crimes comuns (CF, art. 102, I, b), obviamente após o juízo de admissibilidade da Câmara dos Deputados, que precisará do voto de 2/3 (dois terços) de seus membros para autorizar o processo.

É importante notar, no entanto, que a admissão da acusação pela Câmara dos Deputados não vincula a Corte Suprema (STF), que poderá rejeitar a denúncia-crime ou queixa-crime, caso entenda, por exemplo, inexistirem elementos suficientes de autoria e materialidade. Recebida a denúncia, o Presidente da República ficará suspenso de suas funções por 180 (cento e oitenta) dias; decorrido este prazo voltará o Presidente a exercer suas funções presidenciais, devendo o feito prosseguir até a decisão derradeira.

Registre-se que, enquanto não sobrevier sentença condenatória, o Presidente da República não poderá ser preso (art. 86, § 3º, da CF/88). Não se admite prisões em flagrante, preventiva e temporária, mesmo em se tratando de crimes inafiançáveis. Ademais, durante a vigência do mandato presidencial, não poderá o Presidente ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (art. 86,§ 4º, da CF/88). Em outras palavras, só haverá a persecução criminal após o término do mandato executivo, tendo em conta que o delito praticado não tem conexão com o exercício da função presidencial. Obviamente, haverá suspensão do curso da prescrição até o término do mandato executivo.

Nessa linha de pensar, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da AP 305/QO, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 18 de dezembro de 1992, acentuou que o artigo 86, parágrafo quarto, da Constituição, ao outorgar privilégio de ordem político-funcional ao Presidente da República, exclui-o, durante a vigência de seu mandato – e por atos estranhos a seu exercício -, da possibilidade de ser ele submetido, no plano judicial, a qualquer ação persecutória do Estado. Sendo assim a cláusula de exclusão inscrita no preceito constitucional, inscrito no artigo 84, parágrafo quarto, da Constituição Federal, ao inibir a atividade do Poder Público, em sede judicial, alcança as infrações penais comuns praticados em momento anterior ao da investidura no cargo de Chefe do Poder Executivo da União, bem assim aqueles praticados durante a vigência do mandato, desde que estranhas ao oficio presidencial. Será hipótese de imunidade processual temporária.

Ficou acentuado que a norma constitucional consubstanciada no artigo 86, § 4º reclama e impõe, em função de seu caráter excepcional, exegese restrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal.

Como conclusão, tem-se que a Constituição, no artigo 86, § 4º, não consagrou o principio da irresponsabilidade penal absoluta do Presidente da República. O Chefe de Estado, nos delitos penais praticados ¨in officio¨ou cometidos ¨propter officium¨, poderá ainda que vigente o mandato presidencial, sofrer a ¨persecutio criminis¨, desde que obtida, previamente, a necessária autorização da Câmara dos Deputados.

Sobre isso, tem a posição do Ministro Celso de Mello(Inq. 927 – 9/SP, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 1, de 23 de fevereiro de 1995, pág. 3.507) quando disse:

“Os ilícitos penais cometidos em momento anterior ao da investidura do candidato eleito na Presidência da República – exatamente porque não configuram delicta in officio – também são alcançados pela norma tutelar positivada no § 4º do art. 86 da Lei Fundamental, cuja eficácia subordinante e imperativa inibe provisoriamente o exercício pelo Estado, do seu poder de persecução criminal”.

No inquérito 1.418 – 9, DJU de 8 de novembro de 2001, o Ministro Celso de Mello repetiu que:

“A cláusula de imunidade penal temporária, instituída, em caráter extraordinário, pelo art. 86, § 4\", da Constituição Federal, impede que o Presidente da República, durante a vigência de seu mandato, sofra persecução penal, por atos que se revelarem estranhos ao exercício das funções inerentes ao ofício presidencial. Doutrina. Precedentes”.

Mas é na argumentação colhida no Inq 672 – 6 – DF, que o Ministro Celso de Mello registra:

“Essa norma constitucional – que ostenta nítido caráter derrogatório do direito comum – reclama e impõe, em função de sua própria excepcionalidade, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal.

Sendo assim, torna-se lícito asseverar que o Presidente da República não dispõe de imunidade,quer em face de procedimentos judiciais que vissem a definir-lhe a responsabilidade civil, quer em face de procedimentos instaurados por suposta prática de infrações político-administrativas(ou impropriamente denominados crimes de responsabilidade), quer, ainda, em face de procedimentos destinados a apurar, para efeitos estritamente fiscais, a responsabilidade tributária do Chefe do Poder Executivo da União.”

Mas haveria impedimento constitucional de se proceder a qualquer investigação contra o Presidente da República por fatos anteriores ao mandato  de forma a ensejar a informatio delicti?

Interessa-nos, principalmente, o trecho, naquele pronunciamento, em que o Ministro Celso de Mello conclui:

“De outro lado, impõe-se advertir que, mesmo na esfera penal, a imunidade constitucional em questão somente incide sobre os atos inerentes à persecutio criminis in judicio. Não impede, portanto, que, por iniciativa do Ministério Público, sejam ordenadas e praticadas, na fase pré-processual do procedimento investigatório, diligências de caráter instrutório destinadas a ensejar a informatio delicti e a viabilizar, no momento constitucionalmente oportuno, o ajuizamento da ação penal.”

Como entender uma norma jurídica editada em uma Constituição-cidadã, com elementos que lembram a Constituição de 1937, de índole fascista?

Dir-se-á que essa norma constitucional é inconstitucional por afronta ao princípio republicano?

Ora, respeita-se o princípio da unidade da Constituição.

No sistema constitucional do Brasil, não se pode falar em normas constitucionais inconstitucionais.

Ao aplicar a Constituição é mister que o intérprete procure as recíprocas implicações de preceitos e princípios, até chegar a uma vontade unitária na Constituição. Ele terá de evitar as contradições, antagonismos e antinomias. As Constituições, compromissórias sobretudo, apresentam princípios que expressam ideologias diferentes. Se, portanto, do ponto de vista jurídico são sem dúvida passíveis de harmonização desde que se utilizem as técnicas próprias do direito.

A simples letra da lei é superada mediante um processo de cedência recíproca. Dois princípios aparentemente contraditórios podem harmonizar-se desde que abdiquem da pretensão de serem interpretados de forma absoluta.

J.J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 4ª edição, Coimbra, pág. 118) dizia: “O princípio da unidade constitucional significa que todas as normas contidas numa Constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da lei constitucional). De acordo com esta premissa, só o legislador constituinte tem competência para estabelecer exceções à unidade, hierárquico-normativa de preceitos constitucionais, como é o caso das normas de revisão se forem concebidas como normas superconstitucionais, como se viu no sistema jurídico de Portugal, a partir de 1976.

O princípio da unidade da Constituição conduz à rejeição de duas teses: a tese das antinomias alternativas e a tese das normas constitucionais inconstitucionais.

Canotilho lembra que, sendo a Constituição uma estrutura de tensão e não se podendo transformar uma lei constitucional em “código” exaustivo da vida política, o princípio da unidade da Constituição é igualmente um princípio de interpretação; exige tarefa de concordância prática entre normas aparentemente em conflito, em tensão.

Será caso, pois, da presentante do Parquet, oficiando perante o STF, não apresentar denúncia por ora, devendo esperar até o fim do mandato para que seja ofertada.

Os ilícitos penais cometidos em momento anterior ao da investidura do candidato eleito na Presidência da República – exatamente porque não configuram delicta in officio – também são alcançados pela norma tutelar positivada no § 4º do art. 86 da Lei Fundamental, cuja eficácia subordinante e imperativa inibe provisoriamente o exercício pelo Estado, do seu poder de persecução criminal.

Repita-se que durante a vigência do mandato presidencial, não poderá o Presidente ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (art. 86,§ 4º, da CF/88).

Em outras palavras, só haverá a persecução criminal após o término do mandato executivo, tendo em conta que o delito praticado não tem conexão com o exercício da função presidencial. Obviamente, haverá suspensão do curso da prescrição até o término do mandato

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma decisão sensata. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5569, 30 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69311. Acesso em: 22 dez. 2024.

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