Reza o artigo 178 da Lei 8069/90:
"O adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade."
A redação gramatical, s.m.j., não deixou margem para nenhum outro tipo de interpretação que possa gerar equívoco. Não há que se buscar à vontade do legislador fora do texto expressamente redigido. No entanto, temos observado em mandados de internação judicial a seguinte expressão: "devendo a autoridade policial, no cumprimento da presente medida, obedecer ao disposto no artigo 178 da mesma lei".
Compulsando a melhor doutrina encontramos opiniões geradoras da preocupação que ora nos permitimos discutir. Jurandir Norberto Marçura(1) ao comentar referido dispositivo entendeu que houve vedação de condução em compartimento fechado "tendo em vista a presunção legal de que esse procedimento atenta contra a dignidade do adolescente, pondo em risco sua integridade física ou mental". Sustentou ser corolário do artigo 227, § 3. º, V, da Carta Magna, admitindo o uso de algemas quando demonstrada imperiosa necessidade e entendendo que a proibição não atinge viaturas onde o banco traseiro seja "impedido por grade ou dispositivo análogo".
Já Paula Inez Cunha Gomide(2) caminhou pela mesma lógica, fundamentando que "o adolescente comete atos anti-sociais como forma de contestação aos valores estabelecidos ou de reação à miséria à qual está subjugado", devendo ser submetido a "medidas educativas e não punitivas, evitando-se traumas que podem dificultar, se não inviabilizar, as propostas terapêuticas".
Discordamos, data venia, de tais entendimentos. Com efeito, uma linha tênue de distinção pode separar medida educativa e medida punitiva, quando não for de dupla natureza, como na hipótese regulada pelo artigo 124, § 2. º, da lei em comento. Ademais, a ação policial, longe de objetivar meios educativos está muito mais voltada à segurança geral (do adolescente, dos próprios agentes, e da sociedade tutelada – vítimas, testemunhas e terceiros), conforme se extrai do próprio Estatuto:
"Art. 125. É dever do Estado zelar pela integridade física e mental dos internos, cabendo-lhe adotar as medidas adequadas de contenção e segurança." (grifei)
A exegese do dispositivo enfocado impõe uma rigorosa interpretação gramatical. Depois disso, a discussão quanto à subjetividade da honra em sua expressão dignidade versus vexame (art. 232 do ECA). Iniciaremos com uma incursão aos tratadistas do idioma português.
O professor Pasquale Cipro Neto(3) explicando problemas da linguagem escrita assevera: "um dia, aprendemos na escola que ‘vírgula é para respirar’. Santa bobagem! A vírgula não é um bálsamo pulmonar; é um instrumento sintático-estilístico [...] Não se colocam as vírgulas como quem salpica orégano em uma pizza".
Na mesma esteira, o professor Luiz A. P. Victória(4) ensina que, embora "ela (pontuação) não obedeça a cânones rígidos, deve, todavia, ater-se a regras básicas [...] a má pontuação não só torna o estilo defeituoso, como poderá alterar por completo a fisionomia da frase, alterando-lhe por completo o sentido".
Já o professor Alfheu Tersariol(5) pontifica que a vírgula "serve para indicar uma pausa breve", enquanto o ponto-e-vírgula indica uma "pausa maior que a vírgula". O ponto final "é usado para fechar o período, isto é, indicar o fim de um período, ou o término de um pensamento".
Nem discutiremos regras excepcionais quanto ao uso da vírgula, conhecidas como pausas proibida, excepcional, ou inoportuna (ou erros de fôlego).
De outro lado, devemos analisar o conectivo "ou", relação lógico-semântica do tipo disjuntiva, que pode ter dois valores: exclusivo, isto é, um ou outro, mas não ambos; ou inclusivo, ou seja, um ou outro, possivelmente ambos. Exemplos:
-Você vai passar o fim de semana em São Paulo ou no Rio? (exclusivo).
-Em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à
sua integridade física ou mental (inclusivo e/ou).
Vejamos como seria objetiva a redação do artigo 178 se a intenção do legislador fosse a proibição pura e simples:
"Art. 178. O adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial."
Assim, ao invés de finalizar o período e encerrar o pensamento, o legislador preferiu dar uma "breve pausa", prosseguindo na sua linha de raciocínio, explicitando as ações que pretendeu coibir (atentado à dignidade ou à integridade).
A diferença entre condução e transporte não nos pareceu substancial, depreendendo-se que a primeira é aquela coercitiva, dentro da comarca ou circunscrição, visando qualquer ato ou procedimento legal, enquanto a segunda seria a remoção propriamente dita do internado para unidade apropriada.
Para socorrer nossa esposada tese vamos buscar comparação com o discutido artigo 309 do Código de Trânsito. Restou assente em doutrina e jurisprudência que não haverá delito se o condutor de veículo, não habilitado, não estiver "gerando perigo de dano". Ora, se finalizássemos o dispositivo de outro modo teríamos:
"Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se casado o direito de dirigir: Penas [...]
Com tal redação não se exigiria a geração de perigo para completar o tipo legal de crime. Nem se diga que se não for em via pública...; e nem tampouco iremos repisar argumentação sobre o uso do conectivo "ou".
Voltando ao artigo 178 do ECA, cuja melhor interpretação almejamos, faltou analisar a "pena de responsabilidade". Heitor Costa Jr.(6), comentando o artigo 232 do ECA, anotou que tanto a Constituição quanto a Lei de Execução Penal salientam o respeito que se deve ter pela "integridade física e moral do detento". Exemplifica com o impedimento de identificação criminal do civilmente identificado (que a lei 10.054/00 e o Parecer n.º 58/02-J, de 30/01/02, da Corregedoria Geral de Justiça/SP, regularam posteriormente, abrandando as proibições, no interesse da proteção da sociedade). E conceitua: "vexame é a afronte, ultraje [...] atos que o expõem ao desprezo, zombaria, ridículo". É o ‘constrangimento ilegal’, ou ‘castigo cruel ou infamante’.
Muitas vezes, em se tratando de honra, o que é injurioso para uns não o é para outros; e não atingindo objetivamente o maior imputável não atingirá o adolescente, por só esta condição.
Logo, conduzir ou transportar preso comum (adulto) ou adolescente em compartimento fechado de viatura policial (especialmente veículos novos, dotados até de ar condicionado que, não raro, alcança o compartimento de transporte) não será proibido, se as condições forem padronizadas, compatibilizando respeito com segurança e seriedade. Portanto, o legislador não quis dizer menos do que disse; ele quis dizer exatamente o que está escrito e nós não podemos reduzir sob nenhum pretexto.
Afinal, não é caso para se discutir métodos educacionais: se o adolescente estiver sendo transportado de uma unidade da FEBEM para outra é porque pouca coisa não fez. A voltinha em compartimento fechado não irá melhorá-lo, nem piorá-lo. Certamente os processos educativos na escola, família, religião, etc., já falharam há muito tempo. Os traficantes de drogas do Rio de Janeiro e os membros do PCC em São Paulo são, por assim dizer, filhos do Estatuto, criados sob sua égide e proteção (ou não foram adolescentes infratores, dez, doze anos atrás?).
Mais uma vez comparando, o Estatuto é como o Código de Trânsito: lei boa com estradas ruins. Leis para a Suíça? Até hoje não temos Centros de Triagem e locais adequados para encaminhamento de menores. Continuam sendo "alojados" em delegacias aguardando vagas na velha e duradoura FEBEM. Nada de novo. Ou melhor, temos sim: os velhos camburões da Polícia que circulavam no dia 13 de julho de 1990 viraram sucata.
Felizmente nos resta a voz de alerta do legislador, ecoando reiteradamente: ‘transportem como for necessário, sempre com segurança e respeito à dignidade e à integridade de todos’.
Notas
(1)
CURY, Munir et al (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, 3.ª ed., São Paulo:Malheiros, 2000, pp. 256-257.
(2)
Ibidem, p. 527.(3)
LIMA, João Gabriel de. Falar e escrever, eis a questão. Veja, n.º 44, p. 107, 07, novembro, 2001.Reportagem.
(4)
VICTÓRIA, Luiz A. P.. Aprenda a Redigir Corretamente, Rio de Janeiro: Tecnoprint, [199-?], p. 18.(5)
TERSARIOL, Alfheu. Gramática e redação, Rio Grande do Sul: Edelbra, [199-?], pp. 380-388.(6)
CURY, Munir et al (coord.). Ob. cit., pp. 750-752.