O federalismo brasileiro antes de ser um fenômeno jurídico, o é também enquanto fato decorrente das forças histórico-sociais, e as suas raízes são mais profundas que os atos políticos de 1889 - revolução vitoriosa de 15/11 e 1891 - primeira Constituição republicana, que por vezes emergiam à superfície - a exemplo dos projetos da Monarquia Federativa de 1831 e 1869.
Na nossa federação a ideia de descentralização e autonomia dos Estados-membros sempre caminhou ao lado da democracia: identificamos habitualmente a centralização com o autoritarismo e a descentralização com avanços democráticos.
No regime autoritário de 1937, por exemplo, a federação era apenas nominal e ‘de fachada’. Chegou-se ao ponto de, naquele ano, ter ocorrido uma grande cerimônia de queima das bandeiras dos Estados-membros.
Já com a atual Constituição Federal ocorre justamente o oposto: o processo de sua elaboração refletiu uma reação natural a vários anos de concentração do poder político, sendo descentralizadora e aperfeiçoadora do federalismo cooperativo, de modo que o Estado possa cumprir os seus compromissos com o bem-estar social e a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais e regionais.
Tendo a igualdade e a justiça como metas prioritárias da Constituição de 1988, o federalismo cooperativo ou financeiro no Brasil, mediante a repartição do produto da arrecadação, tem importante função no amortecimento das desigualdades fiscais, e permite que entes estatais sejam beneficiários de rendas, relativas a tributos de competência alheia.
Efetivamente, a repartição de receita, conferindo independência na obtenção de recursos, é um mecanismo imprescindível à autonomia dos entes federados, para que não precisem sujeitar-se a outro com vistas a obter os meios financeiros suficientes para atender às necessidades públicas que estejam sob a sua responsabilidade, sendo, portanto, uma peça de sustentação do nosso federalismo.
Acerca do assunto, o Ministro Gilmar Mendes quando do julgamento da ADI n. 875, assim asseverou:
O modelo de distribuição das receitas tributárias adotado pela Constituição de 1988 — partilha por meio de fundos (art. 159, I) e participação direta no produto da arrecadação (arts. 157, 158 e 159, II [o inciso III do art. 159 fora incluído pela EC 44, de 2004]) - possibilita a redução ou a atenuação das disparidades existentes entre as unidades da Federação. Isso porque os Estados e Municípios mais pobres, não obstante as inúmeras demandas sociais, possuem, em regra, menor arrecadação tributária direta, e que é compensado pelas transferências intergovernamentais. Se mantido, em nosso país, o modelo próprio de federalismo clássico (duas federalism), segundo o qual as unidades federadas deveriam se manter, exclusivamente, com o produto da arrecadação dos tributos de sua própria competência, o fosso econômico entre os entes federativos apenas se aprofundaria, e não restaria atendida a exigência contida na parte final do art.160, II, da Constituição. (fls. 254)
O aspecto financeiro da autonomia dos entes federados é, sem dúvida, o seu lado mais relevante. Afinal, sem recursos para exercer a sua autonomia política de modo a exercer as suas competências constitucionais, e as funções que lhe são atribuídas, toda e qualquer delegação de poder (administrativo, judiciário, legislativo e político) aos Estados-membros seria inócua, porquanto estes dependeriam permanentemente das verbas do poder central para o atingimento de suas finalidades.[1]
Sendo assim, dada as necessidades financeiras dos entes políticos que compõem a federação, entendeu o Legislador Constituinte por estabelecer nos arts. 157 a 162 da Constituição de 1988, a repartição de receitas obrigatórias de natureza tributária, incluindo-se tanto as atribuídas aos entes políticos da federação quanto as que compõem os fundos financeiros, bem como as que constituem transferência propriamente dita em razão de sua origem distinta. Dentre tais dispositivos, importa destacar a previsão constante no art. 159, III, da Constituição Federal que ordena que a União proceda à entrega de 29% do produto da arrecadação da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, também denominada Cide-Combustíveis, aos Estados e Distrito Federal.
A Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, ou contribuição interventiva, tem previsão constitucional nos arts. 149 (Cide) e 177 § 4º (Cide-Combustíveis), com redação da Emenda Constitucional nº 33, de 11 de dezembro de 2001.
Sem necessidade de um maior esforço interpretativo da norma constitucional de repartição da Cide-Combustíveis, extrai-se expressamente do texto que a União é obrigada a entregar, ou seja, fazer chegar às mãos dos Estados e do Distrito Federal, 29% do produto da arrecadação desse tributo.
Consoante testifica o professor Kiyoshi Harada[2]: “a entidade política contemplada tem uma expectativa de receber o quantum que lhe cabe segundo os critérios estabelecidos na Constituição. Tanto é que o texto constitucional emprega a expressão “a União entregará”.
E essa entrega há de ser realizada diretamente pela União aos Estados e Distrito Federal, ou seja, não sendo utilizada a forma oblíqua, mediante a interposição de um fundo público, como ocorre no caso do art. 159, I da CF.
Das regras de repartição previstas no art. 159 da Constituição Federal, o inciso III estabelece, consoante visto, a repartição da receita da Cide-Combustíveis, conferindo aos Estados e o Distrito Federal o direito de receber 29% do produto da arrecadação, sendo inaceitável regra prevista em norma infraconstitucional que preveja um percentual abaixo do estabelecido.
Oportuno sublinhar que nas transferências obrigatórias, como no caso as referentes ao produto da arrecadação da Cide-Combustíveis, o tributo ao ser criado já pertence ao ente político recebedor da futura transferência - e não apenas ao ente público instituidor, fiscalizador e arrecadador -, de modo que, realizada a arrecadação, deve-se proceder à partilha do quantum determinado pela Constituição Federal.
A Cide-Combustíveis, incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível – foi instituída em 19 dezembro de 2001, pela Lei 10.336, posteriormente alterada pela Lei 10.866, de 2004, incluindo o Art. 1º-A, que fora confeccionado com a finalidade de dar efetividade ao comando inserto no artigo 159, III e § 4º da Constituição Federal, em sua redação determinada pelas ECs 42/2003 e 44/2004.
Contudo, a parte final do acrescido art. 1º-A à Lei 10.336, de 2001, em flagrante afronta aos arts. 3º, III c/c art. 170, VII, art. 60 § 4º, I, 159, inciso III e § 4º c/c art. 177, § 4º e 160 da Constituição Federal – dispositivos estes que materializam a devida repartição das receitas tributárias, um dos pilares da manutenção do pacto federativo -, previu que, do montante a ser transferido aos Estados, haveria a dedução da parcela desvinculada nos termos do art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT.
Este (art. 76 do ADCT), com redação dada pela Emenda Constitucional - EC 93, de 8 de setembro de 2016, prevê a Desvinculação das Receitas da União - DRU, que é uma regra que estipula que 30% das receitas da União ficariam provisoriamente desvinculadas das destinações fixadas na Constituição.
Ocorre que, em momento nenhum do novo texto do art. 76 do ADCT, há a previsão da possibilidade de desvinculação da parcela da transferência obrigatória constitucionalmente conferida aos Estados e ao Distrito Federal, e nem poderia fazê-lo, tendo em vista que o art. 159, III da Constituição Federal é expresso em determinar que 29% do produto da arrecadação da Cide-Combustíveis há de ser entregue aos Estados e ao Distrito Federal.
Nessa acepção, a maneira adequada de se conformar o texto do art. 76 do ADCT ao comando inserto no art. 159, III da CF é entendendo que as transferências obrigatórias do produto da arrecadação da Cide-Combustíveis, para os entes da federação, devem ser feitas antes da desvinculação. E pouco importa o fato de ter sido revogada a redação anterior do § 1º do art. 76 do ADCT, que previa expressamente que a base de cálculo das transferências aos Estados não seria reduzida, uma vez que o comando do art. 159, III da CF permanece incólume, e ordena a entrega, sem deduções, de 29% aos Estados do produto da arrecadação, e não apenas 20,3%, caso se aplicasse incorretamente a regra de desvinculação.
Ademais, se acaso se entendesse pelo amesquinhamento do inciso III do art. 159 da Constituição Federal, haveria confronto também com a cláusula pétrea delineada no art. 60, § 4º, I da Carta Magna, vez que configurada a agressão ao princípio federativo.
Não obstante, os Estados foram surpreendidos quando receberam a menor a parcela obrigatória da Cide-Combustíveis de outubro de 2016, com um desfalque de 8,7% do produto da arrecadação, vez que a União, valendo-se dos efeitos retroativos ao mês de janeiro da EC 93/2016, e da inconstitucional previsão no art. 1º-A da Lei 10.336, de 2001, utilizou-se da DRU, prevista no art. 76 do ADCT, para se apropriar de recursos dos Estados.
Referida previsão legal é uma ameaça inadmissível à Supremacia da Constituição, pois culmina por introduzir um grave fator de ruptura e de desestabilização político-jurídica da federação.
Sobrelevando as sábias palavras do eminente decano da Corte Suprema Ministro Celso de Mello[3]: “Nada compensa a ruptura da ordem constitucional. A relação do Poder e de seus agentes, com a Constituição, há de ser, necessariamente, uma relação de respeito."
Este tipo de comportamento por parte da União é inaceitável e desleal, justo porque a federação impõe os valores de cooperação, solidariedade e lealdade entre seus membros, não havendo espaço para artifícios e manobras.
O impacto da diminuição das transferências relativas à Cide-Combustíveis foi drástico, e dominou a pauta da 3ª Reunião de Trabalho do Conselho Nacional de Secretários de Transportes dos dias 16 e 17 de novembro de 2016, da qual inclusive resultou uma agenda propositiva que foi entregue durante uma audiência com a cúpula do Ministério dos Transportes – oportunidade em que falei em nome dos Estados e do Distrito Federal, reivindicando o pronto cumprimento, por parte da União, do art. 159, III da Constituição Federal, de modo que os Estados-membros não fossem privados de recursos essenciais à consecução de suas atividades públicas, os quais lhes são garantidos pela Constituição Federal.
Diante do impasse entre a ordem jurídica parcial - representada pelos Estados e pelo Distrito Federal, e a ordem jurídica central - a União, a nossa República prevê a ordem total - a Constituição, a efetivar a solução. É nesse contexto que a Suprema Corte atua como Constituição, porque representa o poder total, é dizer, representa a comunidade total.
Nesse sentido, o Estado do Acre, atuando como instrumento para reação da própria Constituição Federal agredida, ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5628, com pedido de medida cautelar, requerendo fosse declarada, com efeito ex tunc – ou seja, retroagindo para fulminar de nulidade a norma desde a sua origem-, a inconstitucionalidade material da expressão “e a parcela desvinculada nos termos do art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, inserta na parte final do caput, do art. 1º-A da Lei 10.336, de 2001.
Os demais Estados-membros e o Distrito Federal, por intermédio da Câmara Técnica do Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais, ingressaram no feito, na qualidade de amicus curiae.
No dia 19 de dezembro de 2016, em uma de suas últimas decisões importantes em vida, o então Relator da ADI, saudoso Ministro Teori Zavascki, corajosamente, deferiu o pedido da medida cautelar para suspender a eficácia da norma inconstitucional que estava prejudicando os Estados-membros.
Destacou o Ministro que “As redações atribuídas ao longo do tempo ao caput do art. 76 do ADCT estabeleceram que diferentes percentuais da arrecadação deveriam ser desvinculados “de órgão, fundo ou despesa”, sem jamais se referir à destinação federativa”. E ainda, a justificar a adoção da medida cautelar ad referendum do Plenário:
O perigo de dano, em proporções assim dilatadas, é ainda mais pronunciado no cenário de recessão econômica atualmente instalado no país, que tem dificultado o cumprimento de metas de responsabilidade fiscal pelas unidades federadas, o que comprova o risco de dano irreparável. Com a proximidade do período de recesso judiciário, e a consequente inviabilidade de submissão célere do caso à apreciação do Plenário, também fica configurada situação de urgência excepcional, que autoriza a atuação monocrática, ad referendum do Plenário, nos termos do art. 21, V, do RISTF.
Com esta decisão monocrática, os Estados-membros, bem como o Distrito Federal, tiveram restaurado o seu direito à percepção de 29% do produto da arrecadação da Cide-Combustíveis, consoante determina o art. 159, III da Constituição Federal.
No último dia 03 de outubro, o Plenário iniciou o julgamento do referendo da medida cautelar, tendo o atual Relator, Ministro Alexandre de Moraes, votado no sentido de confirmar a medida cautelar concedida monocraticamente, já adiantando o seu voto quanto ao mérito da Ação, para declarar inconstitucional a parte final do art. 1º-A da Lei 10.336/2001, com a redação da Lei 10.866/2004. O julgamento foi interrompido com o pedido de vista dos autos pelo Ministro Marco Aurélio, tendo este devolvido, no dia 16 de outubro, os autos para continuidade do julgamento da Ação.
A perspectiva, quando desse retorno de julgamento, é de que haja unanimidade entre os Ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal, no sentido de referendar a medida cautelar na ADI, uma vez que restou axiomática a violação às normas de descentralização financeira previstas na Constituição Federal.
Tem-se, portanto, que desta querela irrompida como reação a uma norma ambiciosa e inconstitucional por parte do poder central, a mensagem da Suprema Corte é tangível no sentido de apreço ao federalismo esboçado na Carta Constitucional. Os Estados-membros saem fortalecidos!
Notas
[1] MOREIRA, André Mendes. Direito Financeiro na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – Homenagem ao Ministro Marco Aurélio. Curitiba: Juruá, 2016, p. 71.
[2] HARADA, Kiyoshi. Repartição de Receitas Tributárias. In Tratado de Direito Financeiro. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 56/57.
[3] Relator da ADI 2010 MC/DF.