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A ultratividade das normas autônomas no Direito do Trabalho: uma análise crítica do artigo 614, §3° da CLT à luz da reforma trabalhista

Agenda 23/10/2018 às 21:32

O artigo tem por finalidade a análise do instituto da ultratividade no âmbito de aplicação das normas coletivas (autônomas) no Direito do Trabalho, correspondendo ao art. 614, §3° da CLT, tratando-se dos acordos e das convenções coletivas.

RESUMO

A Reforma Trabalhista (Lei n° 13.467/2017) abalou de forma profunda e abrangente o Direito do Trabalho, ocasionando embates e novos enfrentamentos acerca de questões que envolvem, sobretudo, o polo mais fraco nessa relação: o trabalhador. Há famigerada discussão acerca de retrocessos quanto a um arcabouço jurídico que, em sua natureza, deveria ser progressista. Um desses prováveis retrocessos será objeto de estudo do presente artigo, que tem por finalidade a análise do instituto da ultratividade no âmbito de aplicação das normas coletivas (autônomas) no Direito do Trabalho, correspondendo ao art. 614, §3° da Consolidação das Leis Trabalhistas, tratando-se dos acordos e das convenções coletivas de trabalho. Buscou-se, em âmbito geral, fazer um estudo na negociação coletiva com base nas normas presentes na Constituição Federal, por ela recepcionadas, e, em amplitude específica, analisar o instituto da ultratividade das normas coletivas à luz da Reforma Trabalhista, sobretudo por representar, em nosso sentir, um enfraquecimento das relações sindicais, pelo fato de tal instituto ter sido vedado pela reforma, mesmo diante de situações mais benéficas para o salariado. Para isso, foi realizado levantamento bibliográfico de alguns autores, com o fito de colher informações e confrontar opiniões, bem como arrolamento jurisprudencial sobre tal questão, examinando quais as implicações práticas que essa norma gera para as relações trabalhistas, sobretudo por acreditarmos que debilita as relações sindicais, acarretando perca de direitos por parte dos trabalhadores.

Palavras-chave: Reforma Trabalhista. Consolidação das Leis Trabalhistas. CLT. Ultratividade. Negociações Coletivas. Relações Sindicais. Normas Autônomas.

INTRODUÇÃO

A Reforma Trabalhista no Brasil (Lei n° 13.467 de 13 de julho de 2017) entrou em vigor em novembro de 2017 e alterou sensivelmente o ordenamento jurídico que regula as relações trabalhistas desde a instituição da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943. Essa lei mudará de forma considerável a logística trabalhista no país em diversos âmbitos, sobretudo no que diz respeito aos efeitos das normas coletivas autônomas e a sua ultratividade, que é assunto de estudo neste trabalho.

Tal Reforma tem um cunho progressista, ao menos assim se apresenta, tendo como objetivos, no plano teórico, valorizar e fortalecer a negociação coletiva – que é onde se concentrará nosso estudo –, além de modernizar as relações de trabalho, dar segurança jurídica às partes e gerar novos empregos formais. Porém, na realidade, busca reduzir os custos do empregador, facilitar a precarização das relações de trabalho, ampliar o lucro e a competitividade das empresas e enfraquecer a relação sindical. É primordialmente através desta última crítica que nossa argumentação será fundada.

É notório lembrar ainda que as normas autônomas no Direito do Trabalho são criadas através de dissídio coletivo entre patrão e empregado, por meio das negociações coletivas, possibilitadas, por sua vez, pela ação sindical, autorizada e regida constitucionalmente. Essas normas são fontes autônomas da relação trabalhista e têm validade como qualquer outra fonte de outra tipologia e origem em tal ramo do Direito. No plano prático essas normas de negociação coletiva mostram-se através dos acordos e das convenções coletivas de trabalho.

Com isso, cabe delinear algumas linhas a respeito das negociações coletivas de trabalho, sendo visualizadas, segundo Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado (2017) da seguinte forma:

A negociação coletiva trabalhista é importante veículo de melhoria e aperfeiçoamento das condições de contratação e gestão trabalhistas no âmbito das empresas e dos estabelecimentos. É mecanismo que se ajusta, sem dúvida, à estrutura e lógica jurídicas ao Estado Democrático de Direito. (Grifo meu).

Essa temática foi recepcionada constitucionalmente, presente no art. 7°, VI, XIII e XXVI, CF, coadunando, dessa forma, para a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” (art. 3°, I, CF), fundada na cidadania (art. 1°, II, CF), na dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CF) e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1, IV, CF).

Dessa maneira, no Direito do Trabalho, as negociações coletivas são exteriorizadas, como já mencionado, por meio das normas autônomas, que são idealizadas e ratificadas nessas negociações, sendo imprescindíveis dentro de tal ramo, pois tratam-se de regras produzidas com a imediata participação dos destinatários, tanto empregados como empregadores. A Constituição, como Lei Maior, enfrentou a questão da negociação coletiva de modo satisfatório, atrelado também a outros princípios que os validam, tais como os vários direitos fundamentais do seu art. 3°: garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.  Todavia, o que nos parece é que a Lei Trabalhista, reformada nesse quesito, veio a diminuir a relação sindical e coletiva, acarretando a retirada de direitos e precarização das negociações entre trabalhador e patrão.

Uma das razões dessa diminuição das relações sindicais é justificada pela nova norma do art. 614, §3° da CLT, que trata mais em específico da ultratividade dessas normas coletivas, de natureza autônoma, prelecionando a impossibilidade de as mesmas terem duração superior a 2 (dois) anos, sendo vedada a ultratividade dessas normas, preceito que provoca intenso embate na doutrina e na jurisprudência, esta, muitas vezes, atuando de maneira vacilante quanto ao âmbito de aplicação dessa norma.

Além disso, em nossa apreensão, o instituto da ultratividade fere um princípio determinante do Direito do Trabalho, o princípio da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador e da condição mais benéfica, advinda do princípio mor da proteção. Discussão que será desenvolvida nos tópicos que se seguem.

Devido a essas questões, o presente artigo objetiva o estudo e análise crítica do art. 614, §3°, um dos artigos que trouxe nova significância às questões referentes a negociação coletiva de trabalho. Serão levantados questionamentos, tais como: O que é o instituto da ultratividade e quais as implicações práticas que essa nova norma gera para as relações trabalhistas no país? Qual a razão dessa reforma trazer um retrocesso para os direitos dos trabalhadores? Por que a limitação temporal de tais normas (dois anos) traz prejuízos às negociações coletivas, enfraquecendo a relação sindical? Em que grau o princípio da norma mais favorável ao trabalhador e da condição mais benéfica é ferido?

São essas indagações que servirão como suporte do debate aqui suscitado, para que possibilite a extração de reflexões, problematizando tais questões e mitigando efeitos da vedação da ultratividade das normas coletivas no campo trabalhista.

A NEGOCIAÇÃO COLETIVA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

A Lei Maior abrangeu a questão da negociação coletiva em diversos de seus dispositivos, estes, por sua vez, também embasados em princípios republicanos e direitos fundamentais nela postulados. Com isso, devemos enxergar essas normas gerais como diretrizes que devem ser amplamente respeitadas pelas demais normas do arcabouço jurídico do Brasil, como já se sabe da sobreposição das normas constitucionais frente a outros códigos no ordenamento do país, devido à maior dificuldade de modificação de suas normas pelo processo legislativo.

Essas cláusulas referentes às negociações coletivas estão presentes no art. 7°, dentro do capítulo que trata dos direitos sociais, visualizados como primordiais para a construção efetiva do Estado Democrático de Direito, representando uma conquista histórica e evolutiva para a consecução do desenvolvimento social, garantindo condições de convivência harmônica no país.

Esse artigo trata dos direitos dos trabalhadores, com alguns incisos referentes às negociações coletivas, primeiro deles está no inciso VI: “irredutibilidade do salário, salvo disposto em convenção ou acordo coletivo”. Não só uma norma constitucional, a irredutibilidade salarial traduz-se em um princípio de fundamental importância para as relações individuais de trabalho, assegurando aos trabalhadores o direito de não sofrer decréscimos em seus salários por imposição unilateral dos empregadores. Na regra explicitada, os salários não podem ser reduzidos, exceto quando acordo ou convenção coletiva fixar essa regra.

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Logicamente, na prática, os empregados não irão negociar para reduzir seu plano salarial, isso se dá por parte do empregador, que não raras vezes realizam manobras com o intuito de reduzir gastos do seu empreendimento, acabando por reduzir os salários, afrontando a norma constitucional de irredutibilidade salarial.

Já o inciso XIII preleciona que: “duração de trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”. Esse limite diário de horas trabalhadas também está previsto constitucionalmente no art. 58 e 67 da CLT. É também facultada a redução da jornada de trabalho mediante acordo, convenção coletiva de trabalho ou sentença normativa em dissídio coletivo. 

O inciso XXVI traz reconhecimento ao acordo e a convenção coletiva, sobretudo por se tratar de norma autônoma, tendo natureza jurídica de Contrato Coletivo de Trabalho, possuindo todos os elementos que o caracterizam: bilateral, formal e solene. Sobre a definição legal e doutrinária de tais institutos, nos debruçaremos sobre eles no tópico que se segue.

Em complemento, há também o art. 115, §2°, CF: “recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.

Em suporte a essas normas, há ainda uma série de outras regras referentes aos direitos sociais, que funcionam como motor impulsionador dessas normas/fontes autônomas, considerando, por exemplo, que a ordem econômica é "fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa" (...) tendo "por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (caput do art. 170 da CF). Tal ordem econômica deve observar, entre outros, os seguintes princípios constitucionais: "função social da propriedade" (art. 170, III, CF); "defesa do meio ambiente (...) " (art. 170, III, c/c art. 225, ambos da CF), nele compreendido o meio ambiente do trabalho (art. 200, VIII, in fine, CF); "redução das desigualdades regionais e sociais" (art. 170, VII, CF); "busca do pleno emprego" (art. 10, VIII, CF).

O que se observa, com essas normas constitucionais amplamente difundidas, é que não há espaço, na Constituição Federal, para a concepção da negociação coletiva trabalhista como mecanismo de precarização e rebaixamento do valor do trabalho, como se mostra tal temática dentro da Reforma Trabalhista, bem como das condições de contratação e gestão da força de trabalho na economia e na sociedade brasileiras. É nesse eixo que se denota a importância de tal estudo, pois, de fato, um preceito constitucional protetivo jamais deve ser diminuído e limitado em face de interesses e regulações do Direito Privado para favorecimento de interesses individuais.

Gabriela Godinho Delgado e Maurício Godinho Delgado (2017) apud Maurício Godinho Delgado, na 7ª edição de sua obra, Direito Coletivo do Trabalho:

A Constituição de 1988 buscou implantar no País um Estado Democrático de Direito, estruturado a partir de um tripé conceitual, a saber: a pessoa humana, e sua dignidade; a sociedade política, democrática e inclusiva; a sociedade civil, também democrática e inclusiva. (Grifo meu).

            Foi nessa dimensão, como meio de favorecer a democratização da sociedade civil, a Constituição estimulou a negociação coletiva trabalhista, nos dispositivos já mencionados. Estes, por sua vez, criam uma dimensão no Direito Coletivo de Trabalho, pois o que se nota é que esse método de criação de normas e resolução de conflitos era o mais utilizado nas relações de trabalho, contudo, antes da Constituição de 1988 ainda não havia uma ratificação constitucional dessa regulação. O que aconteceu foi que essa solução de conflitos foi ganhando cada vez mais espaço na realidade brasileira, necessitando de uma positivação constitucional, foi o que houve com essas normas na Constituição de 1988, ganharam seu espaço como adaptação aos novos fenômenos que vinham acontecendo nas relações trabalhistas.

            Em conluio à essas ideias, é relevante sempre ter em mente o princípio de maior importância no âmbito trabalhista, a Proteção ao Trabalhador em meio a um conjunto de requisitos da relação de trabalho que facilmente pode vir a precarizar a sua situação frente ao empregador. É por isso que se afirma que quanto maior o requisito da subordinação no Direito do Trabalho, não apenas a funcional como também a jurídica, maiores devem ser os instrumentos e mecanismos utilizados para se defender esse trabalhador em meio a uma situação conflituosa.

A VEDAÇÃO À ULTRATIVIDADE DAS NORMAS AUTÔNOMAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO ART. 614, §3° DA CLT.

À priori, observemos o texto do §3°, art. 614 da Consolidação das Leis Trabalhistas: Não será permitido estipular duração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho superior a dois anos, sendo vedada a ultratividade”.

De um lado a lei proíbe, taxativamente, que as convenções e acordos coletivos de trabalho ostentem prazo de vigência superior a dois anos; de um outro, veda também a ultratividade desses documentos coletivos. A ultratividade é o instituto jurídico que permite que uma norma sem eficácia, portanto revogada, venha a incidir novamente no caso concreto, ou seja, nesse caso as cláusulas normativas podem vir a produzir efeitos mesmo após o término de sua vigência.

Vólia Bomfim Cassar (2017) cita algumas limitações que essa ultratividade pode sofrer de acordo com o caso concreto:

Mesmo que a norma seja mais favorável ao empregado, se violar dispositivo expresso na lei ou for inconstitucional, não poderá ser aplicada. É o que ocorre quando uma norma coletiva concede aumento coletivo que contrarie lei de política salarial – art. 623 da CLT c/c Súmula n° 375 do TST ou no caso do empregado que paga salário acima do teto para empregado público da administração direta, autárquica e fundacional.

Por sua vez, Francisco Araújo, Carolina Dias, Paula Machado e Everton Moraes, em obra conjunta, assim conceituam o instituto da ultratividade:

A ultraeficácia das normas coletivas pode ser compreendida como a possibilidade de as cláusulas normativas ajustadas, mesmo decorrido seu prazo de vigência, permanecerem produzindo efeitos nos contratos individuais de trabalho. Tendo as categorias econômica e profissional definido determinada condição de trabalho aplicáveis aos trabalhadores integrantes da categoria profissional respectiva, mesmo após expirado o prazo de vigência da norma coletiva na qual foi estabelecida essa condição, ela não será suprimida, ou seja, não terá sua eficácia condicionada à vigência da norma (sujeita a prazo), mas si integrar-se-á aos contratos daqueles trabalhadores. Essa, em síntese, é a ideia central da ultraeficácia.

A nossa compreensão é de que a maior duração da negociação coletiva trabalhista (acordo e convenção coletiva), uma vez tratadas como fontes autônomas do Direito do Trabalho, é sempre mais positiva para os trabalhadores, pois preserva, automaticamente, as cláusulas fixadas nesses acordos e convenções. Nos parece um retrocesso a ideia de limitação temporal demasiada de tais acordos, pois a bem da verdade a Reforma Trabalhista deve retratar um arcabouço jurídico com visão de melhoria e progresso, e quando existem regras que limitam tal evolução, na verdade se está suprimindo direitos. Importante mencionar ainda a relevância de tais instrumentos coletivos, pois empregados e empregadores historicamente possuem interesses antagônicos.

Dado isso, uma regra permissiva de maior flexibilidade na duração do instrumento coletivo negociado (em conformidade com o disposto pelo próprio instrumento por exemplo), em agregação à regra da possibilidade de ultratividade do documento coletivo negociado, tudo, em conjunto, assegura aos trabalhadores a mantença das dezenas de cláusulas do documento coletivo celebrado anos atrás - caso frustrada a negociação coletiva trabalhista e/ou a arbitragem coletiva.

Eis o que explicita Mauricio Godinho Delgado a esse respeito:

Buscando-se preservar o debate acadêmico e científico nesse específico ponto - ou seja, incentivo à negociação coletiva trabalhista e vedação à interpretação concernente à ultratividade provisória de regras de ACT ou CCT (interpretação constante da atual Súmula 277 do TST) -, cabe reenfatizar que a negociação coletiva trabalhista supõe o respeito a certos princípios e/ou requisitos, sob pena de se transformar em perverso instrumento de precarização de direitos individuais e sociais fundamentais trabalhistas, sem contar de manifesta inversão da lógica e estrutura normativas e principiológicas da Constituição da República, que são fundadas, como se sabe, na centralidade da pessoa humana na ordem social e na ordem jurídica.         

            Neste sentido, conquanto a lei preveja requisitos de validade das convenções e acordos coletivos de trabalho, dentre eles a vigência que, segundo previsão no art. 613, II, da CLT, os referidos instrumentos não podem ser celebrados por prazo indeterminado, a jurisprudência caminha em sentido contrário, eis o que preleciona a polêmica Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho, criada em 2009 e editada pela última vez em 2012:

Súmula 277 do TST. CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO OU ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. EFICÁCIA. ULTRATIVIDADE. As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificados ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho. 

Tal posicionamento pode representar grandes entraves às negociações coletivas, pois a Súmula então mencionada possibilita que as cláusulas normativas emanem efeitos, mesmo após a sua vigência então definida pela CLT. Dito de outra forma, mesmo que a norma coletiva esteja vencida/expirada, prevalece a obrigação das partes de observarem as disposições econômicas e sociais que não tenham determinação de prazo específico para duração, até posterior norma que estabeleça novas condições.

Essa atual redação da Súmula do Tribunal Superior do Trabalho é vacilante e causa muito embate sobre sua legalidade, ocasionando diversos questionamentos judiciais acerca da ultratividade ou não das normas coletivas. Segundo tal posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho, o atual entendimento consolidado seria decorrente de intepretação constitucional do artigo 114, parágrafo segundo, oriundo da Emenda Constituição nº 45/2004, que teria reinserido o princípio da ultratividade das normas coletivas, já que a redação anterior do texto constitucional não consignava o termo “anteriormente”.

Art. 144, §2° CF: “Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”. 

            O Ministro Gilmar Mendes proferiu decisão liminar nos autos da ADPF nº 323, na qual determinou a suspensão de todos os processos e efeitos de decisões no âmbito da Justiça do Trabalho que discutam a aplicação da ultratividade de normas de convenções e de acordos coletivos. Gilmar Mendes diz ainda que o termo “anteriormente”, presente no dispositivo constitucional, refere-se às sentenças normativas, em que o Poder Judiciário certamente precisa analisar a questão sob o prisma do artigo 468 da CLT, que veda expressamente a alteração lesiva, o que não significa dizer que o texto convencional vencido prevalecerá em vigor sem qualquer alteração, podendo a empresa negociar a não aplicação por meio de concessão de compensações ao trabalhador.

Com a decisão liminar proferida pelo Supremo Tribunal Federal, a Súmula 277 do TST restou suspensa, não se aplicando o consubstanciado pela atual redação. E nesse cenário, atualmente prevalece o entendimento de que as disposições negociadas por convenções ou acordos coletivos de trabalho não integram o contrato de trabalho, possuindo prazo de vigência a ser respeitado pelas partes contratantes. É válido mencionar ainda que essa decisão do STF é em caráter liminar, de modo que decisões futuras a esse respeito podem ser sensivelmente alteradas.

Outro impasse amplamente observado é o fato de que a fixação de termo final de uma norma coletiva pode ir em desencontro ao balizamento constitucional de preferência da norma mais favorável à condição social do trabalhador (art. 7°, caput, CF). O princípio da norma mais favorável e o da condição mais benéfica muitas vezes são tomadas como sinônimas, todavia apresentam peculiaridades importantes.

            No que tange a norma mais favorável, em Direito do Trabalho ela deve ser o ponto de partida, o “vértice” principal, informando que, no caso de conflito entre duas ou mais normas vigentes e aplicáveis à mesma situação jurídica, deve-se preferir aquela mais vantajosa ao trabalhador. Já o princípio da condição mais benéfica, que é o que mais nos interessa nesse estudo, diz respeito à negociação coletiva (acordo e convenção coletiva). Findado o prazo de validade da cláusula criada em dissídio coletivo, sobrevindo outra, menos benéfica, garante-se ao empregado, a validade da condição que lhe seja mais benéfica.

            Ora, fica claro a confusão que se cria quanto à aplicação desse princípio e a norma reformada presente no art. 614, §3° da CLT, pois a mesma tanto limita temporalmente tais acordos como também veda a sua ultratividade para gerar efeitos mesmo após a sua vigência, significa dizer que, quando encerrado seu prazo e sobrevier outra norma que não seja benéfica, esta incide mesmo assim sob força do que instrui a lei. Vê-se, desse modo, uma clara afronta ao princípio máximo trabalhista de proteção ao trabalhador, pois, como o mesmo está sendo amparado pela lei se ela mesmo permite a aplicação de uma situação que muitas vezes possa vir a não lhe favorecer e melhorar sua situação?

            Destarte, é aqui neste ponto da discussão que se pretendia alcançar, uma vez que a Reforma Trabalhista, nesse quesito, reformou para piorar a situação do salariado, disso não há incertezas. Pois, além de prejudicar o trabalhador e lhe retirar direitos a medida em que uma norma menos benéfica pode vir a ser aplicada, também gera um enfraquecimento das relações sindicais que são tão relevantes no âmbito das negociações coletivas.

            Infelizmente, essa Reforma ainda traz muitos benefícios aos patrões que, não raras vezes remodelam termos e condições nos sindicatos, vindo a trazer malefícios ao polo mais fraco dessa relação.

Expostos esses pensamentos, a jurisprudência é vacilante quanto ao âmbito de aplicação dessa norma, a depender da situação e do seu dissabor. A seu turno, o Tribunal Regional do Trabalho da 1° Região entendeu pelo não cabimento da ultratividade das normas quando se tratar de estipulação de salários:

EMENTA: SINDICATO DE EMPREGADOS. AÇÃO COLETIVA. PISO SALARIAL REGIONAL. INVOCAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ULTRATIVIDADE DA NORMA COLETIVA EM RELAÇÃO À ESTIPULAÇÃO DOS SALÁRIOS. NÃO CABIMENTO. FIXAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO FEDERAL NA NORMA COLETIVA. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR 130/2000. 1) É incabível a pretensão da aplicação do princípio da ultratividade da norma coletiva para a manutenção do valor salarial constante da norma coletiva já expirada, tendo em vista o direito coletivo à livre negociação para o reajuste dos salários, bem como a previsão constante da Lei Complementar 103/2000, estipulando piso salarial “para os empregados que não tenham piso salarial definido em lei federal, convenção ou acordo coletivo de trabalho”. 2) Ainda que seja considerado aplicável o princípio da ultratividade da norma coletiva, se o salário mínimo federal é uma garantia para todos, não se poderia de forma alguma excluí-los dos substitutos processuais representados pelo Sindicato Recorrido. Assim, a estipulação do salário mínimo federal, em norma coletiva, por ser desnecessária, não poderia alcançar a finalidade contida na lei complementar, que é de afastar a incidência do piso salarial regional fixado nos Estados sempre que houver negociação coletiva. (TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 1° REGIÃO – RECURSO ORDINÁRIO: RO 00109592220145010055 – SÉTIMA TURMA – Julgado em 01/02/2017). (Grifo nosso)

Por sua vez, o TRT da 6° Região entendeu pela ultratividade quando se tratar a adicional de horas extra, como se segue abaixo:

EMENTA: RECURSO ORDINÁRIO. HOAS DE INTERVALO INTRAJORNADA. NÃO CONCESSÃO. APLICAÇÃO DAS CLAÚSULAS DO ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. ULTRATIVIDADE.

Considerando o princípio da ultratividade das normas coletivas, prorroga-se a aplicação das cláusulas do Acordo Coletivo, no tocante ao percentual de 70% para o adicional de horas extras, para o período posterior a 30/04/2012, pois não há nos autos instrumento coletivo que modifique ou retire esse direito. Todavia, no que é pertinente ao período contratual não prescrito e anterior ao início da vigência dos documentos trazidos aos autos, deve-se aplicar o adicional legal de 50%. Aplicação à espécie das Súmulas n° 264, 277 e 437 do C. TST. Recurso Ordinário parcialmente provido, no aspecto. (TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 6° REGIÃO – RECURSO ORDINÁRIO: RO 00009112120125060221 – SEGUNDA TURMA – Julgado em 30/07/2013). (Grifo nosso).

CONSIDERAÇÕES FINAIS        

As normas autônomas são super relevantes no parâmetro de normas coletivas, pois, tratando-se de fontes autônomas no Direito do Trabalho, versam sobre a relação sindical entre patrão e empregado. Tais normas facilitam a relação de emprego e permitem maior flexibilidade na esfera trabalhista.

Contudo, com o estudo do presente artigo notou-se que a aplicação da ultratividade das normas em Direito do Trabalho por vezes se mostra menos positiva para o empregado, pois pode facilmente retirar direitos já conquistados, um absurdo quando estamos nos referindo a um instrumento de natureza avançada como se apresenta a Reforma Trabalhista na CLT. O fato é que ainda se caminha, infelizmente, para um maior benefício aos patrões na medida em que dá a liberdade de manejo de cláusula de dissídio coletivo, inclusive para piorar a situação do trabalhador.

Ainda há muita nebulosidade sobre a temática, pois, como já exposto em oportunidade anterior, a CLT em seu art. 614 §3°, estipula prazo determinado para duração de Acordo e Convenção Coletiva de trabalho, todavia, a jurisprudência é inconstante no que diz respeito a essa questão, oscilando e trazendo certa instabilidade jurídica no tema. O Ministro Gilmar Mendes, à seu turno, na tentativa de colocar em panos quentes tais incertezas, proferiu medida em caráter liminar – portanto temporária - no sentido de que fossem suspensos todos os processos que versassem sobre tal tema.

Ademais, há um longo trajeto a ser percorrido para a consecução dos direitos trabalhistas em sua completude, como preconiza a Carta Magna, corroborando também para a expansão dos direitos sociais que devem servir de sustentáculo a qualquer Estado que deseje um desenvolvimento pleno e sadio de seus indivíduos.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Francisco Rossal de; DIAS, Carolina Grieco Rodrigues; MORAES, Everton Luiz Kircher de. COOPERATIVAS TRATAMENTO JURÍDICO ESPECÍFICO E NEGOCIAÇÃO COLETIVA. Revista Eletrônica Trt 4° Região, Rio Grande do Sul, v. 157, n. , p.73-107, jun. 2013. Disponível em: <https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/77700/2013_araujo_francisco_cooperativas_tratamento.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 23 out. 2018.

CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 14. ed. São Paulo: Método, 2017.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. São Paulo: Ltr Editora, 2017.

DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A Reforma Trabalhista no Brasil. São Paulo: Ltr Editora, 2017.

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