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In dubio pro societate na decisão de pronúncia e a presunção de inocência

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Agenda 24/10/2018 às 17:50

3. DIREITO PENAL GARANTISTA.

3.1 A ESQUECIDA FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DO PROCESSO PENAL.

Antes de tudo, é necessário que se compreenda para que existe o processo penal, quais foram todas as circunstâncias que o influenciaram e qual a maneira de se aplicar as regras por ele trazidas dentro do ordenamento jurídico pátrio. Caminhando por essas pontuações, se chegará a diversas conclusões importantes, tantas que não seria possível lista-las todas aqui, porém dentre elas algumas colocam-se em um patamar ainda mais elevado, que chamarei de “conclusões mestras”.

Partindo das denominadas “conclusões mestras” é possível traçar um norte, uma maneira estabelecida de interpretar o processo penal à luz da Constituição Federal. As regras trazidas pelo processo penal não estão ali soltas ou à deriva, pelo contrário, estão ali sistematicamente organizadas e são frutos da influência dos raios solares da Constituição, tendo em vista que essa é a nossa Lei Maior e que as demais, portanto, devem ser elaboradas, atualizadas ou readequadas de acordo com o que pretende a Carta Magna.

Tendo essa premissa como estágio inicial, tudo que se mencionará a partir de então, girará em torno disso, ou seja, as críticas e as discordâncias com a aplicação do brocardo in dubio pro societate na decisão de pronúncia partirão todas de uma das conclusões mestras, qual seja a aplicação do processo penal de acordo com o que pretende a Constituição Federal. O que não há como admitir é a aplicação da Constituição vinculada à maneira como alguns enxergam o processo penal, quero dizer, interpretar convencionalmente a Constituição com o propósito de dar (falsa) validade a maneira como esses indivíduos querem aplicar o processo penal.

Assim sendo, ficando estabelecida a primeira “conclusão mestra” como sendo a função constitucional do processo penal, ou melhor, a sua aplicabilidade obedecendo as diretrizes estabelecidas pela Carta Magna, passa-se a comentar melhor sobre o tema, invocando reflexões e interpretações que surgem a partir dessa análise.

O primeiro item que será analisado já é provido de relevância incalculável, é o chamado devido processo legal. A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 5º, LIV, estabelece que: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Surge daí dois questionamentos imperiosos: para que existe a mencionada garantia? Ela opera em favor de quem?

Ora, mais do que evidente que o devido processo legal é uma garantia fundamental voltada para a proteção do réu, tendo em vista que ele é que tem seus bens ou sua própria liberdade colocadas em cheque durante o processo. Pacífico isso, porém ainda existe um questionamento: para que existe essa referida garantia? O devido processo legal tem como um dos pilares de sua existência o objetivo de evitar erros, principalmente em virtude da natureza do que se pretende tutelar (liberdade e patrimônio). O mestre Daniel Guimarães Zveibil, Defensor Público do Estado de São Paulo, assim escreve quando trata do tema:

Infelizmente, a importância que se dá no Brasil ao estudo do princípio constitucional do devido processo legal é inversamente proporcional à sua real e séria aplicação pelos Tribunais. Toneladas impressas de papel sobejam nas prateleiras de bibliotecas e livrarias, tratando e esmiuçando de forma belíssima sobre sua origem e desenvolvimento, enquanto no cotidiano dos Tribunais brasileiros é olvidado por inúmeros abusos perpetrados nas mais diversas searas jurídicas. E isto porque é princípio prescrito expressamente pela Constituição da República, que, a propósito, explicita-o nos seguintes termos: ‘ninguém será privado da liberdade ou’ de seus bens sem o devido processo legal. Costumamos dizer que a simples literalidade dos textos constitucionais denuncia claramente que o devido processo legal é uma regra processual voltada para a proteção do réu, na medida em que é ele, mais do que ninguém, que tem seu patrimônio, ou sua liberdade, ou sua vida sob a mira do Estado quando é levado a juízo. Sua origem histórica no mundo da língua inglesa revela-o, igualmente, como regra processual voltada para proteção do réu que, segundo Coke, só poderá ser privado daqueles bens ‘by the due course and process of law’. Logo, originariamente o devido processo legal é uma regra de proteção para o réu, regra que impõe a seu favor o pleno conhecimento da acusação e a oportunidade de ser ouvido de maneira completa e equitativa, antes de o Estado decidir, processualmente, se a situação do réu deve ser alterada a pedido do autor ou mantida em favor do próprio réu. (ZVEIBIL, Daniel Guimarães. Set/out 2008, p.284/285). (grifei)

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Dessa maneira, começa-se a enxergar a relevante e incontestável finalidade constitucional do processo penal. Quando o Estado vincula a restrição de liberdade ao devido processo legal (aqui com sua análise voltada para o processo penal), isso exala para os juristas a intenção que ele possui de tomar todos os cuidados possíveis antes de tolher a liberdade ou o patrimônio do indivíduo.

Sendo assim, como já anteriormente mencionado, o Estado pretende de qualquer maneira evitar erros, que podem se materializar na condenação do inocente, na retirada da propriedade de um bem de quem possui o direito de tê-lo, na condenação do culpado em sanções que vão além do que a lei impõe para o comportamento por ele praticado, entre outras diversas. Enfim, o que se conclui com clareza é que o devido processo legal existe para uma finalidade específica e extremamente especial tendo em vista a evolução histórica do Direito, qual seja: a proteção da liberdade e não a condenação a todo custo, como já foi em outras eras.

Para enriquecer o estudo sobre o assunto, recorre-se mais uma vez às sábias palavras de Daniel Guimarães Zveibil:

Logo, a finalidade constitucional do processo penal jamais poderia ser o de simplesmente condenar, pois para que atendesse a essa finalidade bastaria o velho paredón. Nada mais que isso. O fim constitucional do processo penal, então, inexoravelmente – mas sem excluir a possibilidade de reparação do dano nascente na infração penal – só pode ser o de evitar a condenação do inocente, permitindo somente daquele que se revelar verdadeiramente culpado em função da prova produzida em contraditório, e na justa medida que mereça. Como consequência dessa conclusão, o devido processo legal no mundo do processo penal – ou se quisermos, o devido processo penal[2] - deve reunir o mínimo de atos e fases processuais que, devidamente encadeados, permita que se atinja a aludida finalidade constitucional. Professor Pitombo confirma-nos o raciocínio, na medida em que para ele, além de possibilitar a reparação do dano nascente na infração penal, ‘o processo penal consiste em instrumento de preservação da liberdade jurídica do acusado em geral, não de mera liberação da coação estatal, que se ostenta na pena ou na medida de segurança.’{C}[3] Frederico Marques, outro proeminente processualista, cogita de procedimento ideal, ‘suficientemente energético para evitar a impunidade dos criminosos, e bastante dúctil para impedir a perseguição e condenação dos inocentes (...)’.{C}[4] Em síntese, gostemos ou não, a inexorável finalidade constitucional do processo penal é a tutela da liberdade. (ZVEIBIL, Daniel Guimarães. Set/out 2008, p. 286/287). (grifei)

Diante de tudo que foi exposto e já com a ideia consolidada de que o devido processo legal, aqui abordado dentro do processo penal, serve para a proteção da liberdade, chega-se a um ponto na linha de construção do raciocínio que nos leva a questionar: qual o objetivo do sumário de culpa, que tem como um de seus finais a decisão de pronúncia?

A resposta não pode ser outra, o sumário de culpa, quando interpretado sob à luz do processo penal constitucional, tem a função majestosa e irrefutável de tutela da liberdade. Tal fase existe, justamente porque o Estado preocupa-se com a liberdade do cidadão, tanto que assim positivou em nossa Lei Maior a presunção de inocência e o devido processo legal.

Diante disso, o juiz togado quando faz a análise do processo buscando a materialidade e os indícios suficientes de autoria, deve entender o papel que a Constituição conferiu-lhe naquele momento, ou seja, qual a linha exata de se seguir tendo em vista a finalidade que o processo penal almeja colocando-o ali para realizar aquele juízo. Quando o juiz presta a tutela jurisdicional no sumário de culpa, ele não pode se esquecer jamais que a pronúncia não pode ser dissociada, em hipótese alguma, de sua função constitucional, que é justamente evitar que um inocente seja submetido a desventura de um julgamento popular.

A decisão de pronúncia, portanto, possui uma finalidade cristalina quando o processo penal é interpretado sob o manto da Constituição Federal. Ainda apoiando-se no magnífico trabalho de Daniel Guimarães Zveibil, cita-se:

É aí que nos vemos obrigados a indagar: qual seria a autêntica função da pronúncia, se pensada a partir da inexorável finalidade constitucional do processo penal? Ora, quando o Judiciário pronuncia o acusado com base em prova conflitante de autoria porém que jamais autorizaria futuro juízo de condenação, no fundo, nega a si próprio, pois o sumário de culpa passa a ser mera formalidade burocrática que absorve inutilmente erário já escasso. Nada mais do que isso. É comum, até mesmo, devido a esse fato corriqueiro nos Tribunais, afirmar-se que a função da fase de pronúncia seria a de pura e simplesmente remeter o réu ao Júri. Nada mais errado. Se considerarmos a finalidade constitucional do processo penal brasileiro, a pronúncia jamais poderia ser encarada como mero ato de remeter o réu ao Júri. Muito ao contrário.

(...)

Ora, se a pronúncia fosse inútil formalidade burocrática a fim de dissipar em vão nosso erário, não se exigiria sequer os requisitos de existência do crime e de indícios suficientes – atenção para o adjetivo – de autoria ou participação (arts. 413 e 414, CPP). (ZVEIBIL, Daniel Guimarães. Set/out 2008, p. 291/292).

Tendo como bagagem todos os argumentos, fundamentos, questionamentos e reflexões acima expostos, não se pode ignorar, a partir de então, a total incompatibilidade do brocardo in dubio pro societate quando usado para pronunciar o réu na ausência de indícios suficientes de autoria, principalmente diante da função precípua da decisão de pronúncia, que como já insistentemente mencionado é a tutela da liberdade. Mais ainda, não há sentido algum interpretar os brocardos in dubio pro reo e in dubio pro societate como sendo opostos, vez que não é isso que ilustra o texto constitucional.

A Constituição, que tem como uma das finalidades de existência a limitação do poder estatal, prevê garantias fundamentais justamente para proteger os indivíduos. Sendo assim, quando um juiz togado impronuncia o acusado com base no in dubio pro reo, diante de uma situação em que faltam indícios suficientes de autoria, pode-se dizer, com certeza, que ele tomou a atitude mais adequada para a sociedade, obedecendo os ditames da Constituição, o que leva à conclusão de que ele poderia sem problema algum ter invocado o in dubio pro societate para impronunciar.

A partir desse raciocínio fica ainda mais repugnante aceitar o in dubio pro societate para legitimar pronúncias que não deveriam e não poderiam acontecer. Vários são os motivos da repugnância, dentre eles cita-se: a) um brocardo, sendo criação jurisprudencial ou doutrinária, não pode nunca ir contra texto expresso da Constituição Federal, ainda mais quando vem no sentido de relativizar princípios e garantias fundamentais como a presunção de inocência; b) favorável à sociedade é a pronúncia usada como resguardo da liberdade e não o contrário.

Quando o juiz se arma com o criticado argumento, estará agindo com uma irresponsabilidade coletiva, estará a cometer ato extremamente perigoso, vez que além de desrespeitar a Lei Maior da República irá relativizar um princípio fundamental abrindo brechas para maiores e mais perigosas relativizações. Indo totalmente contra o propósito da Constituição, o julgador tira a proteção constitucional do cidadão e o submete ao poder estatal de forma irresponsável.

Nunca é demais repisar uma lição, ainda mais quando é dotada de uma carga intelectual tão relevante. Por conta disso, renovando votos de admiração ao Professor Daniel Guimarães Zveibil, cita-se mais uma vez:

Em vista de tal finalidade, necessariamente devemos admitir a premissa básica (e óbvia) de que à sociedade não interessa nem condenar o inocente, tampouco absolver o culpado – embora o primeiro erro, nas palavras de Roberto Lyra, seja mais grave.[5] Tal premissa é a razão de Piero Calamandrei, em clássicas páginas do direito processual nas quais terçou armas com Francesco Carnelutti, ressaltar que o interesse do Estado na punição do culpado contrapõe-se ao interesse, que também é do Estado, à tutela da liberdade. Logo, a aludida premissa básica força-nos a uma séria conclusão. Quando o Judiciário afasta condenação argumentando o adágio in dubio pro reo, em verdade também poderia argumentar que houve absolvição com base no in dubio pro societate, pois, segundo aludida premissa básica, a sociedade não possui interesse algum na condenação do inocente. Como consequente, para quem julgue válidos referidos adágios, é totalmente falsa e absurda a ideia de que o in dubio pro societate seria regra oposta ao in dubio pro reo, e que, portanto, incidindo aquele adágio na fase de pronúncia do procedimento do Tribunal do Júri, se houver prova conflitante a respeito de autoria delitiva, mas que impeça futura condenação, a intepretação mais favorável à sociedade seria, supostamente, lançar o suspeito aos azares no julgamento do Júri. É bastante evidente, data venia, que essa interpretação não é a mais favorável à sociedade, pois se há prova conflitante quanto à autoria delitiva que mesmo conflitante não permita futuro juízo condenatório, abre-se possibilidade do erro judiciário da pior espécie: a condenação do inocente.

(...)

Assim, quem admite a validade das parêmias in dubio pro reo e in dubio pro societate e a suposta oposição entre elas, com a devida licença ignora a inexorável finalidade constitucional do processo penal – ou pelo menos nega-se -, não sabemos o porquê, a colocá-la em prática. O que verdadeiramente é de se lamentar é o fato de que o grande arbítrio palavreado in dubio pro societate, ao contrário do que se pode pensar, não se trata de questiúncula acadêmica desprovida de efeito prático, mas pode decidir – e desastrosamente – o futuro de algum cidadão que não mereceria enfrentar os azares de um julgamento no Júri. (ZVEIBIL, Daniel Guimarães. Set/out 2008, p. 287/289). (grifei)

Apoiando-se em tudo que foi suscitado, renova-se a discordância da aplicação do brocardo in dubio pro societate na decisão de pronúncia diante da ausência de indícios suficientes de autoria, isso porque não se pode jamais abandonar a função constitucional do processo penal e porque não há como aceitar que o Estado, representado pelo juiz, aja com tamanha irresponsabilidade, interpretando o processo penal imerso nas águas turvas da dúvida e incerteza, descarregando sobre o réu a incompetência estatal de não conseguir carrear aos autos indícios suficientes de autoria.

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