Responsabilidade civil
Novo enfoque
A chamada responsabilidade civil cuida do dever de reparar dano causado a outrem; portanto, responsabilidade de reparar (ou reparatória). E o dever de reparar não é exclusivo do Direito Civil; existe em outros ramos jurídicos: administrativo, consumerista, ambiental, trabalhista etc. Daí a inconveniência da designação “responsabilidade civil”.
A responsabilidade reparatória apresenta peculiaridades em cada um dos ramos em que se manifesta, ainda que reste um núcleo suscetível de regramento comum, e que, por tal, deveria estar na LINDB. A rigor, as normas gerais sobre pessoa, bens, atos jurídicos, atos ilícitos (não-penais) e prescrição/decadência, como as da responsabilidade reparatória, estão na codificação civil por mera tradição legislativa, não porque cientificamente sejam matérias exclusivas desse ramo jurídico.
Doutrina e jurisprudência tradicionalmente dividem a responsabilidade em contratual e extracontratual, mas há os que entendem – e são muitos – superável a distinção:
Tão mínima é a diferença [entre responsabilidade extracontratual e a dita contratual] que, a rigor, não há distinção substancial entre a responsabilidade contratual e a extracontratual. Na essência, ambas decorrem da violação de dever jurídico preexistente. A distinção é tão insignificante que até existe movimento no sentido da unificação da responsabilidade. O Código do Consumidor, como haveremos de ver, suplantou a dicotomia. Mas a responsabilidade contratual tem ainda um sentido prático muito importante. Na solução dos casos concretos bastará examinar o contrato existente entre as partes e os deveres nele estabelecidos [para saber-se, como dito acima, se os contratantes convencionam cláusula relativa ao modo de composição de danos decorrentes de inadimplemento]. (Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. ed. 10ª, rev. e amp. São Paulo: Editora Atlas, 2012, p. 305-306)
O jurista citado, grande conhecedor do tema, acusa a insignificância da distinção, e, a justificar sua afirmação, apenas adianta que “ambas decorrem da violação de dever jurídico preexistente”. É claro que isso não basta a estabelecer a distinção, menos ainda a demonstrar a possibilidade de superação dela.
Ocorre que as coisas não acontecem bem assim. Numa imbricação de difícil discernimento, é vislumbrável, porém, a emergência da responsabilidade contratual. Segue a demonstração.
Quando alguém em virtude de um contrato contrai uma obrigação, pode clausular nele o modo de reparar em caso de inadimplemento da obrigação assumida. Sem pactuação, o inadimplemento implicará responsabilidade reparatória extracontratual: (“Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária, segundo índices oficiais e honorários advocatícios” – art. 389 do CC), ainda que o dever jurídico preexistente seja uma obrigação contratualmente assumida. Mas se houver pactuação da reparação, o inadimplemento acarretará responsabilidade reparatória contratual. Nesse ponto, o regramento no CPCl (“a obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou o resultado prático equivalente” – art. 499 do CPC) veio suprir uma omissão da legislação civil. Com essa norma da lei processual, só a inviabilidade da satisfação da obrigação em espécie e a vontade do credor abram espaço à reparação extracontratual (conversão em perdas e danos).
Mas se tiver havido pactuação, aplica-se o que foi convencionado (responsabilidade contratual), salvo se o ramo em que se estiver atuando não permitir estipulação a esse respeito (como se dá nos ramos do direito social, do trabalho e consumerista).
Vê-se assim, que a emergência da responsabilidade contratual não é uma decorrência automática da existência de uma obrigação contratualmente assumida. Além disso, é necessário que, no contrato onde ela se originou, haja estipulação acerca do modo de reparar. Somente assim emerge a responsabilidade contratual.
Advirta-se, porém, que alguns ramos do Direito (empresarial, por exemplo), permitem a regulação contratual das implicações do inadimplemento: indicação dos danos reparáveis, previsão de exclusão/majoração/minoração da reparação, quantificação da indenização, modo de liquidação etc. Em outros ramos, há restrição à liberdade de pactuar acerca das conseqüências do inadimplemento. É ilustrativa esta disposição do CDC: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis” (.CDC, art. 51, I).
Nos ramos jurídicos que admitem a pactuação acerca de responsabilidade civil (ou reparatória), a pactuação deve observar os parâmetros do regramento da chamada cláusula penal (CC, arts. 408 a 416).
Perceba-se, por fim, que, num primeiro momento, emerge o dever de adimplir a obrigação contratualmente assumida e o correspondente direito de exigir sua satisfação específica; só no passo seguinte, sendo o caso, surge o dever de reparar resultante da lei (responsabilidade extracontratual).
Pode parecer academicismo desimportante o que acima se detalha. Mas, seguramente, não o é. Basta ver que, em julgado a Corte Especial do STJ, reformando decisão da 3ª Turma do Tribunal (REsp 1.281.594), decidiu que:
É de dez anos o prazo prescricional a ser considerado nos casos de reparação civil com base em inadimplemento contratual, aplicando-se o artigo 205 do Código Civil. O entendimento da Corte Especial consolidou a posição do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema.
O colegiado deu provimento ao recurso [...] para afastar a incidência da prescrição trienal (artigo 206, parágrafo 3º, inciso V), que havia sido aplicada ao caso pela Terceira Turma (EREsp 1281594).
Segundo o relator, ministro Fischer:
[...] a interpretação em sentido oposto acarretaria “manifesta incongruência”, já que, enquanto não estiver prescrita a pretensão central da obrigação contratual, “não pode estar fulminado pela prescrição o provimento acessório relativo a perdas e danos advindos do descumprimento de tal obrigação pactuada”.
Outra consequência, segundo o ministro, seria a possibilidade de se admitir que a prestação acessória prescreva em prazo próprio diverso da obrigação principal, sob pena de se permitir que a parte lesada pelo inadimplemento possa recorrer à Justiça visando garantir o cumprimento do contrato, mas não o ressarcimento dos danos decorrentes.
Pelo visto até aqui, as consequências do inadimplemento não se desdobram todas automática e imediatamente. Primeiro é dado ao credor exigir a satisfação específica da prestação (a ação para seu exercício é a condenatória à satisfação da prestação, seguida, se for o caso, da execução por cumprimento de sentença, e a prescrição da respectiva pretensão é a relativa à condenação na prestação pertinente). Só se impossível/inútil/indesejada a prestação específica, emergem as consequências de lei (a ação para o exercício dessa pretensão é a reparatória extracontratual, e a prescrição é a do artigo 206, §3º, V, do Código Civil). Enxerga-se que as duas prescrições não atuam simultaneamente. Abre-se antes opção; escolhida a via satisfação específica, somente com seu insucesso se abrirá a via da reparação extracontratual. Não se imbricam.
É, pois, inarredável a distinção entre as duas modalidades de responsabilidades, ainda que não seja fácil separar-lhes os campos e momentos de incidência. A distinção é ontológica, razão por que nenhum código pode suprimi-la. O CDC só trabalha com a responsabilidade extracontratual, porque, sendo uma legislação protetiva (composta de normas de interesse social) não permite a pactuação acerca do inadimplemento contratual, em proteção ao consumidor.
Conclusões
Em suma:
a) a dita responsabilidade civil é responsabilidade reparatória (administrativa, consumerista, trabalhista, civil etc., a depender do ramo do Direito em que emerge o dever de reparar ou estipulação de e como fazê-lo);
b) a responsabilidade reparatória não é una, porque se houver estipulação sobre o dever e modo de reparar, a reparação se dará conforme o pactuado, o que configura responsabilidade contratual; não havendo estipulação, seja o dever jurídico preexistente o de não causar de dano a outrem ou um inadimplemento contratual a responsabilidade reparatória será extracontratual;
c) a estipulação acerca de responsabilidade reparatória só é admitida em contratos paritários e em certos ramos do Direito Privado (civil, empresarial), nunca em ramo do Direito Público (administrativo, por exemplo) ou de Direito Protetivo (do Trabalho e do Consumidor, que abrigam normas de ordem pública, eis que, neles, é nula qualquer cláusula excludente/exacerbante/atenuante – salvo em desfavor do fornecedor ou empregador – da obrigação de reparar: CDC, art. 51, I; CLT, art. 9º).