Vinculação e discricionariedade
Precisando os conceitos
É usual falar-se em atos vinculados e atos discricionários. E cumpre de logo assegurar que a compreensão de vinculação/discrionariedade (e, por consequência, de sua distinção) não é tão transcendental como fazem crer as extensas e complicadas explicações doutrinárias alinhadas pela academia. A identificação dos traços distintivos é relativamente fácil, se se atentar ao que realmente interessa. Uma observação se impõe de logo: todo ato é vinculado; e o que realmente importa para efeito de vinculação e discricionariedade é a competência para sua prática; se vinculada a competência, o ato decorrente será necessariamente vinculado; se discricionária a competência, o ato será discricionário. Advirta-se, porém: mesmo quando discricionário, o ato não prescinde de vinculação. É ver como isso se dá.
Como saber que uma competência é vinculada ou discricionária? Isso é revelado pelo teor da disposição de lei atribuidora da competência: havendo nela - ou mesmo no ordenamento jurídico como um todo - detalhamento das situações de fato que autorizam a atuação do agente público detentor da competência, os atos daí decorrentes serão vinculados (necessariamente devem se embasar nas situações autorizativas de sua prática constantes da lei); não havendo esse detalhamento, o agente, na prática do ato embasado nessa competência, terá liberdade de agir por razões de oportunidade/conveniência (é livre de escolher “se” – conveniência – e “quando” – oportunidade – praticará o ato); então se diz que o ato decorrente dessa competência é discricionário. Conquanto livre para avaliação da oportunidade/conveniência para a prática do ato, agente estará, porém, preso a um parâmetro: a persecução de finalidade de interesse público/coletivo, exigível de todo ato de agente público pela Constituição da República (art. 37).
Importa sublinhar que os atos do agentes públicos estão sujeitos a controle. No Direito Público, um poder pressupõe um dever, que deve ser cumprido para o fim legalmente preordenado (público/coletivo). No exercício desse controle que avulta a importância da distinção entre viculação e discricionariedade.
No controle de competência discricionária, o Judiciário não pode sindicar os aspectos relativos a conveniência/oportunidade do ato praticado em decorrência dessa competência, pois, nesse âmbito, o juízo estaria substituindo o gestor, e exercendo atribuição reservada exclusivamente a esse, o que seria, quando menos, ilógico. Mas pode - e deve, sim - sindicar a conformação do ato a uma finalidade pública/coletiva, pois se o agente tiver agido na persecução de um interesse irrepublicano, o ato, ainda que decorrente de uma competência discricionária, deverá ser reconhecido como irregular. Note-se também: no pertinente à competência vinculada, o ato dela decorrente deve corresponder a uma das situações fáticas autorizativas de sua prática, previstas na lei, para que se tenha como regular.
No Estado de Direito, todos os atos do Poder Público se sujeitam a obrigatória motivação/fundamentação. Isso é condição inarredável ao adequado controle da legalidade dos atos dos agentes públicos. Consagra a Constituição da República regra específica que exige motivação dos atos do Judiciário (art. 93, IX, da CR), mas, mesmo com o longo detalhamento de princípios norteadores da Administração Pública, o princípio da fundamentação não vem expressamente inscrito no art. 37, caput, CR. É quanto a isso omisso nosso ordenamento jurídico? Claro que não: consagra-o, em termos lapidares, o § 1º do artigo 5º da Lei n. 9.784/99. Na prática do ato discricionário, a só falta de fundamentação o invalida (o ato discricionário carece de minudente fundamentação (demonstração bastante da satisfação de finalidade pública/coletiva). Em se tratando de ato vinculado, não se exige especial fundamentação, pois que a simples constatação de que o ato se enquadra em alguma das situações fáticas autorizativas constantes da lei já evidencia sua juridicidade.
A lógica do sistema mostra que, se decorrer de competência vinculada, o ato será regular, independentemente de conter explicitação de motivo, desde que presente, e revelado pelo exame de seu teor, seu encaixe a um dos motivos autorizativos previstos na lei. De modo diverso, se se trata de ato decorrente de competência discricionária, sua regularidade dependerá, como se anotou acima, da satisfação de finalidade de interesse público/coletivo (por lógico, nenhuma função pública pode ser exercida para satisfação de interesse particular). Se praticado o ato, mesmo decorrente de competência discricionária, sem persecução de uma finalidade público/coletiva, o ato estará viciado e é passível de controle e desfazimento pelo Poder Judiciário.
Aplicação à atividade jurisdicional
Quanto ao Poder Judiciário, há discricionariedade em sua atuação? Sem dúvida. Seria até cegueira negá-lo, a despeito de afirmação categórica em contrário por certos acadêmicos. O controle da legalidade dos atos do Poder Judiciário se faz, já se viu atrás, pelo sistema de impugnação, que abrange recursos e ações autônomas impugnativas.
Sabe-se que os atos jurisdicionais não se sujeitam tecnicamente à revisão de qualquer dos outros Poderes (Executivo e Legislativo; este pode editar lei afastando entendimento adotado pelo Judiciário, mesmo em precedente vinculante; mas isso não significa sindicar os atos do Judiciário).
Pontue-se ainda que o quanto demonstrado relativamente aos atos administrativos, acima, vale para os atos jurisdicionais.
Eis alguns exemplos esclarecedores:
Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:
I - enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;
II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
IV - enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.
§ 1o O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição.
b) o art. 536 e seu § 1º do CPC dispõem:
No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.
Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.
Pela regra do art. 332, o juízo pode julgar liminarmente improcedente o pedido, se a causa dispensar instrução probatória e estiver presente uma das situações previstas nos incisos I a IV ou ocorrer prescrição/decadência (prazo extintivo). Tem-se, pois, uma competência vinculada; qualquer decisão judicial que julgue liminarmente improcedente o pedido fora das situações expressamente elencadas na norma estará sujeita a revisão por via de apelação (CPC, art. 332, § 2º).
De outro modo, o art. 536 e seu § 1º dizem que o juiz, para efetivar a prestação imposta em sentença, pode adotar outras medidas executivas além das previstas na norma. Isso significa que o juiz, por não estar vinculado às medidas arroladas na disposição, goza de discricionariedade para adotar outras que se façam necessárias à realização da prestação imposta. Mas cumpre observar que, como ocorre no exercício de qualquer competência discricionária, a adoção de medida atípica requer, para sua juridicidade, que se atenda a uma finalidade pública (que decorre do sistema normativo). No caso, exige-se mais: a medida executiva não arrolada e adotada deve ser necessária (exigível), adequada (correlação de meio/fim) e razoável (menos onerosa possível), revestindo-se de fundamentação bastante (reveladora de atendimento desses requisitos). A só falta de fundamentação invalida a decisão.
Ignora a realidade pensar que a discricionariedade é algo naturalmente perigoso no trato jurídico. Não é. Trata-se de um fenômeno jurídico natural, inevitável e corriqueiro: nem sempre, por diversas razões, se podem explicitar as situações fáticas ensejadoras da prática dos atos dos agentes públicos. (No final do século 18, na Prússia, tentou-se a previsão legal de todas as hipóteses possíveis de aplicação da lei. A experiência mostrou-se, além de impossível, maçante.) Por isso, é mais realista investir empenho na criação técnicas tanto mais eficazes à detecção dos atos decorrentes de competências discricionárias, e mecanismos precisos de seu controle. O exame acanhado do fenômeno, atento apenas à repetição de chavões, pouco contribuirá para formação de uma teoria idônea do tema.
Três coisas devem ser retidas: é crescente o fenômeno da discricionariedade em razão do uso freqüente nos enunciados dos textos de lei com conceitos indeterminados e regras abertas, bem assim da aplicação frequente de princípios; a outra coisa é que, quanto melhor se compreender o mecanismo da discricionariedade, tanto mais se avançará na formulação de técnicas de seu controle; e a última coisa é que todo ato decorrente de competência discricionária deve ser motivado para explicitar a satisfação de fim público/coletivo.
E quando se trabalha com conceitos vagos, regras abertas ou princípios? Nada muda do que se disse até aqui. Conceitos vagos, regras abertas e princípios, por não terem, evidentemente, explicitação de situações fáticas de incidência, propiciam a atividade interpretativo-integrativa de iniciativa mais ampla na definição do sentido/alcance do enunciado. Tem-se, pois, clara competência discricionária, mas isso não deve assombrar: definir o sentido/alcance será uma obra em trâmite, ao longo do qual, percorrendo toda a estrutura do Judiciário, até a sedimentação da tese jurídica no órgão judicial de cúpula competente para a matéria. Ao longo do trâmite, se colherão contribuições da comunidade jurídica e de técnicos (especialistas na matéria de fundo, tudo na forma do art. 927 CPC). A tese jurídica, ao final, de aplicação obrigatória em toda a organização judicial, não será obra exclusiva de um superdotado: um juízo, singular ou colegiado, ou um acadêmico (por mais influente que seja), ou mesmo de alguns deles reunidos em conluio, mas, sim, do sistema jurídico em seu todo, refletindo o entendimento da sociedade naquele momento e, assim, se impondo ao acato de todos.
O que amedronta mesmo é o arbítrio, que está na atuação do agente que pratica atos que inobservem os motivos previstos na lei ou que, na ausência de previsão legal de motivos (competência discricionária), não se pautem por interesse público/coletivo.
E os atos legislativos?
O Poder legislativo faz a lei e, por ser detentor, no atual estágio da organização estatal, da representação da sociedade para tanto (ainda que se trate da vontade apenas daqueles que, pelo consenso social da época, exercem o mando), cria a ordem jurídica (o direito legislado) e pode, a seu juízo, inová-la, sempre observando os limites e procedimentos estatuídos na Constituição e demais legislação pertinente (ordenamento jurídico).
Desobedecido esse balizamento, o ato legislativo também está sujeito ao controle do Judiciário, e os vícios ensejadores da revisão são de forma (quanto ao procedimento de formação do ato legislativo) ou de conteúdo (quando a lei feita dispuser sobre o quê, na forma da Constituição, não podia fazer).
O único poder que não sofre balizamento é o Constituinte, por detentor da legitimidade de ditar as diretrizes da ordem social em suas múltiplas facetas: política, econômica, cultural ect. Mesmo assim já se fala em proibição do retrocesso.