No mês de outubro deste ano comemoramos 30 anos da Constituição da República. Ela trouxe alguns inegáveis avanços no campo social, especialmente conhecidos como direitos fundamentais, mas as limitações no campo econômico logo se fizeram presentes, exigindo uma leitura um tanto restritiva desses direitos assegurados em teoria. Ou seja, na prática, muitos direitos encontram-se limitados pelo que se convencionou chamar “reserva do possível”.
A expressão reserva do possível nasceu na jurisprudência alemã e diz respeito, em síntese, à ideia de que o Estado não pode ser obrigado a fornecer uma determinada prestação a uma pessoa (algum serviço, por exemplo) se isso representar prejuízo aos demais membros da coletividade, por conta da insuficiência de recursos financeiros para cobrir todas as despesas. A questão parece óbvia, porque não há como “tirar de onde não tem”. Mas, como fica a questão da dignidade da pessoa humana, que é uma garantia dada pela Constituição, se um cidadão ou cidadã tiver negado o direito a um medicamento, por exemplo, indispensável à manutenção de sua vida?
Neste aspecto, surge como contraponto à reserva do possível a figura do mínimo existencial, que pode ser definido como uma espécie de limite à aplicação da reserva do possível, porque representa a parcela do direito fundamental que não pode ser retirada, por ser imprescindível à vida ou à vida com dignidade. Na verdade, o direito à vida, que está previsto no artigo 5º da Constituição, deve ser interpretado como direito à vida digna, porque a dignidade da pessoa humana também está expressamente definido no artigo 1º, inciso III, da mesma Constituição.
Portanto, a reserva do possível não pode ser utilizada pelo poder público municipal, estadual ou federal para negar o atendimento do núcleo essencial do que constitui direito fundamental, porque isso é o mínimo existencial, sem o qual a dignidade da pessoa é desrespeitada e, por consequência, o Estado Democrático que a Constituição determina que o Brasil seja não estaria assegurando o exercício dos direitos sociais e individuais. A dificuldade está em saber no caso concreto o que se pode considerar conteúdo essencial de algum direito fundamental, ou seja, o que é mínimo existencial. A dica importante para definir o assunto parece ser o uso da ponderação em cada caso concreto, tendo por base a razoabilidade e a proporcionalidade, que consiste em escolhas que sejam, ao mesmo tempo, adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito, para solucionar o problema que se apresenta.
A razão parece óbvia, porquanto não se pode num cenário de recursos financeiros limitados (e todo recurso tem um limite, evidentemente, por mais rico que seja um município, um estado ou um país, por exemplo) fazer opção por uma escolha que seja inadequada para resolver um problema, ou que não seja absolutamente necessária, ou ainda, que seja desproporcional (gastar mais do que seria necessário).
Também não é razoável que uma só pessoa (ou mesmo algumas) seja destinatária de uma parte muito grande de recursos públicos, em prejuízo dos demais membros da coletividade. Por outro lado, não parece razoável deixar quem quer que seja sem assistência, sem direito a uma vida digna. Por todos esses aspectos é que a ponderação deve ser a palavra mágica a guiar aquele que vá decidir cada caso.
Daí a importância e a necessidade de conhecimento técnico e de sabedoria por parte do gestor público para realizar boas escolhas em que aplicará o dinheiro público que arrecada mediante os tributos (impostos principalmente).
E sempre que isso não ocorrer, devemos orar a Deus para que, em último caso, tenhamos magistrados capacitados para entender a elevada importância de seus cargos, os quais, igualmente por meio da sensata ponderação, devem dar a última palavra sobre o que se deve entender por mínimo existencial, por dignidade da pessoa humana.
Gisele Nascimento é advogada em Mato Grosso.