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Entidade filantrópica e reforma trabalhista: contribuições críticas

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Agenda 14/11/2018 às 10:00

Algumas entidades portadoras do CEBAS não deveriam se incluir no conjunto das que fazem jus à gratuidade da justiça.

RESUMO: O presente estudo tem a finalidade de precisar o sentido de entidades filantrópicas no contexto da Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467.2017), introdutora dos atuais artigos 884, §6º, e 889, § 10, da Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT, que a elas, e somente a elas, garantiu novas prerrogativas processuais, a fim de facilitar o acesso à Justiça, que antes era bastante restrito, a pretexto de proteger a solvabilidade do crédito trabalhista. Porém, destaca-se que a aplicação e, no geral, os primeiros ensinamentos doutrinários sobre estes dispositivos legais no primeiro ano da vigência da nova lei não defendem um conceito estrito de filantropia, ou seja, tem-se atribuído um sentido amplo ao que se entende por entidade filantrópica, equiparado-a com o gênero entidade beneficente. Isto, em última análise, prejudica, na fase de execução, o trabalhador, pois a isenção do depósito do juízo sem critérios dificulta mais ainda a intricada tarefa de satisfazer o crédito trabalhista. Após uma análise histórica e conceitual, avalia-se as distinções entre filantrópicas, entidades beneficentes de assistência social e instituições de assistência social, para concluir que não é correto usar a Lei n. 12.101/2009 como parâmetro de enquadramento legal das entidades filantrópicas. Ao final, propõe-se que a melhor solução seria a regulamentação, por meio de Decreto Presidencial ou Portaria do Ministério do Trabalho, do alcance da expressão filantropia, de sorte a compatibilizar acesso à Justiça e o princípio protetivo subjacente à garantia do juízo.

Palavras-chave: Entidades filantrópicas. Conceito. Prerrogativas Processuais. Reforma Trabalhista. Lei n. 13.467/17.


1.Introdução

O direito processual contemporâneo se edifica a partir de um grande pilar, que é o devido processo legal, do qual extrai-se todos os outros princípios processuais conformadores do processo brasileiro, como assentou a doutrina. Dentre esses vários outros princípios, encontra-se o acesso à justiça.

Especificamente o direito processual do trabalho possui algumas particularidades, como o princípio protetivo, presente em diversas normas da CLT, a exemplo da isenção do trabalhador de recolher o depósito recursal para interpor recurso.

No confronto desses dois grandes princípios – acesso à justiça e princípio protetivo – é preciso, senão vital, ponderá-los a fim de encontrar o real alcance das modificações imprimidas pela Lei 13.467/2017 quanto às entidades filantrópicas.

Diante disto, propõe-se um estudo detalhado acerca das filantrópicas, sua origem e conceito, a fim de contribuir para a delimitação do alcance dos artigos 884, §6º, e 889, § 10, da CLT, sem a pretensão de esgotar inteiramente o assunto.

Ao fim, o objetivo é propor alguma solução para a divergência hermenêutica sobre o tema, encontrada neste primeiro ano de vigência da reforma trabalhista, imprescindível para manter a coerência e a harmonia entre os dois citados princípios jurídicos.


2. Entidades filantrópicas. Conceito. Histórico.

A etimologia da palavra filantropia vem das expressões gregas philos e anthropos, as quais, conjugadas, traduzem-se livremente como “amor” e “ser humano” (MARTINEZ, 2018, p. 235). O Dicionário Houaiss, da Língua Portuguesa, define o termo como “profundo amor à humanidade, desprendimento, generosidade para com outrem, caridade".

Historicamente, no Brasil as ações filantrópicas estiveram arraigadas à concepção caritativa de ajuda ao próximo, sob o prisma da moral cristã, na qual há o reconhecimento do valor da pobreza, como redentora dos pecados. A expressão, assim, carrega em sua origem a intenção de ajudar o próximo, sem esperar retribuição. Exemplo disto foi o surgimento da Santa Casa de Misericórdia de Santos, em 1543, revelando, portanto, a origem da atividade filantrópica, no nosso país, no bojo das instituições religiosas na área da saúde (MESTRINER, 2001, p. 45).

Com o passar do tempo a filantropia começou a ocupar um conjunto maior de atividades sociais, que, em tese, competiriam ao Estado, por visarem ao interesse social e à satisfação de Direitos Fundamentais Sociais, atualmente positivados no art. 6º, da Lei Maior, a saber: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

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A filantropia era exercida, cabe destacar, por quem atendia, voluntariamente e de forma gratuita, aquelas pessoas necessitadas, nas mais diversas exigências coletivas. O Estado, incapaz de desincumbir plenamente de suas obrigações, divisou na filantropia uma forma de complementar suas insuficiências, de modo que destinou a ela benefícios legais e incentivos, sob a sua fiscalização. Daí surgiram legislações, cuja evolução desembocou no que hoje se denomina terceiro setor.

Para Maria Sylvia Di Pietro (2012, p. 551):

Terceiro setor é aquele composto por entidades da sociedade civil de fins públicos e não lucrativos [...]. Esse tipo de entidade existe desde longa data, mas agora está adquirindo feição nova, especialmente com a promulgação da Lei nº 9.790, de 22-3-99, que dispõe sobre as organizações da sociedade civil de interesse público.

Neste particular, merece destaque a Lei n. 3.577/59, que, por seu art. 1º, isentou da “taxa de contribuição de previdência os Institutos Caixas de Aposentadoria e Pensões as entidades filantrópicas reconhecidas como de utilidade pública, cujos membros de suas diretorias não percebam remuneração”.

O Decreto n. 1.117/62, ao regulamentar a isenção da cota patronal, introduzida pela Lei n. 3.577/59, considera “entidade filantrópica”, para fins do gozo do benefício fiscal, aquela que sobrevivesse de doações, pois deveria destinar “a totalidade das rendas apuradas ao atendimento gratuito das suas finalidades”.

Neste período, filantrópica, reconhecida pelo Estado, para fins previdenciários, por meio de um certificado, era a entidade que prestava serviços gratuitos à coletividade, sem público-alvo específico. Tais serviços gratuitos não eram, necessariamente, voltados para assegurar, a quem deles necessitasse, o rol de direitos sociais básicos que compõe a assistência social (art. 203 da Constituição Federal).

Com a ascendência do individualismo como modo de vida e o declínio das doações para subsidiar as entidades filantrópicas, o Estado viu-se, ante o relevante serviço prestado e o interesse no seu fortalecimento, na premência de proteger e colaborar com elas. Para isto, lhes garantiu uma roupagem mais contemporânea, cuja essência, porém, está positivada em alguns dispositivos da Lei n. 9.790/99, a seguir reproduzidos:

Art. 1º omissis

§ 1º  Para os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a pessoa jurídica de direito privado que não distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto social.

Art. 3º A qualificação instituída por esta Lei, observado em qualquer caso, o princípio da universalização dos serviços, no respectivo âmbito de atuação das Organizações, somente será conferida às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenham pelo menos uma das seguintes finalidades:

I - promoção da assistência social;

II - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;

III - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;

IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;

V - promoção da segurança alimentar e nutricional;

VI - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável;

VII - promoção do voluntariado;

VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza;

IX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito;

X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar;

XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais;XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo.

XIII - estudos e pesquisas para o desenvolvimento, a disponibilização e a implementação de tecnologias voltadas à mobilidade de pessoas, por qualquer meio de transporte.

Parágrafo único. Para os fins deste artigo, a dedicação às atividades nele previstas configura-se mediante a execução direta de projetos, programas, planos de ações correlatas, por meio da doação de recursos físicos, humanos e financeiros, ou ainda pela prestação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público que atuem em áreas afins.

Observa-se, portanto, que a entidade filantrópica, da qual a OSCIP é uma atual vertente,  com a nuance de firmar uma parceria com o Estado, tem por finalidade prestar serviços de interesse social – e não somente de assistência social -, sem fins lucrativos, sobrevive de doações, admitidos incentivos públicos, porque muito penosa é a manutenção somente com liberalidades, hodiernamente; quando muito, presta serviços intermediários a outras organizações sem fins lucrativos ou a órgãos do setor público, de modo que a renda servirá para cumprir o princípio da universalidade dos serviços, isto é, a gratuidade.

Por não praticar atividade econômica, falta, não raro, capacidade financeira. Logo o acesso à Justiça sofreria prejuízo considerável, se não obstado fosse, caso exigido o depósito para recorrer ou apresentar embargos à execução de entidades com poucos recursos. Aí a justificativa e a razão de ser da Reforma Trabalhista, quando dispensou a garantia do juízo (MARTINEZ, 2018, p. 235). 


3. O acesso à justiça e entidades filantrópicas

A Lei n. 13.467/2017, conhecida por Lei da Reforma Trabalhista, isentou as entidades filantrópicas do dever de garantir o juízo, quer para embargar, quer para recorrer, em razão da sua peculiar situação de carência econômica. Há uma presunção ex lege de que seria custoso a elas defender-se, em face de uma sentença ou da execução de um título executivo.

Veja-se, a propósito, a redação dos dispositivos legais correspondentes:

Art. 884. Garantida a execução ou penhorados os bens, terá o executado 5 (cinco) dias para apresentar embargos, cabendo igual prazo ao exequente para impugnação.

§ 6º A exigência da garantia ou penhora não se aplica às entidades filantrópicas e/ou àqueles que compõem ou compuseram a diretoria dessas instituições.  (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

Art. 899. Os recursos serão interpostos por simples petição e terão efeito meramente devolutivo, salvo as exceções previstas neste Título, permitida a execução provisória até a penhora.

§ 10. São isentos do depósito recursal os beneficiários da justiça gratuita, as entidades filantrópicas e as empresas em recuperação judicial (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017).

A finalidade desta isenção é resguardar o comezinho direito fundamental, de todas as pessoas físicas e jurídicas, de acesso à Justiça, também denominado de garantia de inafastabilidade da jurisdição, previsto em diversos documentos internacionais, dentre os quais os mais relevantes são os seguintes: Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, aprovado em 16 de dezembro de 1966; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em São Jose da Costa Rica.

No plano interno, a Constituição Federal enquadra como direito individual e coletivo a inafastabilidade da jurisdição, no art. 5º, inciso XXXV. A doutrina, ademais, cuidou de destrinchar este direito, ao inferi-lo como um verdadeiro princípio jurídico (CANOTILHO, 2003, p. 1165).

Como um princípio constitucional, deve, portanto, direcionar a atividade interpretativa, a fim de influenciar todo o ordenamento jurídico, desde o momento legiferante, até a aplicação concreta da lei, além de servir como norte na organização do sistema judiciário, como porta aberta a todos.

Significa, então, que o Estado deve organizar, por meio de políticas públicas, seu modelo de justiça, de forma a propiciar cada vez mais uma melhora qualitativa no serviço público prestado pelo Judiciário e afastar as barreiras ilegítimas, que obstam a tutela jurisdicional justa às partes.  Tais barreiras podem ter origem em diversos fatores, a exemplo de imperfeição das leis processuais, políticos, econômicos e culturais (DINAMARCO, 2017, p. 203-204).

Assim, universalizar a jurisdição é expungir estes ilegítimos fatores limitativos, que excluem do Judiciário inúmeras pretensões e aumentar as situações litigiosas entre as camadas da população a serem pacificadas pelo Estado.

A par da indevida limitação à garantia da justiça gratuita do trabalhador, os aspectos econômicos do processo foram o mote da Reforma Trabalhista, quando isentou as entidades filantrópicas da garantia do juízo, e cumpriu uma das ondas renovatórias do direito processual, a que se refere Mauro Cappelletti (2015), segundo o qual os custos processuais, para determinadas pessoas, com parcos recursos financeiros, podem atravancar o acesso ao Judiciário.

Daí a relevância da isenção ora tratada, que, em uma visão realista e livre de pré-conceitos, pode ser determinante ao exercício do direito ao acesso à Justiça destas entidades, as quais poderiam deixar de questionar uma decisão judicial-trabalhista, por ausência de bens, o que pode dificultar, talvez injustamente, sua própria sobrevivência, por causa de uma condenação em uma reclamação sem respaldo legal ou probatório.


4 Garantia do juízo como proteção do trabalhador e o acesso à justiça: uma imprescindível conciliação

Os depósitos legais pelo empregador, no processo do trabalho, possuem natureza jurídica de garantia recursal, garantia da execução e garantia do juízo para a futura execução (MARTINS, 2001, p. 365).

A exigência da garantia do juízo “consagra, substancialmente, os princípios da proteção processual ao trabalhador e da isonomia real, sabido que o empregador, em regra, é economicamente superior ao empregado, geralmente autor da demanda trabalhista” (LEITE, 2018, p. 1033).

Em razão de estar diretamente ligada à proteção do trabalhador e assegurar um pagamento mais célere do crédito trabalhista, necessário se faz interpretar, destarte, o conceito de entidade filantrópica, restritamente no contexto da Reforma Trabalhista, para não cair no absurdo de absolver pessoas que teriam condições de efetuar a garantia do juízo, em detrimento do empregado.

A interpretação restrita do termo filantropia é, em verdade, uma legítima conciliação entre o princípio do acesso à Justiça e o princípio protetivo, ambos significativos para a legislação processual do trabalho. [1]

O primeiro princípio induz a dilatar os sentidos das palavras, de forma a ampliar os sujeitos destinatários de garantias legais, como ocorreu na interpretação dada pelo STF ao art. 5, caput, da CF, ao entender que o emprego da fórmula ‘brasileiros e estrangeiros residentes no país’ não excluiu o direito dos estrangeiros não residentes a acesso aos instrumentos processuais, nem os impediu de ser titular de direitos fundamentais (STF, HC 94016 MC/SP, rel. Min. Celso de Mello, j. 7/4/2008).

Já o princípio tuitivo é a marca distintiva, não só do Direito do Trabalho, mas, também, do Processo do Trabalho, com suas diversas simplificações, garantias e facilidades. Seu desiderato é equilibrar empregador e empregado, este quase sempre em posição de desigualdade econômica, probatória, informacional, social e cultural. É o que Manoel Antônio Teixeira Filho (2009, citado por LEITE, 2018, p. 112-115) chama de princípio de correção da desigualdade.

Esta interpretação estrita é, vale enfatizar, uma ponderação exigida para compatibilizar e acomodar harmonicamente dois interesses essenciais, a antecipação do valor da condenação ao empregado e a isenção das genuínas filantrópicas.

Realça o mestre Homero Batista Mateus da Silva (2017, p. 123) que a conceituação de entidade filantrópica não pode ser ampliada para alcançar toda e qualquer iniciativa de ajudar os menos favorecidos, pois entidades há que, embora hasteiem a bandeira da beneficência, auferem lucros e exercem atividades econômicas, com condições de garantir o juízo.

Importa, então, não confundir as entidades de beneficência social e de assistência social com as filantrópicas, sob pena de indevida ampliação de sentido, como visto no âmbito doutrinário e jurisprudencial, pois a penúria presumida por lei só faz sentido, e se justifica, em face das exclusivamente filantrópicas, em sentido estrito.

Sobre o autor
Leonardo Emrich Sá Rodrigues da Costa

Analista Judiciário do TRT-SC (Lotado no gabinete do Desembargador Wanderley Godoy Jr.). Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Professor na Universidade de Rio Verde-GO, ministrando a disciplina Processo Civil. Ex-Advogado inscrito na OAB-GO 33.165. E-mail: leonardo.costa@trt12.jus.br. Instagram: @emrich_sa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Leonardo Emrich Sá Rodrigues. Entidade filantrópica e reforma trabalhista: contribuições críticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5614, 14 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70096. Acesso em: 2 nov. 2024.

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