CHEQUE CAUÇÃO – ATO ILÍCITO CIVIL E PENAL NAS INSTITUIÇÕES PARTICULARES DE SAÚDE.
JÚLIO CÉSAR BALLERINI SILVA MAGISTRADO E PROFESSOR COORDENADOR NACIONAL DO CURSO DE PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL DA ESCOLA SUPERIOR DE DIREITO – ESD PROORDEM CAMPINAS E DA PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO MÉDICO DA VIDA MARKETING FORMAÇÃO EM SAÚDE.
O cheque enquanto título de crédito representativo de ordem de pagamento à vista, tem caído no desuso, por conta das compras eletrônicas por cartão, sendo certo que, no comércio, tem, praticamente desaparecido.
Mas, uma vez emitido, continua a produzir os efeitos regulares de titulo de crédito, vinculando emitente, sacador e sacado. Mas vem se tornando cada vez mais incomum. Muitas vezes, desconfia-se de sua exigência em alguns tipos negociais. E no ramo da prestação de serviços de saúde, o que, normalmente (nem sempre é verdade) envolve situações com risco de vida, a exigência do cheque, como forma de pagamento, pode gerar dúvidas a respeito da legalidade da sua exigência.
Não se nega que pessoas que não tenham condições não possam buscar atendimentos médicos em nosocômios particulares, como também não se pode pretender que entes particulares assumam responsabilidades próprias do Estado em seu sentido amplo (leia-se aqui “entes componentes do Sistema Único de Saúde – União, Estados, Municípios, Distrito Federal e os entes a eles vinculados).
No entanto, um erro não justifica outro. Quando alguém se dispõe a contratar determinado tratamento de saúde, existe liberdade de contratar e de contratação – ou seja, o consumidor pode escolher o profissional que irá atendê-lo, como, igualmente, escolherá as bases da contratação (preço, prazo, condições de pagamento etc).
O que não se admite é o exagero de garantias, como situação de abuso de direito (para o ordenamento jurídico pátrio, aquele que abusa de um direito pratica ato ilícito – artigo 187 CC e se sujeita a pagar indenização independentemente de intenção (dolo) ou desatenção (culpa) nos termos do Enunciado nº 37 das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal).
Isso vale, ademais, para qualquer exigência de garantia abusiva em contrato de prestação de serviços médicos em condições de urgência ou emergência (notas promissórias, duplicatas, em casos mais graves hipotecas de imóveis, documentos de transferência de veículos etc).
Insista-se a peculiaridade e a carga emocional em jogo nos contratos em que existe risco de vida ou de danos severos, atua de modo a possibilitar a anulação do ato pelo viés do chamado estado de perigo (isso para transações disciplinadas pelo Código Civil – no caso de relações de consumo, o que normalmente ocorre nos casos de prestação de serviços médicos e hospitalares, a situação gera, mesmo a nulidade absoluta, nos termos do artigo 51 CDC – o que influirá, até mesmo, em discussões sobre a existência, ou não de prescrição em casos como tal, na possibilidade do Ministério Público atuar em nome da parte etc.).
Ainda mais, a exigência de um cheque preenchido, como garantia de atendimento de alguém que se encontra premido por necessidades, em situação de urgência e emergência, pode ser entendido para o direito como ato de coação, como o já mencionado estado de perigo ou como lesão a depender de como se derem os fatos – de todo modo, isso compromete a validade da exigência e gera o dever de indenizar pelos abusos verificados (será lesão se fruto de inexperiência em caso de necessidade, para salvar a própria pessoa ou seu familiar de perigo iminente será estado de perigo, a depender de condições de sexo, idade, grau de instrução poderá ser visto como ato de coação e por aí vai).
Mas isso somente se aplica se houver situação de risco (urgência ou emergência) quando estas não se delineiam, pelo óbvio que valerão as máximas contratuais normais (para procedimentos eletivos, como dito, não há obrigação de médicos, dentistas, hospitais e clínicas de atenderem gratuitamente). Valem aí as disposições do princípio da legalidade constitucional (ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer qualquer coisa a não ser em virtude de lei) e as regras do princípio da força vinculante dos contratos (a ideia latina de um pacta sunt servanda).
Reconhecendo a ausência de ilícito em situações como tal:
TJ-SP - Apelação APL 00022011920138260451 SP 0002201-19.2013.8.26.0451 (TJ-SP) Data de publicação: 19/06/2015 Ementa: APELAÇÃO – INDENIZAÇÃO – COBRANÇA HOSPITALAR – CHEQUE-CAUÇÃO – LEGITIMIDADE – INTERVENÇÃO ELETIVA. - Inviável supor o estado de perigo (vício de consentimento – artigo 156 do Código Civil )– cheque objeto de contratação eletiva – serviço particular que afasta a incidência do disposto na Res. n. 44 , de 2003, ANS. Ausência de ilícito (art. 135-A , do CP )– intervenção estética não emergencial que não fora condicionada a emissão do título, que constituía, apenas, garantia do pagamento (acordado entre as partes); - Manutenção da decisão por seus próprios e bem lançados fundamentos – artigo 252 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo; RECURSO NÃO PROVIDO.
Reconhecendo que não se pode exigir serviços gratuitos não cobertos por planos de saúde, com mantença do cheque caução (obviamente sem abuso provocado pela urgência ou cobranças de má-fé) já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
Superior Tribunal de Justiça STJ - AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL : AgRg no AREsp 603669 DF 2014/0274275-6 Trata-se de agravo regimental contra decisão de fls. 341⁄342 e-STJ, da relatoria do Ministro Francisco Falcão, no exercício da Presidência, que negou seguimento ao recurso porque a parte não reiterou em suas razões a extensão dos benefícios da gratuidade da justiça. A agravante, em síntese, requer a reforma da decisão agravada. É o relatório. DECIDO. Assiste razão à agravante. Assim, reconsidero a decisão de fls. 341⁄342 e-STJ e passo à análise do recurso especial. O apelo extremo, com fundamentado no art. 105, inciso III, alíneas "a" e "c" da Constituição Federal, insurge-se contra acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios assim ementado: "AÇÃO DE COBRANÇA - INADEQUAÇÃO DO PROCEDIMENTO ADOTADO - NÃO CONFIGURAÇÃO - ESCOLHA DO CREDOR - AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO NA SENTENÇA - INOCORRÊNCIA - JULGAMENTO EXTRA PETITA - NÃO OCORRÊNCIA - DESPESAS HOSPITALARES - COBRANÇA DE CHEQUE CAUÇÃO - PACIENTE NÃO ASSISTIDO POR PLANO DE SAÚDE - AUSÊNCIA DE VEDAÇÃO - ALEGAÇÃO DE COAÇÃO - AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO - ÔNUS DO RÉU - SENTENÇA MANTIDA.
1) - No caso dos autos, em que se discute a cobrança de cheque prescrito, tem-se que é faculdade do credor a adoção do procedimento especial da ação monitória, não havendo óbices para o ajuizamento da ação de cobrança pelo procedimento comum.
2) - Estando a decisão judicial devidamente fundamentada, tendo o magistrado julgado procedente o pedido, expondo os motivos e razões de decidir, não há que se falar em nulidade da sentença.
3) - Verificando-se que a condenação em danos materiais corresponde exatamente ao pedido de condenação ao pagamento do valor inserido no cheque, tem-se que a sentença atendeu perfeitamente aos limites do pedido, não havendo que se falar em julgamento extra petita.
4) - Não existe vedação à cobrança de cheque caução quando o paciente não está assistido por plano de saúde.
5) - Não se desincumbiu a requerida do ônus probatório previsto no art. 333, II, do Código de Processo Civil, não demonstrando a ré que sofreu coação por parte hospital recorrido, ou que teria sido o atendimento emergencial condicionado a determinada garantia, conclui-se que são devidos pela recorrente os valores cobrados.
6) - Recurso conhecido e desprovido" . No especial, a recorrente alega divergência jurisprudencial no tocante à possibilidade de cobrança de cheque caução de paciente assistido pelo plano de saúde. Verifica-se da análise do especial que a recorrente não indicou especificamente quais os artigos de lei federal teriam sido contrariados pelo acórdão recorrido, inviabilizando a compreensão da controvérsia posta nos autos. Consectariamente, incide a Súmula nº 284⁄STF: " É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia ". A propósito: 'ACÓRDÃO ASSENTADO EM MAIS DE UM FUNDAMENTO SUFICIENTE. RECURSO QUE NÃO ABRANGE TODOS ELES. SÚMULA 283⁄STF. (II) - FUNCIONÁRIO PÚBLICO. DEFESA PRÉVIA À DENÚNCIA. DESNECESSIDADE. AÇÃO PENAL INSTRUÍDA COM INQUÉRITO POLICIAL. SÚMULA 330⁄STJ. ACÓRDÃO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. SÚMULA 83⁄STJ. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL QUANTO À TESE DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. (I) - ART. 255⁄RISTJ. INOBSERVÂNCIA. (II) - AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE DISPOSITIVO DE LEI VIOLADO. RECURSO ESPECIAL COM FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284⁄STF. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. (...). 2. (...). 3. A não observância dos requisitos do artigo 255, parágrafos 1º e 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, torna inadmissível o conhecimento do recurso com fundamento na alínea "c" do permissivo constitucional. 4. A ausência de indicação do dispositivo ofendido enseja a aplicação do enunciado nº 284 da Súmula do Pretório Excelso, pois caracteriza deficiência na fundamentação, o que dificulta a compreensão da controvérsia. 5. Agravo regimental a que se nega provimento" ( AgRg no REsp 1.360.827⁄RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 13⁄5⁄2014, DJe 21⁄5⁄2014). Ressalte-se, ademais, que o recurso especial fundamentado no dissídio jurisprudencial exige, em qualquer caso, que tenham os acórdãos - recorrido e paradigma - examinado a questão sob o enfoque do mesmo dispositivo de lei federal. Com efeito, se a divergência não é notória, e nas razões de recurso especial não há sequer a indicação de qual dispositivo legal teria sido malferido, com a consequente demonstração da eventual ofensa à legislação infraconstitucional, aplica-se, por analogia, o óbice contido na Súmula nº 284 do Supremo Tribunal Federal, a inviabilizar o conhecimento do recurso pela alínea "c" do permissivo constitucional. Ante o exposto, reconsidero a decisão de fls. 341⁄342 e-STJ para conhecer do agravo e negar seguimento ao recurso especial. Publique-se. Intimem-se. Brasília-DF, 26 de março de 2015. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA Relator
Ou seja, no âmbito das relações civis implicará no dever de pagar os danos que forem causados (no caso de hospitais, clínicas e estabelecimentos congêneres as relações são consideradas de consumo o que agrava a situação da empresa). Há vários precedentes do Superior Tribunal de Justiça reconhecendo que nesses casos, além dos prejuízos materiais, resta cabível aplicação de indenização por danos morais.
Nesse sentido, mantendo a condenação por danos morais em caso de exigência de cheque-caução indevidamente em internação hospitalar, de se destacar:
STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL AgRg no AREsp 644649 DF 2014/0341839-3 (STJ) Data de publicação: 10/03/2015 Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. EXIGÊNCIA DE CHEQUE CAUÇÃO PARA INTERNAÇÃO EM HOSPITAL. PRÁTICA ABUSIVA. DANOMORAL. REVISÃO DO VALOR. NÃO PROVIMENTO. 1. Se as questões trazidas à discussão foram dirimidas, pelo Tribunal de origem, de forma suficientemente ampla, fundamentada e sem omissões deve ser afastada a alegada violação ao art. 458 do Código de Processo Civil . 2. Admite a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, excepcionalmente, em recurso especial, reexaminar o valor fixado a título de indenização por danos morais, quando ínfimo ou exagerado. Hipótese, todavia, em que o valor foi estabelecido na instância ordinária, atendendo às circunstâncias de fato da causa, de forma condizente com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.
No mesmo sentido e igual teor:
STJ - AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL AgInt no AREsp 1031503 PE 2016/0326824-4 (STJ) Data de publicação: 13/10/2017 Ementa: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INDENIZATÓRIA. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC /73. ARGUMENTAÇÃO GENÉRICA. SÚMULA 284/STF. EXIGÊNCIA DE CHEQUE CAUÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE INTERNAÇÃO E PARTO DE URGÊNCIA EM HOSPITAL. PRÁTICA ABUSIVA. DANO MORAL. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA DA LIDE. QUANTUM INDENIZATÓRIO RAZOÁVEL. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. A alegação genérica de violação a dispositivo de lei, no âmbito especial, configura deficiência de fundamentação recursal. Incidência da Súmula 284/STF. 2. O Tribunal de origem, com base no contexto fático-probatório dos autos, concluiu que a parte agravante exigiu caução para realização de internação e parto de urgência da agravada. O acolhimento das razões do apelo especial, no sentido de que não houve a citada exigência, demandaria o reexame de matéria fático-probatória dos autos, o que é vedado pela Súmula 7 deste Tribunal. 3. Não se mostra exorbitante a condenação da parte recorrente no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a título de reparação moral em virtude dos danos sofridos pela agravada, em decorrência de exigência de caução por parte da rede hospitalar para realização de internação e parto de urgência. Precedentes. 4. Agravo interno a que se nega provimento
E vale lembrar, o lapso prescricional, se o fato não é absolutamente nulo (atente-se para o quanto aduzido linhas acima) para efeitos de contagem do termo inicial da prescrição (artigo 189 CC), sem as intercorrências de aplicação de teorias como a actio nata subjetiva (tema para outro artigo) seria a data da exigência do cheque-caução. Assim também já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL AgRg no AREsp 734559 RJ 2015/0153904-3 (STJ) Data de publicação: 01/08/2016 Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INTERNAÇÃO HOSPITALAR. EXIGÊNCIA DE CHEQUE CAUÇÃO. ILEGALIDADE. PRESCRIÇÃO. 1. A prescrição tem início na data do nascimento da pretensão e da ação, que ocorre com a lesão ao direito. No presente caso, o prazo inicial é data da exigência do cheque caução. 2. Agravo regimental não provido.
Mas o fato é que a exigência de cheque caução constitui-se em fato criminoso para o direito penal (pode levar à imposição de uma pena no sentido técnico do termo). E a punição penal, não impede a punição civil (indenização), por conta do princípio da autonomia entre as instâncias, nos limites do artigo 935 CC. A Lei Federal nº 12.653/2012 criou um artigo 135 A no Código Penal estabelecendo que a conduta será criminosa (embora seja de menor potencial ofensivo – pena de três meses a um ano de detenção – pelo óbvio que ninguém será levado ao interior de um cela por conta disso mas passará por todos os inconvenientes de um processo penal, sendo certo que poderá em transação penal ter que arcar com consequências certamente mais onerosas que as vantagens obtidas com a forma indevida de cobrança).
Mais grave ainda, responderá pelo crime o responsável pela ordem, mas também o funcionário que exigiu o cheque ainda que pela menor participação, nos termos do artigo 29 CP. E, o que é pior, esse empregado poderá buscar a Justiça do Trabalho alegando que era forçado a praticar crime pelo empregador – ou seja, o céu será o limite para o quanto se terá que pagar em condições como tal.
Nos hospitais públicos a exigência pode implicar em crimes muito mais graves que o cheque caução (como estelionato, corrupção, concussão etc. a depender da forma como o usuário do sistema vier a ser abordado e do profissional que exige cobrança).
No âmbito administrativo, a ANS proíbe a prática do cheque caução desde a Resolução nº 44/03 ainda em vigor para as operadoras de plano de saúde e seguro-saúde.
Em breves linhas, o risco do cheque caução para a empresa e seus gestores não compensa os riscos de sua prática, sobretudo em um mundo em que as pessoas podem estar gravando conversas com smartphones e outras tecnologias. Consulte sempre um profissional do direito para elaborar seus contratos há outros meios mais seguros se estabelecer garantias contratuais nesses casos. Essa, ademais, a importância de um curso de pós graduação em direito médico.