A constitucionalidade do indulto concedido pelo Presidente Michel Temer foi afirmada no dia 29/11 e encerra julgamento iniciado em 2017. Agora, 22 dos 39 condenados da Lava Jato no Paraná podem ter as penas extintas (Código Penal, art. 107, inciso II). O Supremo Tribunal Federal, no entanto, poderia ter ido além e encampado, como já fez em outras oportunidades, construção teórica dos administrativistas no sentido de que não só se pode como se deve fazer o controle jurisdicional dos atos discricionários do Executivo, resguardado o mérito.
Em resumo, os votos que definiram o resultado nortearam-se pela separação de poderes existente entre Judiciário e o Executivo, este soberano para formular atos políticos, característica de que se reveste o indulto, porque emana diretamente da Constituição (Art. 84, inciso XII). A própria categoria de ato político é de duvidosa existência ontológica1, enquadrando-se mais pertinentemente como ato administrativo, sujeito, assim, aos requisitos de competência, finalidade, forma, motivo e objeto, embora sobressaia o lado político2. E mesmo que não seja assim, vale dizer, se considerado o ato político como algo diverso dos atos administrativos, da mesma maneira que Celso Antônio Bandeira de Mello, isso não significa que esteja imune ao chamado controle de legitimidade/legalidade, a ser feito pelo judiciário, do qual não escapa a apreciação de lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, inciso XXXV)3.
Em assim sendo, particularmente a finalidade, enquanto elemento vinculado mesmo nos atos políticos, é aferida, atualmente, não só pelo prisma tradicional da literalidade legal, mas segundo o ordenamento como um todo, inclusive os princípios jurídicos, por conta da necessidade historicamente comprovada de alinhar o Executivo ao interesse público4. É o que se vê, por exemplo, no controle das políticas públicas, em que a utilização dos princípios e a interpretação sistemática prestam-se a limitar as omissões ou desmedidas ações da Administração Pública, sem, de modo algum, substituir o administrador em sua função típica. O Código de Processo Civil, ademais, confirmou esse modo de pensar no art. 8º, ao assentar que o juiz não aplica a lei estritamente, mas o ordenamento jurídico.
Dito isso, pode-se depreender da Constituição, fincada em raízes republicanas, que, a despeito da falta de menção expressa (legalidade em sentido estrito) dos crimes do colarinho branco no art. 5º, inciso XLIII, não está o Executivo indiscriminadamente livre para conceder indulto, especialmente quando concretamente cause perplexidade observável primo icuto oculi, configurada no fato de autores do maior escândalo brasileiro de corrupção serem inoportunamente soltos. Ninguém hoje desconsidera, depois de tudo o que a lava jato trouxe à tona, que a corrupção no governo causa incalculáveis prejuízos à sociedade, podendo, sim, ser equiparada à tortura, ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, ao terrorismo e aos definidos como crimes hediondos, como demonstrou de forma brilhante o Ministro Luiz Roberto Barroso; com respeito aos pensamentos contrários, com isso não se está a reescrever a Constituição, vista como um texto vivo e limitadamente aberto. Mais do que isso, o desvio de finalidade não depende de prova do elemento subjetivo, pois decorre objetivamente da situação. Nessa perspectiva, o indulto que perdoa mais de duas dezenas de pessoas presas com todas as limitações do processo penal brasileiro para combater os crimes da alta cúpula (cifra dourada em criminologia), após um custoso e difícil procedimento de investigação, afronta patentemente o interesse público, na modalidade desvio de poder.
Não bastasse isso, tampouco a separação de poderes – o outro fundamento utilizado a que se aludiu – é óbice intransponível. Da Constituição extrai-se uma tripartição de poderes repaginada, diversa daquela proposta Montesquieu. Não se tem mais separação e divisão, como no século XVIII (apesar do ranço linguístico ainda presente no art. 60, § 4º, inciso III, da Carta), mas atuação coordenada, colaboração e recíproco controle. Este consta, cabe realçar, dentre outras passagens, no texto expresso do art. 49, em que o Executivo é controlado pelo Legislativo e do art. 52, no qual, membros do judiciário são submetidos a julgamento pelo parlamento. Por fim, o art. 2º da Constituição preconiza a atuação harmônica entre os poderes, dito de outro modo, o laborioso trabalho do Judiciário de combate à corrupção deve ter a colaboração do Legislativo e do Executivo, o qual tem o dever constitucional, portanto, de preservar o trabalho realizado pela lava jato, o que deixa mais evidente a possibilidade de fiscalizar atos políticos divergentes do interesse público, deduzido da Constituição.
Ademais, se ao indulto subjazem razões humanitárias, como é de praxe nesse tipo de política criminal encaminhada pelo Presidente, seria um dever constitucional republicano expor à população o porquê de ele alcançar justamente condenados por crime do colarinho branco.
Portanto, o STF tem justificações juridicamente aceitáveis – embora não absolutas – do ponto de vista exposto na Conjur pelo ilustre Lenio Streck – com quem compartilho grande parte de suas opiniões –, mas no tema controle de legalidade dos atos políticos tinha-se objetivas condições fáticas e teóricas para avançar e podar o desvio de poder praticado, declarando o decreto inconstitucional, sem incidir em pernicioso ativismo judicial ou invadir indevidamente o mérito.
NOTAS
1 Hely Lopes Meireles expõe (Direito Administrativo Brasileiro. 2016, pág. 849): “A conceituação dos chamados atos políticos tem desafiado a argúcia dos publicistas, sem chegarem a uma definição coincidente e satisfatória. A dificuldade está em que, a nosso ver, não há uma categoria de atos políticos, como entidade ontológica autônoma na escala dos atos estatais, nem há um órgão ou Poder que os pratique com privatividade”. Isso leva a inferir uma possível aproximação do autor na classificação dos atos políticos com os atos administrativos, com estes, porém, não se confundindo, já que dotados de nuances particulares.
2 Nesse sentido, MEDAUR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 21ª Ed, Belo Horizonte: editora Forum 2018.
3 É o mesmo Hely Lopes Meireles quem diz (2016, pág. 850): “Pelo só fato de ser discricionário o ato político não se exime do controle judiciário, porque, como esclarece Castro Nunes, ‘a discrição cessa onde começa o direito individual, posto em equação legal. As medidas políticas são discricionárias apenas no sentido de que pertencem à discrição do Congresso ou do Governo os aspectos de sua conveniência ou oportunidade, a apreciação das circunstâncias que possam autorizá-las, a escolha dos meios etc. Na verdade - remata o mesmo jurista-, os tribunais não se envolvem, não examinam, não podem sentenciar nem apreciar, na fundamentação de suas decisões, as medidas de caráter legislativo ou executivo, políticas ou não, de caráter administrativo ou policial, sob aspecto outro que não seja o da legitimidade do ato, no seu assento constitucional ou legal. Mas, nessa esfera restrita, o poder dos tribunais não comporta, em regra, restrição fundada na natureza da medida’. A só invocação da natureza política do ato não é o suficiente para retirá-lo da apreciação judiciária. Necessário é que, sendo um ato com fundamento político, não se tenha excedido dos limites discricionários demarcados ao órgão ou autoridade que o praticou”. Por sua vez, Celso Antônio (Curso de Direito Administrativo. 2013, pág. 37) entende que ato político não emerge da função administrativa, o que não o blinda da atuação judicial nos aspectos de legalidade.
4 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a propósito, explica (Direito Administrativo. 2017, pág. 825): “Hoje, é possível falar em legalidade restrita, significando exigência de lei, em sentido formal [...] Todavia, também é possível falar em legalidade em sentido amplo, para abranger não só a obediência à lei, mas também a observância dos princípios e valores que estão na base do ordenamento jurídico”.