RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo identificar a possibilidade da aplicação da teoria da cegueira deliberada nos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil, por meio da análise da jurisprudência, das doutrinas nacionais e do direito comparado sobre o tema. No desenvolvimento do artigo, analisou-se a origem, o conceito, as características e alguns julgados que tratam sobre referida teoria. Abordou-se a origem histórica, a tipificação do crime de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, previsto na Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, demonstrando-se a complexidade do tipo penal, com seus vários núcleos e sua natureza complexa em razão da necessidade do agente praticar um tipo penal antecedente, crime derivado, acessório ou, ainda, parasitário. Foi ressaltada a importância no combate à lavagem de dinheiro, por meio da citada teoria, como forma mais eficaz de inibir a propagação do crime organizado. Abordou-se, doutrinariamente, sobre os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal, especificando a diferença existente entre o dolo direto e o dolo eventual para fins de incidência da responsabilidade criminal, especialmente quanto à admissão do dolo eventual nos crimes de lavagem de dinheiro, isso em razão da divergência doutrinária quanto ao dolo eventual, haja vista a unicidade quanto ao dolo direto. A pesquisa foi eminentemente bibliográfica, qualitativa, com objetivo exploratório e métodos de interpretação sistemático, comparativo e restritivo.
Palavras-chave: Cegueira deliberada. Lavagem de dinheiro. Dolo direto. Dolo eventual.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo identificar, a despeito de divergência entre a doutrina e a jurisprudência pátrias, a possibilidade da aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, conhecida também como Willful Blindness, nos crimes de “lavagem de dinheiro” previstos na Lei nº 9.613, de março de 1998, alterada pela Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012.
A Teoria da Cegueira Deliberada provém do Direito Britânico e atingiu seu potencial desenvolvimento na jurisprudência Norte-Americana e, também, é aplicada no Direito Espanhol.
Essa teoria é pouco aplicada no Brasil, especialmente devido a divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Tem-se conhecimento de que foi aplicada em poucos casos, podendo-se citar sua aplicação nas ações penais, instauradas a partir das operações da Polícia Federal, denominadas de “Mensalão” e “Lava jato”.
A discussão sobre a aplicabilidade dessa teoria tem-se revelado importante para o meio jurídico e socioeconômico, por demonstrar potencial de eficácia no enfretamento aos “crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores”.
O trabalho que se apresenta disserta sobre a origem, o conceito e as características dos tipos penais descritos na Lei nº 9.613, de março de 1998, alterada pela Lei nº 12.683, de 9 de julho de 2012, discorrendo sobre os requisitos mínimos para a sua aplicação e os vários núcleos das condutas delitivas, considerados pela doutrina como crimes complexos, acessórios ou, ainda, parasitários.
No desenvolvimento deste artigo, também discorreu-se sobre os elementos objetivos e subjetivos dos tipos penais e quais as implicações desses elementos nos casos concretos dos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, buscando-se demonstrar a distinção entre dolo direto e dolo eventual, bem como suas peculiaridades.
A “Lei de lavagem de dinheiro” apresenta-se como um feixe de normas de proibição de condutas delitivas, a fim de atender às finalidades preventivas e repressivas e funcionando como um padrão de combate a esses crimes, haja vista que geram vultosos patrimônios, produtos de ações criminosas, cuja ilicitude é ocultada nas mais diversas relações financeiras e econômicas no seio da sociedade.
A pesquisa que deu origem ao presente artigo foi eminentemente bibliográfica, qualitativa e exploratória, com levantamento de autores, livros, publicações, teses e demais materiais disponíveis sobre o assunto e os métodos de interpretação utilizados foram o sistemático, comparativo e restritivo.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Com base nas doutrinas brasileiras e estrangeiras, aborda-se neste capítulo a origem do crime de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, suas principais características e a criminalização no Brasil. Expõe-se sobre os elementos objetivos e subjetivos, distinguindo-se o dolo direto do dolo eventual, no tipo penal da lavagem de dinheiro, e ainda a origem e definição da Teoria da cegueira deliberada.
2.1 ORIGEM DA LAVAGEM DE DINHEIRO
A expressão “lavagem de dinheiro” (money laundering) apareceu na década de 1920 nos Estados Unidos. A teoria que prevalece acerca do surgimento desta expressão remete ao período em que os gângsteres norte-americanos usavam lavanderias com o fito de ocultar o dinheiro proveniente de ações ilícitas, dentre elas a venda ilegal de bebidas alcoólicas (CALLEGARI; WEBER, 2014). Entretanto, há evidências de que piratas, na Idade Média, já procuravam afastar qualquer coisa que ligasse os recursos oriundos do crime das atividades delituosas que cometiam (CALLEGARI; WEBER, 2014).
Na segunda metade do século XX, a lavagem de dinheiro tomou uma maior proporção quando os Estados Unidos, na década de 70, começou a investigar o tráfico de drogas e a maneira como tais criminosos lavavam o dinheiro oriundo dessa atividade.
O grande empecilho para o narcotraficante é o volume do dinheiro arrecadado com a venda de drogas, tais vendas acontecem usualmente nas ruas, com pagamento em espécie e em notas de baixo valor, criando um volume muito maior do que o do produto vendido. Em virtude disto, os narcotraficantes passaram a utilizar-se de um complexo sistema para dar aparência de legalidade aos seus lucros, empregando tais valores no mercado financeiro (CALLEGARI; WEBER, 2014).
Lavagem de dinheiro é o ato ou a sequência de atos exercidos para ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal, com o fito de reinserir na economia com aparência de licitude.
Trata-se de movimento de afastamento dos bens de seu passado sujo, que tem início com uma simples ocultação e finda com a introdução no âmbito comercial ou financeiro, com aparência legítima (BADARÓ; BOTTINI, 2013).
Na doutrina pátria, não há divergências significativas com relação ao conceito do delito de lavagem de dinheiro.
A expressão "lavagem de dinheiro" teve, como base que a inspirou, fórmula criada no direito norte-americano, que, em sua soberania jurídica, utilizou o termo money laundering de modo figurado. Quando se lava algo, pressupõe-se que o objeto a ser lavado está sujo, porém, algum dia, já esteve limpo, portanto, somente se lava aquilo que alguma vez já esteve limpo e pronto para uso (BARROS; SILVA, 2015).
2.1.1 Características da lavagem de dinheiro
A doutrina indica como características no processo de lavagem de dinheiro, segundo Callegari e Weber (2014, p. 8), “internacionalização dos processos; profissionalização do processo (complexidade ou variedade dos métodos utilizados); e movimentação de elevado volume financeiro”.
No que tange à internacionalização das atividades, as organizações criminosas funcionam como verdadeiras transnacionais, aproveitando-se da dificuldade de troca de informações entre os países e da falta de cooperação judicial internacional, o que permite que os lavadores se amparem nas deficiências da regulação internacional, afastando os bens objetos de lavagem para os países com sistemas mais fracos de fiscalização e persecução da lavagem de dinheiro (CALLEGARI; WEBER, 2014).
Assevera Callegari e Weber (2014, p. 10), “a organização dos criminosos é tamanha que lembra o funcionamento de um maquinário, no qual o indivíduo desempenha um papel específico para a realização do delito”.
Esclarece também Callegari e Weber (2014, p. 10) que “na maioria das vezes a organização inicia o delito em um país, tem uma segunda parte desenvolvida em outro e finaliza a operação em uma terceira nação, sempre especializada na lavagem”. Tudo isso com o fito de diminuir os riscos da persecução criminal por parte das autoridades.
No aspecto da movimentação de elevado volume financeiro, não resta dúvidas de que a lavagem movimenta um volume financeiro extraordinário, sendo a lavagem de capitais uma das coisas que mais geram lucros no mundo. Essas operações necessitam de uma organização, estrutura, rede de cúmplices e colaboradores nos mais diversos escalões, seja no setor público ou privado, tais como empresas ou entidades financeiras que operam sob a aparência de legalidade, culminando em um poder de controle e decisão incalculáveis para os criminosos de colarinho branco.
Constata-se, dessa forma, que as características essenciais da lavagem de dinheiro estão relacionadas, sempre que uma das características citadas é incrementada a outra cresce na mesma proporção.
2.1.2 Criminalização da lavagem de dinheiro no Brasil
O primeiro esforço internacional, realmente abrangente e concreto, no combate à lavagem de dinheiro, deu-se com a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, o qual foi festejada em Viena, no dia 20 de dezembro de 1988, entrando em vigor no plano internacional no dia 11 de novembro de 1990.
Tal convenção recomendava aos Estados signatários a incriminação da conversão ou transferência de ativos oriundos do tráfico, assim como a ocultação ou encobrimento da natureza, origem, localização, destino, movimentação ou propriedade verdadeira de tais bens, bem como sua aquisição, posse ou utilização[1].
O nascimento dessa convenção segundo Lima (2016, p. 285),
guarda relação com a preocupação dos Estados signatários com a magnitude e a crescente tendência da produção, da demanda e do tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, que representam uma grave ameaça à saúde e ao bem-estar dos seres humanos e que têm efeitos nefastos sobre as bases econômicas, culturais e políticas da sociedade. Origina-se, também, do reconhecimento dos vínculos existentes entre o tráfico ilícito e outras atividades criminosas organizadas, a ele relacionadas, que minam as economias lícitas e ameaçam a estabilidade, a segurança e a soberania dos Estados.
A Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes foi ratificada no Brasil, no dia 26 de junho de 1991, através do Decreto nº 154/91, quando prontificou-se a criminalizar a lavagem de dinheiro proveniente do tráfico ilícito de entorpecentes (LIMA, 2016).
A criminalização da conduta de lavagem de dinheiro em nossa legislação pátria veio através da Lei n° 9.613, de 3 de março de 1998, que apresentava um rol taxativo de crimes antecedentes para que se caracterizasse a lavagem de dinheiro, tendo o agente criminoso que ter conhecimento de que tais bens fossem oriundos de um dos crimes constantes do rol taxativo da lei, estabelecendo também obrigações administrativas para quem exercesse atividade em setor sensível a esquemas de lavagem de dinheiro, bem como criou o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).
Posteriormente, a fim de tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro, o legislador pátrio entendeu fazer, por bem, algumas alterações na Lei n° 9.613/98, surgindo assim a Lei n° 12.683, de 9 de julho de 2012. Dentre as mudanças, ocorreu a extinção do rol taxativo de crimes antecedentes para caracterizar o delito de lavagem de dinheiro, passando agora a valer para toda e qualquer infração penal[2] para que reste caracterizado o delito, assim como houve também a inclusão de novas obrigações administrativas, as quais se submetem a um rol mais amplo de pessoas e entidades.
2.2 TIPO PENAL DA LAVAGEM DE DINHEIRO
Prevê, o tipo penal de lavagem de dinheiro, in verbis:
Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa[3]
§ 1o Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal:
I - os converte em ativos lícitos;
II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;
III - importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros.
§ 2o Incorre, ainda, na mesma pena quem:
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal;
II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.[4] (BRASIL, 2016, p. 1773)
É necessário esboçar alguns comentários concernentes ao tipo penal da lavagem de dinheiro sobre os elementos objetivo e subjetivo deste crime.
2.2.1 Elementos objetivos do tipo
Os verbos do tipo penal são ocultar e dissimular, ocultar é ato de esconder a coisa, tirar de circulação, subtrair da vista. Significa o conceito de uma atividade em que se procura atrapalhar ou dificultar o encontro da coisa, decorre de um simples encobrimento da coisa por intermédio de qualquer meio, contanto que o agente execute com o intento de, futuramente, converter o bem ou valor em ativo lícito (LIMA, 2016).
Dissimular significa, conforme o ensinamento de Lima (2016, p. 311),
encobrir, disfarçar, escamotear, tornar invisível ou pouco perceptível, ou seja, qualquer operação efetuada pelo agente para dificultar ainda mais o rastreamento dos valores. Pela dissimulação, que funciona como uma segunda etapa do processo de lavagem, o agente visa garantir a ocultação, proporcionando uma tranquila fruição dos valores ocultados e, acima de tudo, a impunidade. Dissimulação deve ser interpretada, portanto, como ocultação com fraude ou garantia de ocultação.
Verifica-se, no tipo penal, duas condutas diferentes ligadas a mesma pena, tratando-se de crime de ação múltipla com núcleos disjuntivos, de modo que restará consumado o crime, quando houver a execução de qualquer das condutas tipificadas (BADARÓ; BOTTINI, 2013).
O tipo penal de lavagem de dinheiro é considerado de natureza complexa, pois a Lei abarca vários núcleos relacionados à conduta delitiva. O tipo penal, em sua essência, remete a uma infração penal antecedente, por isso é classificado como um crime derivado, acessório ou, ainda, parasitário.
Insta salientar que a simples guarda ou transporte físico do produto do crime, sem intenção de ocultação ou dissimulação, não configura o crime de lavagem de dinheiro, bem como a utilização de maneira aberta do produto do crime, posto que, se o agente usa o dinheiro oriundo de uma infração, a fim de comprar bens em seu nome, não há que se falar em lavagem de dinheiro, pois não há ocultação, tampouco dissimulação, sendo simples aproveitamento do produto do crime (LIMA, 2016).
2.3 ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO
Conforme assevera Bitencourt (2016, p. 356),
[...] O tipo subjetivo abrange todos os aspectos subjetivos do tipo de conduta proibida que, concretamente, produzem o tipo objetivo. O tipo subjetivo é constituído de um elemento geral — dolo —, que, por vezes, é acompanhado de elementos especiais — intenções e tendências —, que são elementos acidentais [...] Os elementos subjetivos que compõem a estrutura do tipo penal assumem transcendental importância na definição da conduta típica, pois é através do animus agendi que se consegue identificar e qualificar a atividade comportamental do agente. Somente conhecendo e identificando a intenção — vontade e consciência — do agente poder-se-á classificar um comportamento como típico. (grifo do autor)
2.3.1 Dolo Direto
O elemento subjetivo dos crimes previstos na Lei 9.613/98 é o dolo, definido, segundo Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 420), “como a vontade realizadora do tipo objetivo, guiada pelo conhecimento dos elementos deste no caso concreto”.
Não se admite a punição da lavagem de dinheiro a título de culpa na legislação pátria, nos termos do Código Penal, art. 18, II. O crime culposo ocorre quando há adequação do tipo objetivo não desejada pelo agente, quando o agente dá causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia, posto que o delito culposo só pode existir quando expressamente previsto em tipo legal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011).
Não é necessária a participação na infração antecedente para que se possa ser sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro, hodiernamente percebe-se uma tendência universal em se terceirizar a ação de lavagem de dinheiro, sendo raro a coincidência entre o autor do crime de lavagem e do autor do crime antecedente (LIMA, 2016).
Não exige abertamente, a Lei nº 9.613/98, consoante Lima (2016, p. 318),
conhecimento específico acerca dos elementos e circunstâncias da infração antecedente, subentende-se que o dolo deve abranger apenas a consciência de que os bens, direitos ou valores objeto da lavagem são provenientes, direta ou indiretamente, de uma infração penal. Será dispensável, pois, o conhecimento do tempo, lugar, forma de cometimento, autor e vítima da infração precedente.
2.3.2 Dolo Eventual
Consoante o art. 18, I, do Código Penal, diz-se que o crime é doloso quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo, escolhendo o legislador por equiparar estas duas espécies, quais sejam, o dolo direto e o dolo eventual.
A diferença entre o dolo direto e o dolo eventual é que, no dolo direto, o agente deseja o resultado representado como fim da sua ação, sendo guiado pelo seu desejo à realização do fato típico, portanto, o objeto do dolo direto é o fim que se propôs o agente, os meios decididos por ele e os efeitos colaterais imprescindíveis à efetuação do objetivo. Já no dolo eventual, o agente não quer diretamente a realização do tipo, mas anui como possível, ou até provável, aceitando o risco de produzir o resultado (BITENCOURT, 2016).
Consoante lição de Bitencourt (2016, p. 364), “o dolo eventual não se confunde com a mera esperança ou simples desejo de que determinado resultado ocorra”, todavia, se o sujeito desconhece com precisão os elementos solicitados pelo tipo objetivo, e mesmo duvidando de sua existência, se atuar admitindo tal possibilidade, restará configurado o dolo eventual (BITENCOURT, 2016).
O dolo eventual, conceituado em termos mais simples, segundo Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 434), “é a conduta daquele que diz a si mesmo "que aguente", "que se incomode", "se acontecer, azar", "não me importo".
O dolo eventual encontra-se em uma zona intermediária entre o dolo direto e a culpa, sendo necessário que reste claro a sua diferença em relação a esta, especificamente, a “culpa consciente”, pelo fato de também supor a realização da conduta típica como possível consequência da conduta.
A fronteira entre o dolo eventual e a culpa consciente é um terreno duvidoso, tanto no âmbito processual, quanto no âmbito do direito penal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011).
Esclarecem Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 450) que
culpa consciente, aquela em que o sujeito ativo representou para si a possibilidade da produção do resultado, embora a tenha rejeitado, na crença de que, chegado o momento, poderá evita-lo ou simplesmente ele não ocorrerá. Este é o limite entre a culpa consciente e o dolo [...]. Aqui há um conhecimento efetivo do perigo que correm os bens jurídicos, que não se deve confundir com a aceitação da possibilidade de produção do resultado, que é uma questão relacionada ao aspecto volitivo e não ao cognoscitivo, e que caracteriza o dolo eventual. Na culpa com representação, a única coisa que se conhece efetivamente é o perigo.
No que tange aos crimes dolosos, via de regra, os tipos penais admitem tanto a modalidade do dolo direto, quanto a do dolo eventual, conforme expõe Sérgio Moro (2010, p. 48),
Não há uma enumeração de tipos penais específicos que comportem o dolo eventual, embora existam alguns tipos cuja interpretação exclua essa possibilidade. Uma das fórmulas possíveis é exigir no tipo penal o conhecimento pleno do resultado delitivo, afastando a possibilidade de configuração pelo mero conhecimento da probabilidade de sua ocorrência. Assim por exemplo, a configuração da denunciação caluniosa exige o conhecimento pleno de que se imputa crime a um inocente[5]. Da mesma forma, o tipo penal da receptação dolosa exige que o agente tenha conhecimento pleno da origem e natureza criminosa do bem envolvido, por força de previsão legal específica[6]. Em ambos os casos, não basta que o agente tenha o resultado delitivo como provável.
Ademais, o texto do tipo penal aponta que a punição de tais crimes somente é admitida através do dolo direto.
Esclarece Lima (2016, p. 321),
na medida em que o caput do art. 1°, bem como os tipos penais do § 1° e do § 2°, inciso I, da Lei n° 9.613/98, não fazem uso de expressões equivalentes, inexistindo referência à qualquer circunstância típica referida especialmente ao dolo ou tendência interna específica, conclui-se que é perfeitamente possível a imputação do delito de lavagem tanto a título de dolo direto, quanto a título de dolo eventual. (grifo do autor)
O mesmo não aconteceu com o tipo penal do art. 1°, § 2°, inciso II, preconizando que incorre na mesma pena do crime de lavagem de capitais quem "participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei". Por não ter sido retirada a expressão "tendo conhecimento", permanece esta figura delituosa como o único meio de lavagem de capitais, que é punido apenas na modalidade de dolo direto (LIMA, 2016).
A doutrina brasileira é dividida no que tange à admissão ou não do dolo eventual no crime de lavagem de dinheiro. Enquanto que Antônio Pitombo e Marco Antônio Barros acolhem que o crime de lavagem exige o dolo direto, há outros, como Rodolfo Tigre Maia e William Terra de Oliveira, que aceitam o dolo eventual, arrimados os que aceitam o dolo eventual na falta de restrição legal (MORO, 2010).
Para Sérgio Moro (2010, p. 54),
muito embora não haja previsão legal expressa para o dolo eventual no crime do art. 1.°, caput, da Lei n. 9.613/98 (como não há em geral para qualquer outro crime no modelo brasileiro), há a possibilidade de admiti-lo diante da previsão geral do art. 18, I, do CP e de sua pertinência e relevância para a eficácia da lei de lavagem, máxime quando não se vislumbram objeções jurídicas ou morais para tanto. (grifo do autor)
2.4 TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA
A teoria da cegueira deliberada (willful blindness) é oriunda do direito britânico, contudo sua evolução se deu através da jurisprudência norte-americana e, hodiernamente, vem sendo discutida a nível nacional. Por meio dos parâmetros adotados pelas cortes americanos, verifica-se a possibilidade de aplicação da teoria ao direito pátrio, com arrimo na nova redação do tipo penal (CALLEGARI; WEBER, 2014).
Na definição de Barros e Silva (2015, p. 231), a teoria da cegueira deliberada,
constitui uma tese jurídica por meio da qual se busca atribuir responsabilidade penal àquele que, muito embora esteja diante de uma conduta possivelmente ilícita, se autocoloca em situação de ignorância, evitando todo e qualquer mecanismos apto a conceder-lhe maior grau de certeza quanto a potencial antijuridicidade.
Segundo Lima (2016, p. 326), em virtude dessa teoria, “aquele que renuncia a adquirir um conhecimento hábil a subsidiar a imputação dolosa de um crime responde por ele como se tivesse tal conhecimento”.
Personifica essa situação, o comerciante de joias que suspeita que alguns de seus clientes possam estar lhe pagando pela compra de joias com dinheiro sujo, com o fito de ocultar a proveniência ilícita dos valores, escolhendo, assim mesmo, criar barreiras para não tomar conhecimento de informações mais precisas de seus clientes (LIMA, 2016).
A doutrina da cegueira deliberada tem sido admitida pela justiça norte-americana quando presentes dois requisitos, quais sejam, quando há prova de que o agente tinha ciência da alta possibilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos eram oriundos de infração penal, e quando o agente age de maneira indiferente a tal ciência (MORO, 2010).
É possível equiparar a cegueira deliberada ao dolo eventual, segundo Badaró e Bottini (2013, p. 101), “nos casos de criação consciente e voluntária de barreiras que evitem o conhecimento de indícios sobre a proveniência ilícita de bens, nos quais o agente represente a possibilidade da evitação recair sobre atos de lavagem de dinheiro”.