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Aplicação da teoria da cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas

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4 DA POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO CRIME DE TRÁFICO

4.1 Da importância pela teoria finalista da ação

Se a ignorância deliberada pressupõe o dolo eventual, todas as implicações do injusto penal adequam-se à sua aplicação, vez que, sendo um elemento subjetivo de cognição e probabilidade, herda os efeitos inerentes ao fato ilícito.

Assim, no que diz respeito à conduta delitiva, tem-se que na teoria finalista da ação, adotada pelo direito penal brasileiro, o intermediário da conduta e do resultado antijurídico é o dolo, pois toda ação humana é motivada pela vontade do sujeito, que é dirigida a um determinado fim, ou melhor, “a ação compõe-se de um comportamento exterior, de conteúdo psicológico, que é a vontade dirigida a um fim, da representação ou antecipação mental do resultado pretendido” (BITENCOURT, 2013, p. 289).

Com isso, o direito penal passa a estudar dois prismas da conduta humana, sendo a subjetividade quanto à motivação da ação e a objetividade quanto ao fim visado, ou seja, o resultado típico da conduta exteriorizada. E, por esse motivo, todas as condutas típicas (salvo algumas exceções, que permitem a culpa) exigem a configuração do dolo para que possibilite a cominação da pena.

Nesse sentido, para a teoria finalista da ação é importante integrar a conduta delitiva propositalmente ignorada no crime de tráfico de drogas, pois possibilita analisar a vontade e consciência do indivíduo para a construção da culpabilidade ou responsabilidade penal.

4.2 Da possibilidade mediante exigibilidade de conduta diversa

Percebe-se que, a cegueira deliberada não se trata de inovação de elemento subjetivo do sistema normativo penal, mas sim, de circunstâncias que se adequam a outro elemento subjetivo já previsto na Carta Repressiva, e sendo assim, aplicam-se a esse instituto todos os efeitos legais suscitados pela conduta criminosa.

Destarte, o direito penal brasileiro utilizando-se da teoria finalista da ação, visa capitar a motivação do injusto penal para se valer das medidas repressivas a ele inerentes. E, considerando a culpabilidade elemento que busca a configuração do delito, relevante é verificar os membros que o integram, para melhor análise do dolo.

Para tanto, importa esclarecer que culpabilidade não se confunde com culpa, pois essa prevista no artigo 18, II do Código Penal é elemento subjetivo excepcional para a caracterização delitiva, e só será aplicada quando a lei expressamente a prever, ao passo que aquela, está relacionada à responsabilização criminal do sujeito, quando da manifestação de consciência e vontade diante do injusto penal. Portanto, são elementos autônomos e não podem ser confundidos. Isso porque, o tipo penal de tráfico de drogas não contempla a modalidade culposa e sua configuração se perfaz mediante análise dos componentes do dolo.

Assim, no âmbito da culpabilidade, a inexigibilidade de conduta diversa consiste na realização da conduta quando não era legalmente exigível comportamento diverso. Ao contrário, “só há culpabilidade quando, devendo e podendo o sujeito agir de maneira conforme ao ordenamento jurídico, realiza conduta diferente, que constitui o delito. Então, faz-se objeto do uso de culpabilidade” (JESUS, 1993, p. 420).

Dessa feita, para efeito na cegueira deliberada, há exigibilidade de conduta diversa quando o resultado é previsto pelo sujeito, e este, podendo agir de outro modo, cria obstáculos para não evitá-lo.

Não haverá culpabilidade, portanto, quando o sujeito estiver acobertado da justificativa exculpante, isto é, quando a lei não exigia conduta diversa ao tempo de sua ação, como é o caso da coação (física e moral) irresistível e da obediência hierárquica abordados no artigo 22 do Codex Penal, cuja vontade do agente é viciada.

Eis então que surge a dúvida quanto à obediência hierárquica: suponha-se que o sujeito, prevalecendo-se de sua função, recebe determinado mandado (não manifestamente ilegal) de seu superior e visa o seu cumprimento, mas, devido à maneira que se revela o comando, suspeita e tem condições de saber que a ordem é ilícita. Entretanto, ignora propositalmente tal suposição para cumpri-la. Poderia neste caso alegar a causa exculpante pela obediência hierárquica?

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Entende-se que não, pois se comprovado que o subalterno ao receber a ordem e dispor-se a cumpri-la, presumia e evidenciava a sua ilegalidade, não estará acobertado pela justificativa exculpante, uma vez que ao tempo do cumprimento era exigível conduta diversa, pois “tem não apenas o direito, mas também o dever legal de não cumpri-la, denunciando a quem de direito o abuso de poder a que está sendo submetido” (BITENCOURT, 2013, p. 488).

Logo, em se tratando do delito de tráfico de drogas mediante cegueira deliberada, é convenientemente culpável o sujeito que devendo e podendo agir quando lhe era exigível conduta diversa, opta intencionalmente em se cegar diante do ilícito e operar-se em desconformidade com a lei.

4.3 Da aplicação contemporânea pelo direito penal brasileiro

A despeito de ser uma teoria que provoca discussão pela (ou não) responsabilidade criminal, não se pode evitar que a utilização da cegueira deliberada vem ampliando as interpretações e condenações penais.

Dessa forma, encontra-se explicitamente em decisões criminais, desde as de primeiro grau, até as de grau superior, sendo um excelente mecanismo para demonstrar a consciência e vontade daquele que podendo, não tomou o devido cuidado para evitar o tráfico.

Tomando como exemplo prático, pense-se na seguinte situação: o sujeito é contratado para conduzir um veículo da cidade de Salto Del Guairá, no Paraguai, até a cidade de Novo Mundo, no Mato Grosso do Sul, e para executar o serviço receberia a quantia de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) e, para auferir a importância convencionada, preferiu não tomar conhecimento do produto ou objeto que estava a transportar.

Momento após o início do percurso, mais precisamente na Ponte da Amizade, o indivíduo é surpreendido por policiais federais, que no momento da abordagem vasculham o interior do veículo e encontram 50 kg da substância cannabis sativa, mais conhecida como maconha. O indivíduo alega o desconhecimento da substância entorpecente.

Assim, levando-se a efeito a Teoria da Cegueira Deliberada no exemplo retro mencionado, o sujeito não poderá esquivar-se da imputabilidade penal, pois as circunstâncias à sua volta faziam presumir a procedência ilícita de sua conduta.

Primeiro porque o lugar que se deu a condução do veículo, isto é, o Paraguai, é conhecido pela grande influência de importação e exportação de drogas. Segundo porque o valor convencionado é excessivo para uma mera condução de um veículo entre fronteiras com elevado índice de tráfico. E terceiro porque diante de todas essas evidências, o agente optou, deliberadamente por ignorá-las, assumindo o risco de praticar ato delituoso. Em resumo, a verificação dessas circunstâncias vale-se da percepção que qualquer homem médio deve possuir.

Nesse viés, consolidando o exemplo prático, já decidiu o Tribunal Regional Federal da 4º Região:

DIREITO PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS. ART. 33 DA LEI Nº 11.343/06. DOSIMETRIA DA PENA. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DO ART. 33, § 4º, DA LEI Nº 11.343/06. FRAÇÃO FIXADA EM 1/3. TRÁFICO INTERNACIONAL DE MUNIÇÕES. ART. 18 DA LEI Nº 10.826/03. INOCORRÊNCIA DE ERRO DE TIPO. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. DOLO EVENTUAL CONFIGURADO. DOSIMETRIA DA PENA. MUNIÇÃO DE USO RESTRITIO. INCIDÊNCIA DA CAUSA DE AUMENTO DE PENA DO ART. 19 DA LEI Nº 10.826/03. CONCURSO FORMAL DE CRIMES. INTELIGÊNCIA DO ART. 70 DO CÓDIGO PENAL. REGIME INICIAL SEMIABERTO. INTELIGÊNCIA DO ART. 33, § 2º, ALÍNEA 'B', DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR MEDIDAS RESTRITIVAS DE DIREITOS. INTELIGÊNCIA DO ART. 44, I, DO CÓDIGO PENAL. 1. O vetor natureza da droga e o vetor quantidade da droga, ambos previstos no artigo 42 da Lei 11.343 podem ser usados na primeira ou na terceira fase de dosimetria da pena, naquela ensejando aumento da pena-base, nesta fazendo incidir fração de redução menor que a máxima quando da avaliação do quantum da causa especial de diminuição de pena prevista no § 4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/06. 2. Todo o conjunto probatório leva a crer que o réu poderia prever e conscientemente criou o risco de produzir um resultado típico posto que: sabia tratar-se de drogas parte da mercadoria transportada; receberia quantia elevada para realizar o frete do entorpecente; e é de conhecimento público e notório que a região de fronteira com a República do Paraguai é palco costumeiro de crimes desta natureza (tráfico internacional de armas, munições). Nessa seara, pertinente a construção jurisprudencial e doutrinária do direito anglo-saxão no que se refere à teoria da cegueira deliberada (willfull blindness doctrine). O dolo configurado, nesse caso, é o dolo eventual. 3. Havendo laudo pericial no sentido de comprovar a restritividade de uso das munições transportadas pelo acusado, aplicável a causa de aumento do art. 19 da lei nº 10.826/03. 4. Configurado o concurso formal de crimes, aplica-se a pena mais grave acrescida de 1/6 (um sexto), nos termos do art. 70 do Código Penal. Relativamente às penas de multa, ambas são aplicadas distinta e integralmente, nos termos do art. 72 do Codex Penal.5. Restando a pena privativa de liberdade definitivamente fixada em 07 (sete) anos de, o regime inicial para cumprimento da reprimenda é o semiaberto, nos termos do art. 33, §2º, alínea 'b', bem como mostra-se impraticável a substituição da sanção corporal por penas restritivas de direitos, nos termos do art. 44, inciso I, do Código Penal. (RIO GRANDE DO SUL, 2016).

Percebe-se que não há, na nossa prática jurídica, qualquer impedimento da cegueira deliberada, quando presentes os requisitos da probabilidade criminosa. Por isso, segundo Pedro Jorge Costa (2015, p. 267-268), devido à correspondência do sistema pátrio vigente por meio do dolo eventual à cegueira deliberada, esta poderia ter aplicação autônoma no nosso sistema, haja vista que a maioria dos casos de ignorância deliberada é mesmo de dolo eventual.

Como se vê, embora em processo de pacificação na jurisprudência pátria, o emprego da cegueira deliberada no crime de tráfico de drogas é medida fundamental contra meios de obstrução por criminosos para escusar-se da cominação penal.

4.4 Da prova da cegueira deliberada

Tratando-se de elemento subjetivo, a análise probatória da cegueira deliberada far-se-á indiretamente, por meios que buscam encontrar o estado mental justificável ao tempo da conduta ilícita, adequando-se tais elementos à análise do dolo eventual.

Logo, admite-se “a tese pela qual quem representa uma probabilidade, lógica, alta de produção do resultado, e ainda assim, pratica a conduta apta à sua causação, assume os riscos” (COSTA, 2015, p. 239). Por essa razão, a prova da cegueira deliberada constituirá método argumentativo para a verificação das circunstâncias que ao tempo do fato revelaram a intenção do indivíduo em permanecer na ignorância e o fez suportar os riscos por ela suscitados.

Todavia, deve-se todo o cuidado ao utilizá-la, para não empregá-la em indícios que possam configurar erro de tipo ou culpa. Assim, por ser um instituto peculiar, impondo-se minuciosa aplicação, exige-se que as circunstâncias estejam devidamente comprovadas nos autos, pois caso contrário, afrontaria o princípio de estado de inocência.

Assim, para fins de imputabilidade no crime de tráfico, constatando que era abundantemente possível o conhecimento do indivíduo acerca da conduta ilícita sem maiores obstáculos, não há falar em exclusão da tipicidade ou culpabilidade, pois para que se possa alegar a imprevisibilidade do resultado “é preciso que se tenha tomado todo o cuidado, que pessoas diligentes costumam ter, no exercício de sua atividade; só assim, poder-se-á dizer que os direitos alheios não foram violados por seus próprios atos” (PESSINA, 2006, p. 43-44).

À vista disso, observa-se que a verificação da cegueira deliberada prevalece-se dos mesmos elementos que buscam configurar o dolo eventual, pelos quais o sujeito assume os riscos de praticar qualquer crime quando constatada a sua consciência diante da probabilidade criminosa de sua conduta.

Sobre os autores
Alessandro Dorigon

Mestre em direito pela UNIPAR. Especialista em direito e processo penal pela UEL. Especialista em docência e gestão do ensino superior pela UNIPAR. Especialista em direito militar pela Escola Mineira de Direito. Graduado em direito pela UNIPAR. Professor de direito e processo penal na UNIPAR. Advogado criminalista.

Mariana Previatti Dias

Graduada em direito pela UNIPAR

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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