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Análise da relação professor/aluno e cidadão atendido, desenvolvida no núcleo de prática jurídica

Agenda 14/08/2005 às 00:00

Resumo: O núcleo de prática jurídica, obrigatório em toda universidade e faculdade de Direito, após a Portaria de nº 1.886/1994 do Ministério da Educação e do Desporto, visa, em regra, ao atendimento à comunidade carente prestado pelos alunos, sendo coordenado por um professor. É mister que o cidadão atendido seja visto como sujeito co-participante das tarefas ali desenvolvidas. Decorre daí, pois, a valorização do contato entre estes e os estudantes, ampliando os lindes da educação, na medida em que coloca a entrevista lado a lado com a solução jurídica dos fatos e eleva o cidadão carente de objeto da relação - ao lado de livro; códigos e processos - ao patamar de sujeito. Assim, além dos conhecimentos técnicos, o núcleo jurídico possibilita o exercício das relações interpessoais e o aprimoramento do dialogo, através da aproximação com a realidade dos marginalizados e excluídos, ampliando a percepção do acadêmico sobre sua própria realidade.


1- INTRODUÇÃO

            O presente estudo tem por desiderato delimitar o papel dos sujeitos - aluno, professor (instituição de ensino superior) e comunidade - envolvidos na atuação de um núcleo de prática jurídica, acentuando sua inter-relação, a fim de pontuar o modelo educacional ali desenvolvido. Assim, mister destacar que o ensino superior exige o permanente dialogo entre teoria e prática, posto que o bacharel em direito deve estar apto para acompanhar as constantes mudanças da teoria, criticá-la e também ser sujeito ativo de sua evolução, a fim de aplicá-la na praxis, visando a prevenção e solução de litígios e mesmo a transformação social.

            Inobstante se almeje uma postura imparcial (sem ser neutra, já que o subjetivismo é característica inerente ao ser humano, o qual nunca se despoja de seus valores individuais e coletivos na análise de qualquer objeto. Não há julgamento neutro ou ciência alijada dos valores de seu tempo), o conteúdo do estudo ora exposto, lastreado em pesquisa bibliográfica, é também fruto da experiência realizada no Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, onde na posição de docente, ou seja, nitidamente atrelada a um dos pólos da relação que se objetiva desvelar, vivenciamos a tônica do funcionamento de um núcleo jurídico, impulsionado por seus sujeitos.

            Embora a disciplina prática forense não seja novidade nas grades curriculares do curso de bacharelado em direito, a implantação do núcleo de prática jurídica, com a lida com atividades reais, é novidade implantada no ano de 1994 pelo Ministério da Educação e do Desporto. O debate, então, toma vulto e exige a participação da comunidade acadêmica e das instituições de nível superior, haja vista, tratar-se de uma realidade que ainda estar a lançar suas bases para a consolidação de seus objetivos, quais sejam, prima facie, propiciar ao futuro bacharel a consolidação de seus conhecimentos técnicos, através da conjunção entre teoria e prática.


2- O NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA:

            Desde a criação em 1820 do curso de direito em Olinda, no estado de Pernambuco, a forma de construção do conhecimento jurídico dos bacharéis em direito vem passando por diversas transformações, inerentes ao próprio devir do conhecimento humano. Neste diapasão, a Portaria n. 1.886 de 30 de dezembro de 1994, do Ministério da Educação e do Desporto, fixando o conteúdo mínimo dos cursos jurídicos, inseriu a disciplina de prática jurídica como obrigatória.

            Esclarece Oliveira (2002, p.58):

            Conforme disposto no artigo 10, parágrafo primeiro, daquela Portaria, o Núcleo de Prática Jurídica tem que ser caracterizado por instalações adequadas para desenvolver atividades referentes à magistratura, advocacia, Ministério Público, demais profissões jurídicas e para o atendimento ao público. Essas atividades, exclusivamente práticas, de acordo com o artigo 11, consistem da atuação em audiências, sessões, redação de peças processuais, visitas a órgãos judiciários, prestação de serviços jurídicos e técnicas de negociação coletivas, arbitragens e conciliação, todas controladas, orientadas e avaliadas pelo Núcleo de Prática Jurídica.

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            Percebe-se, pois, do colacionado entendimento que, ao revés do que ocorre em grande parte dos núcleos de prática jurídica, instalados por universidade e faculdades de direito, o desiderato destes não deve ser restrito às atividades inerentes à advocacia. Os núcleos jurídicos têm se restringido ao atendimento à comunidade carente, exercitando atividade típica da advocacia. Este, pois, foi o motivo pelo qual, a comunidade foi destacada como integrante da relação de ensino/aprendizagem objeto destas linhas. Apesar de advogarmos a tese de que o núcleo jurídico deve ter campo de atuação amplo, podendo e devendo, inclusive, atuar junto a empresas privadas e pessoas físicas, prestando assessoria e consultoria mediante contraprestação( aos que podem pagá-la), constituindo-se, para melhor exercer tal mister em fundação. Como a prática do bacharel em direito pode ter vasto campo de inserção, o núcleo jurídico deve possibilitar aos estudantes o conhecimento de tais oportunidades e a faculdade de exercitá-las, a fim descortinar, outrossim, vocações. Destarte, além de promover convênios e parcerias com instituições públicas e privadas, conforme prevê o artigo 10, parágrafo segundo, da dita Portaria, o núcleo jurídico deve concentrar todas atividades de conotação prática, tais como projetos de pesquisa e monitoria ( a atividade docente e de pesquisa, às vezes não é elencada como um dos caminhos a ser percorrido pelas egressos do bacharelado em direito).

            Adverti-nos Stasiak (2004, p.16):

            Assim, não é razoável que o Núcleo de Prática Jurídica, enquanto órgão responsável pela organização do estágio supervisionado, restrinja-se ao atendimento à população carente, no desenvolvimento da assistência judiciária. O aluno deve ser levado a visualizar horizontes mais amplos - até mesmo pela proposta de que o estágio seja prática jurídica, não mais forense -, não se obscurecendo a realidade contemporânea, onde as assessorias, consultorias e substitutivos processuais revelam a amplitude da formação prática a ser conferida ao acadêmico.

            Enfim, à parte destas considerações, conforme já frisado, o núcleo jurídico, em regra, atende aos cidadãos carentes, que não podem arcar com as despesas do processo e honorários de advogado sem comprometer o sustento próprio e de sua família.

            2.1- Da relação desenvolvida no núcleo jurídico: professor/aluno e comunidade:

            Os núcleos de prática jurídica que proporcionam atividade real à seus alunos, sob orientação do professor, através do atendimento à comunidade carente, destaca-se pela atuação dos seguintes sujeitos: docente e discente, representando a instituição de ensino superior, e cidadão atendido. A interação desses sujeitos promoverá: a uma: que o professor cumpra seu mister de facilitar a absorção cognitiva do discente; a duas: que o acadêmico construa e consolide saber teórico e prático; e três: que o cidadão hipossuficiente tenha prevenido ou pacificado um conflito, sob a égide do conhecimento jurídico.

            Há que se vislumbrar sempre, mister ressaltar, que a comunidade não é mero objeto das atividades do núcleo de prática jurídica, nem de benesse das universidades e faculdades e, consequentemente, das atividades dos alunos. A assistência e/ou assessoria judiciária gratuita não pode ser vista por docentes e discentes como um favor ou assistencialismo prestado prestados aos espoliados, pois, estes são, em verdade, sujeitos co-participantes da relação desenvolvida no núcleo jurídico, formada pela tríade: aluno/professor/comunidade.

            Ao manter um núcleo jurídico voltado ao atendimento da população carente de recursos financeiros, a instituição educacional promove uma parceria tácita com este extrato social, que se concretiza quando um cidadão procura os serviços oferecidos. Por isso, mais que mero atendido, cada pessoa que procura o núcleo jurídico constitui um parceiro, emergindo desta relação direitos e deveres recíprocos. Deste modo, galgando o status de sujeito da relação, o cidadão atendido, deixa de ser mero objeto de ensino/aprendizagem, tais como os livros, códigos e autos processuais.

            Evidentemente, o professor com esta ótica alarga, para além do horizonte estritamente jurídico as possibilidades de ensino/aprendizado. Um dos pontos de destaque, então, que exsurge desta ótica, deve ser o atendimento, ou seja, o contato inaugural entre aluno e cidadão. No mais das vezes, preocupados com o aspecto técnico, este atendimento sequer é objeto de reflexão. Neste diapasão, o professor deve fornecer subsídio ao alunado para a lida com estes parceiros/comunidade. É primordial na entrevista que se dê especial tratamento ao cidadão, atentando, sobretudo, para as peculiaridades desta população marginalizada ou excluída socialmente. Destarte, em virtude da baixa ou inexistente escolaridade do atendido, os discente devem ter por certo que, não raras vezes, existirão dificuldades para que aquele informe com exatidão os contornos do fato que deseja expor. Em contrapartida, o estudante tem de buscar linguagem simples e despojada de tecnicismo jurídico no momento de questionar sobre a situação narrada, bem assim quando for proceder à orientação e explicação acerca do meio que será adotado na solução da lide trazida.

            Já ao cidadão/parceiro, cabe proceder à exposição verdadeira dos fatos, inclusive de sua situação econômico/financeira, prestar auxílio na formação do lastro probatório e qualificação da parte ex adversa, agilizando e dando suporte ao bom e fiel patrocínio da demanda.

            Este contato inaugural entre estagiários, professor e cidadãos/parceiros tem singular destaque na relação de ensino/aprendizagem e, consequentemente, no deslinde das fases vindouras da prestação da assistência (e não assistencialismo) jurídico, seja ela com intervenção do Poder Judiciário ou extrajudicial. Ao tirar do centro o aspecto estritamente legal do atendimento realizado, ou seja, o foco do problema trazido e sua solução jurídica, abrindo-se espaço para uma dimensão maior, através da constatação do cidadão como sujeito da relação desenvolvida no núcleo, promove-se até mesma uma dinamização na solução da lide em termos de aplicação do direito. Pode-se, então, dividir as atividades em duas fases: a entrevista e aplicação do aporte teórico e prático na solução ou prevenção da controvérsia. Efetivamente, para que a segunda fase seja satisfatoriamente executada, o causídico deve ter ciência dos fatos assim como ocorreram; as partes devem estar devidamente qualificadas e determinado quais os documentos deverão ser entregues para posterior utilização, o que se dá na entrevista, quando, também, o estagiário passa a conquistar a confiança do cidadão/parceiro que lhes entrega suas celeumas a serem solucionadas.

            Além do que, tal fase possibilita o exercício das relações interpessoais e o aprimoramento do dialogo, através da aproximação com a realidades dos marginalizados e excluídos, ampliando a percepção do aluno e do professor sobre sua própria sociedade.


3- CONSIDERAÇÕES FINAIS:

            Partindo do pressuposto que o homem é um ser gregário e, por isso, histórico e cultural, a educação pode ser conceituada como todo aprendizado voltado para o ser humano viver e conviver em grupo. Desse modo, bem antes mesmo de aprender a falar, homens e mulheres já estão envoltos no processo educacional de apreensão da cultura na qual está inserido. Assim, nossos primeiros mestres são os pais, que no intento de nos civilizar, ou seja, de transmitir os valores aceitos pelo grupo, acaba assumindo o status de modelo a ser seguido. Consoante o molde adotado pela nossa sociedade, a chamada educação formal, diferencia-se daquela, pois visa a apreensão pelo educando de conhecimentos, cujo conteúdo mínimo é preestabelecido pelo Estado, através de diretrizes a serem seguidas, com aulas ministradas por pessoas previamente capacitadas.

            Apesar de o núcleo se inserir no contexto da educação formal, sendo a disciplina prática jurídica obrigatória para o bacharelado em direito, ela não pode ficar adstrita ao conteúdo formal. Cabe ao professor lançar as bases para a ampliação destes limites, partindo do pressuposto que o cidadão atendido é co-participante da relação desenvolvida no núcleo jurídico.

            Brandão (2001, p. 62), tratando da dimensão subjetiva da educação, acentua que:

            Muitas vezes, entre os que pensam assim, a dimensão subjetiva da educação é ressaltada e, não raro, toma conta de todo o espaço em que seu processo está sendo pensado. Não importa considerar sob que condições sociais e através de que recursos e procedimentos externos a pessoa aprende, mas apenas a pensar o ato de aprender do ponto de vista do que acontece do educando para dentro. (Grifamos)

            Pontuamos que além do que acontece do educando para dentro (dimensão subjetiva), a educação dita formal deve preocupar-se com o conhecimento profissionalizante (dimensão técnica) e a atuação deste indivíduo como ser histórico, analisando e interferindo em seu próprio contexto (dimensão social). Endossamos o entendimento de Masseto (2001, p.13/14), quando afirma:

            Partimos do princípio de que as instituições de ensino superior, como instituições educativas, são parcialmente responsáveis pela formação de seus membros como cidadãos (seres humanos e sociais) e profissionais competentes. [. .. ]

            É um lugar de fazer ciência, que se situa e atua em uma sociedade, contextualizado em determinado espaço e tempo, sofrendo as interferências da complexa realidade exterior, que se estende da situação político-econômico-social da população às políticas governamentais, passando pelas perspectivas políticas e ideológicas dos grupos que nela atuam. (Grifamos)

            Nessa perspectiva, o núcleo de prática jurídica não pode ser reduzido a mero laboratório, no qual o alunado desenvolva apenas a habilidade de peticionar e atuar em audiências, mas, vislumbre-se, em verdade, um cenário aberto e fértil para que - muito além do conteúdo programático - o aluno, professor e cidadão/parceiro identifiquem-se coletivamente: como seres sociais e históricos e, individualmente: como cidadãos comprometidos com os anseios da realidade social. Pontuou Freire (1999, p.77), com peculiar maestria, que:

            Mulheres e homens, somos os únicos seres que social e historicamente, nos tornamos capazes de apreender. Por isso, somos os únicos em quem aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura ao espírito. (destaques do original).

            Eis, em suma, a aventura e o risco dos que labutam em um núcleo de prática jurídica: romper com as amarras do academicismo em busca da prática educativa inclusiva e democrática.


4.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

            BRANDÃO, C. R. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1995.

            FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

            MASETTO, M. T. (org.). Docência na Universidade. Campinas: Papirus, 1998.

            OLIVEIRA, A. M. A essência de um Núcleo de Prática Jurídica. Prática Jurídica, Brasília, ano I, n 3, p. 58/59, junho de 2003.

            STASIAK, V. Núcleo de Prática Jurídica – obstáculo, superações e seu conteúdo profissionalizante. Prática Jurídica, Brasília, ano III, n 24, p. 16/18, março de 2004.

Sobre a autora
Luciana Santos Silva

Professora do curso de Direito da Universidade estadual do Sudoeste da Bahia. Mestre e doutorando pela PUC-SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luciana Santos. Análise da relação professor/aluno e cidadão atendido, desenvolvida no núcleo de prática jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 772, 14 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7086. Acesso em: 26 dez. 2024.

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