SUMÁRIO: Introdução - 1. A desconsideração da personalidade jurídica: noções conceituais; 2. Teorias “Maior” e “Menor” da desconsideração da personalidade jurídica; 3. O IDPJ como hipótese de intervenção de terceiros: regras dos arts. 133 a 137 do CPC; 4. Aplicabilidade do IDPJ ao processo do trabalho; 4.1. Desconsiderações múltiplas; 4.2. Marco temporal; 5. Adaptações do IDPJ ao processo do trabalho: abordagem crítica do art. 855-A da CLT; 5.1. Instauração de ofício do incidente no caso de jus postulandi; 5.2. Instauração de ofício do incidente na execução de contribuições sociais; 5.3. Suspensão parcial da execução; 5.4. Adaptações derivadas da adoção da teoria menor; 5.5. Importação do art. 792, §3º do CPC; 5.6. Cabimento de mandado de segurança contra decisões interlocutórias; 6. Entraves provocados pelo art. 855-A da CLT; Conclusão; Referências Bibliográficas.
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo desenvolver uma abordagem crítica do art. 855-A da CLT, novidade legislativa trazida pela Lei nº 13.467/17 (Reforma Trabalhista), ressaltando a necessidade de que o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ), regulado pelos arts. 133 a 137 do CPC, sofra adaptações em sua aplicação subsidiária ao processo do trabalho, diante das peculiaridades do crédito tutelado nesta seara (art. 769 da CLT c/c art. 15 do CPC).
PALAVRAS-CHAVE: Reforma Trabalhista; Incidente de desconsideração da personalidade jurídica; Teoria Maior; Teoria Menor; Aplicação subsidiária.
INTRODUÇÃO
O art. 855-A, inserido no Decreto-Lei n.º 5.452/43 (Consolidação das Leis do Trabalho - CLT) pela Lei nº 13.467/17 (Reforma Trabalhista), aborda o instituto da desconsideração da personalidade jurídica pela primeira vez na legislação laboral, limitando-se, porém, à regulação do seu aspecto procedimental.
O texto contemplado no dispositivo reproduz em grande parte a redação do art. 6º da Instrução Normativa nº 39/16 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), com o declarado objetivo de conferir-lhe força de lei[1].
A norma repete a conclusão do TST no sentido de que o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ) regulado pelo Código de Processo Civil de 2015 (CPC) é subsidiariamente aplicável ao processo do trabalho, com as adaptações trazidas em seus parágrafos.
A reprodução não é total, contudo. A reforma do art. 878 da CLT pela Lei nº 13.467/17 forçou a exclusão do trecho do art. 6º da IN 39/2016 que assegurava a iniciativa de instauração do incidente também ao juiz do trabalho na fase de execução.
Mais recentemente, a Resolução nº 221 de 21 de junho de 2018 editou a Instrução Normativa nº 41/2018 do Tribunal Superior do Trabalho, que dispõe sobre as normas da CLT, com as alterações da Lei nº 13.467/2017 e sua aplicação ao processo do trabalho, cuidando especificamente do IDPJ em seus arts. 13 e 17.
A instrução, que tem natureza meramente indicativa, ratifica a aplicabilidade do incidente ao processo do trabalho com as inovações trazidas pela Reforma Trabalhista em seu art. 17 e fixa o marco inicial regulatório para a exigência de iniciativa da parte em seu art. 13 (“a partir da vigência da Lei nº 13.467/2017”). Além disso, ressalta que a iniciativa de ofício ficará limitada aos casos em que as partes não estiverem representadas por advogado.
Vale o registro de que a Medida Provisória nº 808/2017, publicada em 14/11/2017 e com vigência encerrada em 23/04/2018, não alterou o art. 855-A da CLT, razão pela qual não repercute no presente estudo.
Posto o panorama legislativo, tem-se que a literalidade do art. 855-A da CLT não expressa todas as peculiaridades da versão laboral do instituto do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, exigindo algum esforço do intérprete/aplicador do direito processual do trabalho na sua adaptação, como se passa a demonstrar.
1. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: NOÇÕES CONCEITUAIS
A compreensão do incidente criado pelo CPC/15 e carreado para o processo do trabalho com base no art. 855-A da CLT exige uma rápida abordagem conceitual do instituto de direito material ora procedimentalizado.
De início, convém trazer o conceito de pessoa jurídica, entendida como “um ente formado pelo conjunto de pessoas naturais ou por um acervo patrimonial afetado para uma finalidade, ganhando personalidade jurídica e patrimônio próprios, autônomos, distintos de seus instituidores” (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 178). Sua nota distintiva é a separação patrimonial, “não se misturando a condição jurídica autonomamente conferida àquela entidade com a de quem lhe organizou” (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 430).
A evolução jurisprudencial em diferentes ordenamentos jurídicos, notadamente aqueles filiados à tradição da Common Law, levou à compreensão de que o princípio da autonomia patrimonial pode ser pontualmente afastado como forma de preservar o instituto da pessoa jurídica, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam (COELHO, 2016, p. 64).
Nesse contexto é que, com origem na Disregard Doctrine anglo-saxã, também denominada Disregard Theory, Disregard of Legal Entity, ou ainda Lifting the Corporate Veil, a desconsideração da personalidade jurídica surge como a possibilidade de suprimir episodicamente a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para atingir bens de seus instituidores, combatendo, deste modo, seu uso antissocial. Produz responsabilidade patrimonial secundária, atingindo bens de terceiro que não se obrigou pelo cumprimento das obrigações (790, VII do CPC).
O conceito acima apresentado veicula uma noção geral do instituto. Adverte-se, porém, que há acentuado dissenso entre os juristas quanto aos seus reais contornos, requisitos e efeitos. Trata-se de rico debate cujo aprofundamento escapa às pretensões do presente trabalho, que possui enfoque processual.
Por isso, serão aqui adotadas concepções referidas por parcela majoritária da doutrina brasileira, restringido a abordagem dos embates doutrinários a algumas situações pontuais, quando importantes para o deslinde de questões processuais.
É nesse contexto que se aduz que a desconsideração da personalidade jurídica não se confunde com o fenômeno da despersonalização ou despersonificação, em que ocorre a efetiva anulação ou dissolvimento da personalidade jurídica. Na desconsideração há a mera suspensão temporária dos efeitos da autonomia patrimonial prevista no art. 1.024 do Código Civil, em relação a obrigações específicas discutidas no bojo de um processo judicial ou administrativo[2].
Também não se confunde com as hipóteses legais de responsabilização direta e individual dos sócios e administradores que extrapolam suas atribuições estatutárias ou infringem a lei, cometendo ato ilícito, a exemplo daquelas previstas nos arts.117 e 158 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/1976) e nos artigos 134, VII e 135, III do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966).
Nestes casos, os sócios e gestores, com fundamento em expressa previsão legal, são responsabilizados diretamente por suas próprias ações ou omissões irregulares. Na Disregard Doctrine, tal responsabilização se dá de forma secundária e episódica, a partir de decisão judicial ou administrativa, e se ancora na abusividade do instituidor camuflada em atos lícitos do ente moral. Na síntese de Ulhoa (2016, p. 68), “se o ilícito, desde logo, pode ser identificado como ato de sócio ou administrador, não é o caso de desconsideração”. Há que se reconhecer, porém, que boa parte da doutrina brasileira, com espeque na própria legislação pátria, adota acepção ampliativa da desconsideração que abarca hipóteses de atos ilícitos praticados diretamente por sócios e gestores, realidade que precisa ser respeitada na análise da aplicabilidade do IDPJ, como se verá.
A situação mais comum de aplicação do instituto é aquela em que a responsabilidade patrimonial da pessoa jurídica é estendida para os sócios, que respondem de forma subsidiária e ilimitada diante da constatação de que se favoreceram abusivamente do patrimônio do ente moral.Trata-se da desconsideração “direta”, “em sentido estrito” ou “clássica”.
Em outros casos, porém, o sócio é que transfere seu patrimônio pessoal para uma pessoa jurídica no intento de blindá-lo. Verificado o abuso, poderá o juiz direcionar a execução para o patrimônio da pessoa moral utilizada como anteparo. Aqui a desconsideração é “inversa” ou “às avessas”, pois a execução iniciada contra o instituidor é redirecionada para a sociedade.
Conforme lição de Claus (2013, p. 92), esta segunda modalidade “opera para coibir a confusão patrimonial entre sócio e sociedade, responsabilizando a sociedade personificada por obrigações do sócio que oculta seu patrimônio pessoal no patrimônio da sociedade”. Deste modo, o suporte fático da desconsideração inversa é a confusão patrimonial, conforme previsão do art. 50 do Código Civil (CLAUS, 2013, p. 86).
A operação de levantar o véu da personalidade jurídica pode ser empreendida mais de uma vez no mesmo processo judicial (ou administrativo), de modo que é possível falar em desconsiderações múltiplas, que podem ser paralelas ou sucessivas[3].
Há desconsiderações paralelas quando diferentes empresas[4], subsidiariamente ou solidariamente responsáveis, têm sua autonomia relativizada em um mesmo processo, por meio de operações independentes entre si. As operações podem ocorrer por força de diferentes decisões, ou por meio de um único ato que excepcione a autonomia patrimonial de duas ou mais sociedades de forma concomitante.
Já a desconsideração sucessiva ocorre quando a operação se repete em diferentes momentos, de modo gradual, sendo que a primeira intervenção é condição lógica da segunda. Aqui, cada operação exige um ato distinto que é sucedido por outro, em uma cadeia de eventos interligados.
Quando as desconsiderações encadeadas forem da mesma espécie (“direta-direta” ou “inversa-inversa”), pode-se falar em desconsideração sucessiva homogênea. É o caso da pessoa jurídica que tem em seu quadro societário outro ente moral. É preciso encadear duas desconsiderações diretas para que se consiga atingir os sócios desta última (desconsideração sucessiva “direta-direta”).
Por outro lado, combinando desconsideração direta com desconsideração inversa, em qualquer ordem, surge a desconsideração sucessiva heterogênea. É exemplo a corriqueira hipótese em que, aplicada a desconsideração direta em face da empresa “X” (devedora), chega-se ao sócio (responsável), cujo patrimônio está oculto na empresa “Y”. Para que esta última sociedade (empresa “Y”) seja também responsabilizada pela dívida da empresa “X”, exige-se nova penetração, agora do tipo inversa (caso de desconsideração sucessiva “direta-inversa”).
As desconsiderações sucessivas podem ainda revelar diferentes graus à medida que novos elos são adicionados à cadeia de eventos. Assim, podem ser de primeiro grau, quando resultarem da articulação de duas operações (quantidade mínima necessária); de segundo grau, quando houver encadeamento de três operações, etc.
Advirta-se, porém, que à medida que aumenta o grau, mais difícil é a justificação da desconsideração sucessiva, vez que se dilui o vínculo que deve haver entre o responsável secundário e o devedor.
Neste passo, defende-se que a desconsideração sucessiva exige provas contundentes de que o terceiro responsável contribuiu de algum modo para o abuso da autonomia patrimonial ocorrida no momento inicial de surgimento ou inadimplemento da dívida. E mais: tal exigência probatória aumenta de forma proporcional ao grau da desconsideração.
Os conceitos acima expostos serão resgatados mais à frente para embasar a discussão quanto aos novos contornos da aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho.
2. TEORIAS “MAIOR” E “MENOR” DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
O estudo do procedimento previsto nos arts. 133 a 137 do CPC pressupõe ainda o conhecimento de duas formulações teóricas divisadas inicialmente por Coelho (2008, p. 36): a teoria maior e a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, por outros, denominadas respectivamente como teoria subjetiva e objetiva (SCHIAVI, 2018a, p. 151; MIESSA, 2018, p. 657)[5].
A teoria maior acentua a excepcionalidade da relativização da autonomia patrimonial do ente ao exigir, além do prejuízo sofrido pelo credor, consistente demonstração do abuso da personalidade. Para esta teoria, o patrimônio dos sócios somente pode ser atingido se restar comprovado o desvio de finalidade da empresa ou a confusão patrimonial.
Esta primeira proposição pode ter uma abordagem subjetiva, que condiciona a desconsideração à presença de um elemento anímico por parte do sócio (intenção de prejudicar terceiros ou fraudar a lei). Prepondera, porém, a abordagem objetiva, fundada na disfunção da empresa (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 490-491).
Já a teoria menor demanda apenas a verificação do prejuízo impingindo ao credor, cujo ressarcimento esbarra na autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Assim, a mera insolvência patrimonial da empresa é fato suficiente para justificar a superação pontual da eficácia da separação patrimonial.
Nesse caso, o uso antissocial da personalidade é consequência advinda diretamente do próprio inadimplemento de créditos privilegiados (consumerista, ambiental, trabalhista, etc.). Concorda-se com Claus (2013, p. 90), para quem o abuso da personificação societária configura-se in re ipsa “sempre que a autonomia patrimonial é invocada para sonegar obrigação decorrente de direito de natureza indisponível, como é o caso dos direitos fundamentais sociais (CF, art. 7º)”.
A teoria maior objetiva inspirou o art. 50 do Código Civil, que é atualmente a principal fonte de direito material do instituto. A teoria menor, por sua vez, está refletida no art. 4º da Lei nº 9.605/1988 (Lei dos Crimes Ambientais) e no §5º do art. 28 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
A correlação entre as formulações doutrinárias e a legislação não é perfeita, contudo, até porque as normas aludem muitas vezes a hipóteses que se encaixam mais propriamente na ideia de responsabilização direta do sócio ou administrador, a exemplo de “excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social” (art. 28, caput, do CDC), revelando falta de consistência técnica (ULHOA, 2016, p. 76).
De todo modo, pensa-se que a verdadeira distinção entre as teorias maior e menor não está nos dispositivos que as consagram, mas na possibilidade de se extrair o abuso da personalidade diretamente do inadimplemento de obrigação qualificada atrelada à insolvência do devedor, o que culmina em uma maior relativização da autonomia patrimonial que é acatada apenas na teoria menor.