Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução legislativa. 3. A Lei de Biossegurança. 4. Questão fundamental: o direito à vida. 5. Célula-tronco adulta. 6. Direito à Saúde. 7. Clonagem humana. 8. Falha legislativa relevante. 9. Fecho.
1. Introdução.
O tema proposto vem movimentando a opinião pública do mundo todo e contingente impressionante de operadores da ciência genética, do direito, das áreas da saúde e social, além de diversos outros segmentos.
Trata-se de se saber se aqueles que portam determinadas enfermidades ou deficiências físicas ou genéticas podem vir a encontrar a cura para seus males.
Ao Direito não cabe impor barreiras ou estabelecer divisas morais e religiosas instransponíveis, mas sim disciplinar fatos que, inevitavelmente, venham a surgir em decorrência da evolução humana.
Por isso que se diz que o Direito é dinâmico.
A biotecnologia vem ganhando progresso mundo afora e, por conseguinte, as normas que a disciplinam, a integrarem o chamado Biodireito.
O Brasil não poderia ficar distante desse processo.
2. Evolução legislativa.
Diplomas legais foram despontando aqui, com destaque para a Lei 8.974 de janeiro de 1995, modificada pela Medida Provisória 2.191-9 de agosto de 2001 e regulamentada pelo Decreto 1.752 de dezembro de 1995, a cuidar do organismo geneticamente modificado – OGM e do conceito de engenharia genética (art. 3º, incisos IV e V), além de abordar a manipulação genética de células germinais humanas, o que passou a proibir, o mesmo o fazendo em relação à produção, ao armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível (art. 8º, incisos II e IV), chegando a prever a severa pena de seis a vinte anos para o transgressor (art. 13, inciso III).
Colaciona-se também a Lei 9.434 de fevereiro de 1997, afeta à remoção e transplante de órgãos, a reger matéria bem próxima da ora em destaque.
Hoje, o assunto em debate vem disciplinado na Lei 11.105 de março de 2005, fruto de natural evolução da Lei 8.974, que já previa alguns dos mecanismos e conceitos em vigor.
É bom lembrar, ainda, que o Código Civil vigente, ao tratar da filiação, dispõe em seu art. 1.597, incisos III e IV, que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos advindos de fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, e aqueles havidos, a qualquer tempo, de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, já traçara as vigas mestras sobre a temática enfocada.
O art. 1º, inciso III, se reporta à dignidade da pessoa humana e o art. 5º "caput" protege o direito à vida, dentre outros. O inciso II, do parágrafo 1o, do art. 225 impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético, enquanto o inciso V trata do controle do emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Também o art. 227 "caput" faz alusão ao direito à vida da criança e do adolescente.
3. A Lei de Biossegurança.
A Lei 11.105, em seu art. 5º, depois de debates acalorados e verdadeiro confronto de ideologias, veio a permitir a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização "in vitro", para os fins de pesquisa e terapia.
Impõe, é certo, algumas condições, como o congelamento por no mínimo três anos, a aquiescência dos genitores e a aprovação do comitê de ética correspondente.
Muitos dos estudiosos e cientistas classificaram como tímido esse diploma, justamente pelas condicionantes que impôs, principalmente a de ordem temporária ligada à criopreservação.
Por outro lado, manifestaram-se os resistentes à inovação legislativa, a pretexto de defenderem a vida, vislumbrada nesses embriões.
O próprio Procurador-Geral da República ingressou no Supremo Tribunal Federal com ação direta de inconstitucionalidade do mencionado art. 5º (ADI 3510-0, rel. Min. Carlos Brito, sem liminar), tendo em vista, justamente, os preceitos constitucionais já aludidos, que dizem com o direito à vida, ação essa ainda não definida.
A verdade é que o passo dado pela Lei 11.105 é conseqüência natural do que vem se verificando no mundo, de sorte que se o País não evoluísse perderia terreno no campo tratado, sujeitando-se aos efeitos danosos dessa conduta, como, v.g., a dependência científica de outros países, com sérios reflexos econômicos e prejuízos aos brasileiros ansiosos pela terapia com células-tronco embrionária.
Nosso legislador, ademais, foi bastante prudente, cercando-se de cuidados necessários para impedir a ação de agentes menos escrupulosos, embora impossível a contenção de mal-intencionados definitiva e completamente.
Ao lado da aprovação administrativa já mencionada e da exigência de certificado próprio, fez prever organismos governamentais voltados à política de biossegurança e de controle, como o Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS, ligado à Presidência da República (arts. 8º e 9º), a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio (arts. 10 e sets.), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, a par de outros órgãos e entidades de registro e fiscalização (art. 16) e de comissões internas de biossegurança (CIBio) em cada instituição que venha a se valer de métodos e técnicas de engenharia genética (art. 17), bem como a possibilidade de convênios com os Estados, Distrito Federal e Municípios (parágrafo 2º do art. 23).
Fez excluir a pessoa física com atuação autônoma, ainda que vinculada a empresa, das atividades que envolvam OGM e seus derivados (parágrafo 2º, do art. 2º).
Estabeleceu também responsabilidade objetiva (independentemente de culpa) daqueles que, nesse mister, vierem a causar danos a terceiro ou ao meio ambiente (art. 20), bem como das entidades públicas ou privadas, inclusive as internacionais, que venham a financiar ou patrocinar as atividades e projetos envolvendo OGM sem o devido Certificado de Qualidade em Biossegurança (parágrafo 4º, do art. 2º).
Proíbe, outrossim, o comércio dos embriões a que se refere, classificando a transgressão como crime (parágrafo 3º, do art. 5º).
4. Questão fundamental: o direito à vida.
O que aflora, entanto, no âmbito jurídico, é a discussão que resulta do concerto entre o pré-citado art. 5º e o direito constitucional à vida.
Será que a lei estaria a afrontar esse sagrado direito?
Para desenvolver raciocínio jurídico a respeito, parto de artigo no jornal "O Estado de São Paulo", de 04 de março de 2005, da geneticista do Instituto de Biologia da USP Lygia da Veiga Pereira, da professora Patrícia Helena Lucas Pranke, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e presidente do Instituto de Pesquisa com Célula-tronco, e da pesquisadora Rosalia Mendes-Otero, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Está ali que o embrião humano fertilizado "in vitro", do zigoto ao chamado blastocisto, não apresenta resquício de sistema nervoso nos primeiros 14 dias, período dentro do qual se dá o congelamento.
Vai daí que, se utilizado o critério que define a morte quando a atividade cerebral cessa, chega-se à conclusão iniludível de que o blastocisto nesse estado não encerra vida propriamente, tanto que, quando criado por técnicas de reprodução assistida, a possibilidade de se transformar em um bebê é de menos de 1%, enquanto a reprodução natural oferece o percentual de 30%, tudo segundo o artigo.
Esse entendimento pode perfeitamente contar com beneplácito técnico-jurídico, mesmo porque não há na lei definição no particular.
Certo que o art. 2o do Código Civil faz referência à concepção, ao ressalvar o direito do nascituro, mas deixa hialino que está a tratar do embrião que venha a lograr nascimento com vida ou que possa vir a ser uma pessoa e, portanto, necessariamente implantado em útero ou ali presente naturalmente.
Ademais, sabe-se que, na reprodução assistida, inúmeros os embriões desprezados, tanto que se estima contar o Brasil com cerca de 30 mil deles em estado de armazenagem, conforme informam aquelas especialistas.
As sobras e os abusos na atividade acima aludida eram tais que o Conselho Federal de Medicina, carente o País de legislação na oportunidade, se viu compelido a editar a Resolução CFM 1.358/92, impondo limites éticos.
Segundo essa resolução, todo esse material, ali significativamente denominado de oócitos e pré-embriões (I, item 6; IV; V, itens 1 e 2; e VI), não era passível de descarte ou destruição (V, item 2), o que permitido agora como se infere principalmente do art. 1o e seu parágrafo 1º; e 6o, incisos V e VI, da atual Lei de Biossegurança.
A par disso, em artigo no jornal "Folha de São Paulo", de 22 de junho do corrente, a professora titular de genética humana e médica da USP e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências daquela universidade, Mayana Zats, enfatiza que tais embriões nunca serão inseridos em um útero, sucedendo que seu destino é o descarte.
Por essa razão que impossível venham a se transformar em ser humano.
Segue, então, a conclusão de que o art. 5º da Lei 11.105/05 não está a afrontar o princípio constitucional do direito à vida. A ofensa a esse preceito decorreria, justamente, do descarte e da não utilização em prol de pacientes que deles necessitam.
Nesse contexto, tudo quanto disposto na Lei Maior acerca da questão serve, na verdade, ao fomento da pesquisa e da terapia previstas naquele dispositivo infraconstitucional.
Por conseguinte, também não se vê desrespeito ao tratado internacional sobre direitos fundamentais de São José ou convenções outras genéricas ou específicas, já que deles não destoa nossa Constituição.
5. Célula-tronco adulta.
É certo que meios outros bem menos controvertidos existem à obtenção de célula-tronco, como a extração do próprio paciente, do cordão umbilical ou da placenta, as chamadas células-tronco adultas.
Todavia, tais unidades, consoante o artigo por primeiro citado, não seriam totipotentes ou pluripotentes, ou seja, podem produzir apenas alguns tipos de tecidos do corpo humano e não os 216, como parecem ser capazes as embrionárias, não obstante o problema da histocompatibilidade.
Não se discute que ainda há muita incerteza nessa área, não se ignorando a notícia de que, em prestigioso instituto dos Estados Unidos, o cientista Rudolf Jaenisch desenvolve trabalho que desvenda mecanismo a permitir que certas células-tronco adultas se comportem como embrionárias ("O Estado de São Paulo", 07 de maio de 2005, c. Vida, p. A-18).
De todo modo, as conclusões suso declinadas sobre os embriões têm grau razoável de confiabilidade, a ponto de merecerem credibilidade legislativa e financiamento governamental expressivo (mesmo periódico, edição de 20 de março de 2005 – http:/txt.estado.com.br/editoriais/2005/04/20/ger011.html).
6. Direito à Saúde.
Não bastasse tudo quanto ponderado, acrescenta-se ser da Carta Política que a saúde é dever do Estado, sentido amplo (arts. 196 a 198), sucedendo que a inviabilização da terapia e da pesquisa previstas na atual Lei de Biossegurança viola essa previsão, em nome de conceito puramente subjetivo e contestável do que vem a ser vida.
7. Clonagem Humana.
Já a clonagem humana, reprodutiva ou terapêutica, é prática que segue condenada na maioria dos países e até pela ONU, que, por intermédio do Comitê da Assembléia-Geral, aprovou por maioria, aos 18 de fevereiro de 2005, declaração não obrigatória que pede aos governos dos países membros que adotem medidas para proibir esse expediente genético (O Estado de São Paulo, 19 de fevereiro, c. Vida, p. A-22).
A Lei 11.105/05 vai nesse sentido, vedando a clonagem humana em seu art. 6º, inciso IV, a par de prever para o transgressor pena de dois a cinco anos de reclusão e multa (art. 26).
Não cabe a nós, operários do direito, a avaliação da justeza dessa disposição, mas apenas observá-la e/ou aplicá-la, ficando para os expertos em engenharia genética ou biotecnologia o encargo de demonstrar a incongruência da imposição.
8. Falha Legislativa Relevante.
Por fim, não se ignora ser intrincada a redação da Lei de Biossegurança ou mesmo conter ela contradição em ponto fundamental, como permitir a pesquisa e a terapia com células embrionárias, ao mesmo tempo em que proíbe engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano (art. 6º, inciso III), contradição essa que mais se destaca se sopesada a definição constante do art. 3o, inciso V, atinente ao OGM.
Numa visão leiga da ciência genética e ressalvado engano, parece-me que essa falha, própria da complexidade e da novidade que cerca o tema, está a merecer reparo, à luz de informações técnicas mais consistentes, ou, quando não, maior clareza redacional.
Falhas tais, entanto, não deslustram a nova lei, que, sem dúvida, traz grande avanço e esperança para os conterrâneos em estado aflitivo em decorrência de sérias deficiências do corpo e da mente.
BIBLIOGRAFIA:
PEREIRA, Lygia da Veiga; PRANKE, Patrícia Helena Lucas; MENDES-OTERO, Rosalia. Presente e Futuro das Células-tronco. O Estado de São Paulo. 04-03-2005, disponível em http://txt.estado.com.br/editoriais/2005/03/04/ger006.html.
ZATS, Mayana. Deve-se Incentivar a Clonagem Terapêutica? Sim; Salvando Vidas. Folha de São Paulo. 22-06-2005, p. A 3.
Célula Adulta Age como Embrionária. O Estado de São Paulo. 07.05.2005, p. A-18.