I. Introdução
Nas palavras de Maurício Portugal Ribeiro, “os indicadores de desempenho são o cerne de qualquer contrato de concessão comum e PPP, pois eles estabelecem as características do serviço que a iniciativa privada deverá prestar”, representando a mais importante ferramenta para que o serviço seja prestado com a qualidade estipulada[1].
Para operacionalizar este sistema de mensuração de desempenho, surge a figura convencionalmente denominada de verificador independente, cuja função é executar a apuração técnica da performance do concessionário, segundo os parâmetros dispostos no contrato de concessão[2]. A independência a que alude a denominação deste agente se baseia no fato da atividade de aferição não ser realizada por nenhuma das partes contratuais, e sim por um terceiro, recrutado especificamente para este fim.
Em que pese sua utilização ser, atualmente, disseminada em contratos de concessão, cremos que determinados aspectos relacionados a este personagem ainda permanecem tanto quanto nebulosos, pelo que o presente ensaio se propõe a aprofundar alguns temas caros à regulação deste instituto.
Por uma questão de simplificação, até mesmo de linguagem, o trabalho analisa o serviço de verificação independente nas concessões patrocinadas e administrativas (parcerias público-privadas stricto sensu), nas quais o pagamento de parcela da remuneração (contraprestação) ao parceiro privado está diretamente atrelado ao desempenho apurado[3].
A figura do verificador independente, contudo, está presente também em concessões comuns, sendo que, nestes casos, o desempenho aferido usualmente impacta a remuneração de forma, digamos, menos imediata (em grande parte destes contratos, a periodicidade de ajustes na tarifa é anual). De qualquer forma, com as devidas adaptações, muitas das observações aqui realizadas podem ser aplicáveis ao regramento do tema em contratos de concessão comum.
II. Da motivação para verificação independente em concessões
Numa apresentação pública em que oferece serviços de verificação independente, uma consultoria internacional explica que a nota de desempenho gerada pelo trabalho do verificador independente "pode resultar na economia de parte dos pagamentos devidos pelo gestor público”, salientando, em seguida, que “a economia gerada aos cofres públicos é, na maioria das vezes, superior ao valor pago mensalmente ao verificador independente” [4].
De um ponto de vista publicitário, tais afirmações podem ter algum valor, e é mesmo verossímil que o saldo entre os gastos com o verificador independente e o valor pago a menor em parcelas de contraprestação seja, usualmente, positivo. Todavia, sob a ótica do Poder Público, não pode ser essa (prometida) economia o fundamento para imputação a um terceiro do encargo de apuração dos índices de desempenho do serviço concedido.
Em primeiro lugar, cada “economia” do Poder Concedente relacionada à nota de desempenho implica na admissão de que a atividade não está sendo prestada da melhor forma possível; não é demais lembrar que a titularidade do serviço não se altera em decorrência da outorga de sua prestação, pelo que, aos olhos dos usuários (e eleitores), os gestores públicos continuam a ser, corretamente, identificados como responsáveis pela qualidade deficiente do serviço[5], não sendo razoável, portanto, pretender economizar recursos por meio de uma má prestação dos serviços.
Além disso, o não pagamento de parte da contraprestação será consequência do descumprimento do nível de exigência objetivamente previsto no contrato, e não de uma técnica extraordinária de aferição de desempenho de um determinado prestador de serviço. Conforme exploraremos em outra seção, um trabalho diligente de verificação deve obter um único resultado, independente da entidade que o execute.
Descartada esta justificativa, passa-se a análise de outros motivos habitualmente elencados para a contratação de um verificador independente. Em uma publicação de referência para as modelagens de parcerias público-privadas municipais, coordenada pelo professor Fernando Vernalha Guimarães, aponta-se não ser desejável que a própria Administração Pública realize a aferição do desempenho do concessionário, por ser “parte interessada no pagamento da contraprestação” devida a este, destacando-se a isenção e imparcialidade que a contratação de um terceiro trazem ao processo[6].
De fato, esta neutralidade costuma ser apontada como o principal fator para a terceirização destes serviços; contudo, embora tal opinião seja, em boa parte, meritória, não nos parece que esta independência deva ser considerada a razão precípua para legitimar a contratação em tela.
Com efeito, a circunstância do contratante de um serviço ser responsável, simultaneamente, por sua avaliação e remuneração, revela-se absolutamente corriqueira, não somente nos contratos administrativos, como em qualquer pacto privado. O que limita a “parcialidade” do contratante, ou, noutros termos, o seu compreensível desinteresse em pagar pelos serviços, é a exigibilidade legal dos termos contratados, sendo excepcional o recurso a um terceiro para apurar o cumprimento das condições contratuais.
Enxergamos, portanto, inclusive por parte de muitos gestores públicos, algum exagero na identificação de um “conflito de interesses” que desaconselharia, em qualquer hipótese, a aferição do desempenho de contratado por quadros do setor público, muito embora, no caso específico das concessões – ajustes de longo prazo que necessariamente se estendem por diferentes mandatos executivos – deva-se reconhecer que, em certa medida, a verificação independente pode efetivamente representar algum escudo à utilização política e atécnica do sistema de mensuração de desempenho[7].
No entanto, a razão que nos parece mais crucial para a delegação da atividade de apuração dos índices de desempenho a um terceiro reside na natureza eminentemente técnica deste serviço, que, não raro, assume um caráter, concomitantemente, cíclico e intensivo em mão-de-obra (especializada).
A conjunção destes fatores torna pouco interessante para o Estado incorrer nos custos e esforços necessários para o desenvolvimento interno das competências exigidas para um bom exercício desta atividade[8], principalmente tendo em vista que os entes federativos possuem, individualmente, poucos contratos vigentes de concessão, e que as qualificações demandadas para um trabalho técnico de mensuração de desempenho num determinado setor podem não se confundir com aquelas exigidas em setores diferentes.
Neste sentido, Luiza Helena Galdino Repolês registra que a contratação de aferição independente faz-se conveniente para, "além de garantia à idoneidade da aferição, dar apoio intelectual e técnico à operacionalização dos processos” necessários ao exame adequado da qualidade do serviço prestado[9].
Logo, mais do que da independência e imparcialidade do verificador independente, as partes hão de se beneficiar da expertise técnica deste agente, que reduz a probabilidade de falhas na quantificação da contraprestação por erros e incompreensões na atividade de aferição de desempenho.
III. Premissa de análise
A decisão primordial acerca do regramento da utilização do verificador independente diz respeito à eficácia a ser dada a seu parecer, ou seja, a definição se este será ou não vinculante para o pagamento da contraprestação. Todas as demais discussões referentes a esta figura – responsabilidade e forma de sua contratação, escopo de sua atuação, modo de integrá-lo ao contrato de concessão, etc. – dependem desta primeira e fundamental decisão.
É imperativo esclarecer, antes de tudo, o que se pretende dizer com vinculação do parecer do verificador independente. Por óbvio, não se revela uma alternativa factível (e sequer desejável) conceder às avaliações deste prestador de serviço um caráter de irrecorribilidade ou imutabilidade. Entretanto, existe uma distância significativa entre as diferentes maneiras pelas quais as objeções das partes às conclusões do verificador independente podem impactar o fluxo financeiro ordinário do contrato de concessão.
Uma primeira opção – e a esta associamos a ideia de vinculação - é prever contratualmente que a avaliação do verificador independente será eficaz e suficiente para a determinação do valor de pagamento da contraprestação, a ser efetivado pela instituição financeira encarregada de gerir o fluxo de pagamentos, ou, em caso de sua inexistência, pelo próprio Poder Concedente[10]. Não se anula, nesta hipótese, a possibilidade do ente público, ou mesmo do concessionário, se insurgirem contra o valor determinado; apenas não se atribui a esta irresignação, que deverá ser tratada no âmbito dos mecanismos de resolução de controvérsias previstos no contrato, o condão de obstar o pagamento[11].
Em oposição, uma segunda alternativa consiste em prever que as análises do verificador independente necessitarão da prévia aprovação, expressa ou tácita, do Poder Concedente, para gerar uma ordem de pagamento no contrato. Assim, eventual discordância do parceiro público seria resolvida diretamente por meio da não observância do resultado apresentado pelo aferidor externo, ao passo que qualquer objeção do concessionário teria sempre por objeto uma decisão do ente público e não a manifestação do terceiro contratado.
Em que pese ser legítima, parece-nos que esta última opção termina por colocar o verificador independente numa posição prática de mero consultor do Poder Público, razão pela qual o processo de sua contratação, e mesmo sua relação com o contratante, devem deixar de interessar ao concessionário[12].
Neste contexto, esclarece-se que todas as análises realizadas na sequência deste trabalho tomam por premissa a atribuição de caráter vinculante às decisões do verificador independente, podendo, então, não se revelarem apropriadas aos casos em que este agente externo assume, na forma descrita acima, um papel de simples assessor do Poder Público.
IV. Da legitimidade da atuação do verificador independente
A possibilidade em si de contratação do serviço de verificação independente não enfrenta atualmente maiores questionamentos jurídicos (é mencionada, inclusive, em leis de PPPs de entes subnacionais), razão pela qual não se julga necessário aprofundar qualquer investigação acerca da legalidade desta prática.
Situação diversa, todavia, se observa em relação à atribuição de eficácia executiva à manifestação do verificador independente, a que nos referimos na seção precedente, pelo que convém utilizar algumas linhas para afastar quaisquer dúvidas acerca da juridicidade desta alternativa.
A controvérsia vislumbrada reside na intepretação de que a emissão da ordem de pagamento ou, antes, a definição do valor da contraprestação efetiva a ser paga, constituiria atividade indelegável do Poder Público, perpassando o debate, no aspecto normativo, a interpretação de regras legais pertinentes ao recebimento do objeto em contratos administrativos e à liquidação de despesa pública.
Confessamos ter encontrado poucas referências doutrinárias específicas sobre o tema. Uma exceção digna de registro é a análise de Rodrigo Castro, para quem a Administração Pública, na qualidade de titular do serviço, poderia “discordar do desempenho aferido pelo verificador independente, desde que enuncie e motive sua discordância, demonstrando claramente os critérios que a levaram a tal conclusão”[13]. Como ressaltado anteriormente, porém, não se questiona propriamente a possibilidade de discordância, mas apenas seus efeitos, e não é possível extrair opinião definitiva a esse respeito no trabalho citado.
A despeito da pouca atenção recebida, deve-se noticiar que a questão já extrapolou o espaço teórico. No âmbito da apreciação de modelagem de parceria público-privada de iluminação pública do município de Içara, a área técnica do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina propôs que fosse determinado, ao prefeito municipal, a alteração da minuta do contrato de concessão disponibilizada a fim de:
Inserir regramento sobre o controle prévio do Poder Concedente quanto a autorização para pagamento da contraprestação mensal (liquidação da despesa), visto o subitem 18.6. indicar que o pagamento deverá ser realizado diretamente a concessionária pela instituição depositária (banco) após a emissão do relatório do verificador independente, em atenção aos arts. 62 e 63 da Lei (federal) nº 4.320/64[14]. (grifos nossos)
A nosso ver, tal visão, possivelmente compartilhada por outros órgãos de controle (a despeito da utilização cada vez mais frequente desta estrutura contratual), se assenta em premissas equivocadas. Antes de justificar esta assertiva, faz-se necessário, primeiramente, delimitar as fronteiras da questão, de forma a isolar as dúvidas que se refiram, propriamente, à competência do verificador independente e não a temas correlatos.
Assim, cabe pontuar que a discussão acerca da operacionalização da transferência dos recursos da contraprestação – onde pode estar prevista alguma restrição ao controle da Administração[15] – escapa ao presente debate, uma vez que eventual atuação de instituição financeira depositária no contrato de concessão – prática, aliás, bastante usual e pouco controversa nas PPPs – não possui relação imediata com a verificação independente (é possível, em tese, utilizar o serviço de instituição financeira para instrumentalização de pagamentos sem que se contrate o serviço de verificação independente e vice-versa).
Adicionalmente, impende reconhecer que o valor da contraprestação é determinado no próprio contrato de concessão e não no parecer do agente incumbido da mensuração de desempenho do concessionário. Não é correto afirmar, portanto, que o verificador independente possua discricionariedade na determinação do valor a ser pago; este agente se limita a estipular a aplicação ou não de algum fator de redução sobre a contraprestação prevista, a partir de parâmetros expressos no instrumento contratual.
Promovidos estes esclarecimentos, nota-se, com maior clareza, que a discussão circunscreve-se à legitimidade de se prescrever que eventual contestação da Administração Pública acerca do índice de desempenho aferido se submeta ao mesmo tratamento dado à irresignação do concessionário em relação a este objeto.
A nosso ver, esta possibilidade não colide com nenhuma previsão legal pertinente aos processos de contratação pública ou execução orçamentária; ao contrário, gera um maior equilíbrio entre as posições contratuais das partes nas parcerias público-privadas, o que se amolda perfeitamente ao espírito da regulamentação normativa destes contratos.
Saliente-se que a atuação do verificador independente não representa qualquer refreamento à competência legal de fiscalização do Poder Público: se o serviço concedido não for prestado, a Administração estará desobrigada da remuneração ao concessionário; do mesmo modo, a aplicação de quaisquer penalidades contratuais, no caso do serviço ser disponibilizado em qualidade inferior a um mínimo aceitável, independe de qualquer pronunciamento ou aprovação do verificador independente.
Constatada, porém, a regular prestação do serviço dentro de balizas de desempenho convencionadas, nada obsta que, entre diferentes soluções possíveis, opte-se pela utilização do parecer do verificador independente para determinação do nível de desconto a ser aplicado à contraprestação, sendo tal parecer, posteriormente, escrutinado pelas partes.
Em relação às normas de direito financeiro mencionadas expressamente na decisão administrativa examinada, temos que não há qualquer conflito entre o processo orçamentário de liquidação de despesa e a atribuição contratual de eficácia à decisão do verificador independente. Em verdade, esta última acaba sendo insumo para verificação prevista no artigo 63 da Lei nº 4.320/64: o relatório do verificador independente se apresenta, neste contexto, como o principal “comprovante da prestação efetiva do serviço” (inciso III, §2º), por disposição do próprio contrato.
Como reiteradamente ressaltado, o fato do ordenador de despesa estar, por força contratual, obrigado a respeitar, dentro de determinados limites, o protagonismo técnico do aferidor externo, não significa que o gestor público não possa esmiuçar a manifestação do verificador independente e questionar seus resultados nas instâncias previstas no contrato.
Enxergar nas regras de Direito Público obstáculos - na prática, inexistentes - à adoção de mecanismos mais eficientes de pagamento e garantia nas parcerias público-privadas, além de tecnicamente condenável, somente tem por resultado prejuízo ao próprio Poder Público, em decorrência do encarecimento da prestação dos serviços concessionados.