1. INTRODUÇÃO
No final de 2018 foi sancionada a Lei Federal Nº 13.786/2018, que trouxe alterações às leis 4591/64 e 6766/79, que tratam, respectivamente, de incorporação imobiliária e parcelamento do solo urbano, o que em linguagem não técnica é chamado de venda de imóveis “na planta” e venda de lotes nos quais há alguma infraestrutura mínima. Há, essencialmente, duas lógicas e perspectivas distintas para a interpretação dessa lei, afinal, o impacto que ela traz é diferente no Direito Civil e Direito do Consumidor. A análise a partir dessas duas áreas será feita neste texto pelas apreensões de Alexandre Junqueira Gomide, que nos traz uma discussão pautada nas relações cíveis, e Carlos Oliveira e Bruno Mattos Silva, imbuídos de um olhar consumerista.
2. UMA PERSPECTIVA CIVILISTA Inicialmente, Gomide nos traz princípios clássicos do Direito Civil, como a autonomia privada e a obrigatoriedade do pactuado (pacta sunt servanda) para argumentar que os contratos tem esse elemento de irretratabilidade, ou seja, idealmente eles são feitos para serem cumpridos. Contudo, o fato de haver reiterados casos de desistência unilateral dos adquirentes de imóveis, fez com que a jurisprudência, e mais recentemente a lei, passasse a permitir tal postura. Apesar disso, a lei recém-promulgada estabelece a hipótese específica para que o direito de arrependimento do comprador seja exercido. Senão vejamos: Art. 67-A, da Lei 4591/64 (incluído pela Lei 13786/18) § 10. Os contratos firmados em estandes de vendas e fora da sede do incorporador permitem ao adquirente o exercício do direito de arrependimento, durante o prazo improrrogável de 7 (sete) dias, com a devolução de todos os valores eventualmente antecipados, inclusive a comissão de corretagem. Assim, surge essa possibilidade, desde que os contratos tenham sido firmados em estande de vendas e fora da sede do incorporador. Embora o autor considere que o direito de arrependimento devesse ser facultado apenas aos consumidores, reconhece que a hipótese acima elencada abrange também empresas compradoras, a exemplo de fundos de investimento. Outra crítica trazida é o uso da nomenclatura “distrato” de modo tecnicamente errado pela nova lei. Stricto sensu, distrato é o termo técnico do Direito Civil que diz respeito a resilição bilateral, isto é, a um modo de extinção contratual imotivada e de comum acordo entre as partes contratantes. Portanto, não parece correto utilizar tal termo em trechos da norma para fazer alusão ao direito de arrependimento, por exemplo. Outras hipóteses de resolução do contrato, trazidos pela norma, são aquelas dos arts. 43-A e 67-A, da Lei 4591/64, que disciplinam os casos de culpa do incorporador e do adquirente, respectivamente. Vejamos abaixo: Art. 43-A Caput: A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador § 1º- Se a entrega do imóvel ultrapassar o prazo estabelecido no caput deste artigo, desde que o adquirente não tenha dado causa ao atraso, poderá ser promovida por este a resolução do contrato, sem prejuízo da devolução da integralidade de todos os valores pagos e da multa estabelecida, em até 60 (sessenta) dias corridos contados da resolução, corrigidos nos termos do § 8º do art. 67-A desta Lei. O dispositivo acima aduz que, em havendo atraso superior a 180 dias pelo incorporador, e desde que o adquirente não tenha dado causa ao atraso, pode este pedir a resolução do contrato. Por sua vez, o art. 67-A permite a resolução do contrato por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente. Quanto à devolução dos valores pagos, há prazos distintos a depender se há ou não patrimônio de afetação. O patrimônio de afetação consiste em uma exceção, no sentido de afastar a possibilidade de que outros credores alheios à relação de incorporação imobiliária possam executar créditos que porventura tenham com o incorporador, pois os imóveis “na planta” não entram no patrimônio geral do incorporador, por expressa previsão do art. 31-A da Lei de Incorporações Imobiliárias. O prazo para devolução dos valores pagos é de 180 dias do desfazimento do contrato, para imóveis sem regime de afetação, e de até 30 dias após a expedição do habite-se, para os submetidos à afetação. Quando ocorrer a hipótese do art. 67-A, isto é, resolução causada por inadimplemento do adquirente, o inciso II e o § 3º do mesmo artigo coloca patamares máximos de retenção dos valores pagos, para serem utilizados como multas, estipulando um teto de 25% quando não houver afetação patrimonial e 50% quando houver. Quanto a essas proporções, Gomide levanta a dúvida acerca da possibilidade ou não de redução equitativa, judicialmente, à luz do art. 413 do Código Civil. Esse artigo prevê que o juiz pode diminuir a penalidade em caso de cumprimento parcial ou quando esta for manifestamente excessiva. Apesar de apontar elementos que desautorizariam o Judiciário a fazê-lo, o autor aduz que, sendo o art. 413 uma norma de ordem pública, o juiz poderá aplica-lo em detrimento do novel dispositivo da Lei dos “Distratos”. Outra questão levantada diz respeito à retroatividade da Lei para contratos anteriores à sua promulgação. Sobre essa celeuma existe a possível inconstitucionalidade diante do preceito constitucional que assegura o direito adquirido, mas, por outro lado, a sua aplicação é possível a partir da ponderação e da busca da máxima concreção dos valores da justiça. Assim, Gomide argumenta que a Lei 13.786/2018 foi um importante marco legal para regular o que antes era apenas construção jurisprudencial sobre a incorporação imobiliária e que a lei nasceu da iniciativa do empresariado do ramo da construção civil. Ele critica a utilização de alguns termos tecnicamente incorretos, mas, a despeito disso, reafirma as boas expectativas e espera que a jurisprudência se posicione em relação às controvérsias que surgiram da aplicabilidade da nova norma.
3. AS CRÍTICAS CONSUMERISTAS Oliveira e Silva, doutorando pela USP e mestre pela Universidade de Frankfurt, respectivamente, trouxeram uma contribuição à discussão sobre o tema. Assim como Gomide, eles também tecem críticas ao uso de termos de maneira incorreta pelo texto legal. Tratando das diretrizes interpretativas para a aplicação da nova lei, eles citam a publicização do direito, isto é, a existência de normas cogentes, de ordem pública, que afasta a ideia de que o Direito Privado contém apenas relações entre iguais, pois tais normas visam proteger aqueles que estão em posição desigual na relação negocial. Portanto, defendem que a lei aqui analisada deve ser aplicada juntamente com o Código de Defesa do Consumidor, quando houver relação de consumo. É, assim, a defesa da técnica interpretativa conhecida como “Diálogo das Fontes”, fortemente discutida por autoras como Cláudia Lima Marques, e que in casu, tem o objetivo de ampliar a proteção do consumidor. Munidos desse referencial hermenêutico, se dispõem a analisar os dispositivos legais e a sua interpretação nas relações consumeristas. A posição que tomam acerca da retroatividade da aplicação do entendimento da lei é expressa pela contrariedade, pois argumentam que isto feriria princípios constitucionais como a segurança jurídica. No que se refere à obrigatoriedade do quadro-resumo nos contratos de incorporação imobiliária, com diversas informações, defendem que há uma preocupação legislativa com o direito à informação e o respeito aos direitos do consumidor no dispositivo que prescreve a necessidade de anuência prévia e específica do adquirente acerca das consequências do desfazimento do contrato, mas criticam a ausência de uma punição à possível violação desse dispositivo; a despeito disso, alegam que há nulidade dessa cláusula se não houver manifestação específica do adquirente para anuí-la. Quanto ao direito à resilição unilateral (e imotivada), embora a nova Lei traga situações específicas em que poderá haver desfazimento do contrato, os autores alegam que pode ocorrer enquanto ainda houver saldo devedor, uma vez que a vulnerabilidade do consumidor é o fato justificador, conforme a interpretação conjunta dos arts. 473 do CC e 51 do CDC. Outros pontos levantados foram à utilização da analogia para dar direitos similares àqueles dos contratos de incorporação imobiliária aos adquirentes de lotes, caso sejam consumidores. Sustentam ainda que, em virtude da presença de valores que deverão ser cobrados pela fruição do imóvel, a interpretação que melhor protege o consumidor é a de que o tempo de fruição do dinheiro pago ao incorporador também deva ser pago por este, e inclusive é possível a existência da compensação dessas obrigações, nos moldes do Código Civil. Raciocínio similar é utilizado para o caso de loteamento. Demonstram também que há a garantia de que o risco máximo do adquirente será a perda máxima dos valores pagos e o pagamento da taxa de fruição. Sobre o § 9º do art. 67-A, aplaudem a iniciativa de o legislador estabelecer que o incorporador não pode negar que haja um sucessor no contrato, com capacidade financeira para assumir o polo contratual, desde que este tenha idoneidade financeira. Se o adquirente for consumidor, a interpretação dos autores é a de que deve haver a inversão da multa compensatória e moratória, à luz do art. 51 do CDC, para equipar os sujeitos da relação jurídica. Ainda sobre o termo distrato, mostram que a lei traz, na verdade, a possibilidade do estabelecimento de um contrato de confissão ou de renegociação da dívida. Criticam também o prazo muito longo para a devolução dos valores em casos de contrato onde há patrimônio de afetação, que é de 180 dias, ao dizerem que demasiadamente longo prazo como este consiste em enriquecimento sem causa, pois não haverá remuneração pelo uso do dinheiro dentro desse prazo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em que pesem as posições radicalmente antagônicas dos textos aqui analisados, ambos destacam inovações e/ou reconhecimento de elementos jurisprudenciais positivos à regulamentação do desfazimento de contratos de incorporação imobiliária. Apesar das incertezas acerca da aplicação de alguns dispositivos específicos, há poucas divergências no que diz respeito ao impacto da lei nas relações cíveis e muitas em relação à melhor interpretação nas relações de consumo, o que poderá ser suprido pela jurisprudência nos próximos anos. De todo modo, considerando que a prática não era diretamente regulamentada antes da nova norma, essa lei trará maior segurança jurídica para os contratos de incorporação imobiliária, o que pode diminuir os custos das aquisições, uma vez que certamente o cálculo do risco de desfazimento dos contratos é um componente importante para a formação dos preços em uma economia de mercado. REFERÊNCIAS: https://www.conjur.com.br/dl/artigo-lei-distrato.pdf http://genjuridico.com.br/2019/01/21/lei-13-786-2018-lei-dos-distratos-primeiras-impressoesarespeito-da-extincao-da-relacao-contratual