1. Da Prova Ilícita. A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, em seu art. 5º, nº LVI, fulminou de morte, para os efeitos processuais, “as provas obtidas por meios ilícitos”. Produzidas com o sacrifício do direito ou ao arrepio da lei, tais provas carecem de prestígio ou eficácia na apuração da verdade, que é a alma e o escopo de todo processo; passam por simples borbulhas fantasmagóricas ou “flatus vocis”, a que falece completamente cunho jurídico. “Frutos da árvore envenenada”, segundo a velha expressão, inaproveitam à pesquisa da verdade e merecem não menos que formal repúdio([1]). E parece bem que assim seja, pois repugna aos foros da civilização e ao raciocínio lógico pratique alguém aquilo mesmo que intenta punir no delinquente: a infração da lei([2]). Para mais, não há querer provar a verdade com a mentira, entendida esta como qualquer contrafação do pensamento([3]). Assim, aquilo tudo que espelhe malícia ou resvale da seriedade e grandeza inerentes às coisas da Justiça não se afigura digno de constituir a matéria-prima da prova, base e fundamento do ato de julgar([4]).
2. Do Flagrante Preparado. Esta questão cobra importância e relevo perante os denominados flagrantes putativos ou preparados. Há países([5]), com efeito, que, em nome da política de repressão à criminalidade (sobretudo a relacionada com os tóxicos), têm recorrido a expedientes ou artifícios que, por implicar ideia de fraude ou vileza, reputa-os a crítica violadores dos soberanos princípios da lealdade e da espontaneidade, que devem presidir indefectivelmente à produção da prova.
A astúcia pode ser venha a lavrar aí um tento contra os mensageiros da desgraça e os fautores do nefando comércio das drogas, mas a torpeza, a dissimulação e a impostura entrarão também a compor o estilo das operações policiais, o que, do ponto de vista ético, representará sempre mau exemplo. Fora instituir no seio do organismo da segurança pública a praxe de permitir a seus agentes, sob falsas aparências, enganar e induzir outros à prática de atos de extrema reprovação social.
3. Da Impunibilidade do Crime Putativo. Consoante a doutrina jurídica mais bem recebida entre nós, guarda-se de qualquer punição aquele que, ardilosamente, foi levado ao crime. A razão é Nélson Hungria, o sumo escoliasta do Código Penal, quem no-la declara: “Somente na aparência é que ocorre um crime exteriormente perfeito. Na realidade, o seu autor é apenas o protagonista inconsciente de uma comédia”([6]).
O exímio professor Aníbal Bruno incluiu o crime de experiência ou induzido por agente provocador na classe do crime impossível, porquanto, “embora a inidoneidade não exista no meio ou no objeto, existe no conjunto de circunstâncias, adrede preparadas, que eliminam a possibilidade de constituir-se o crime”([7]). O mesmo sentia Galdino Siqueira, penólogo de tomo([8]).
Com arrimo na concepção realista, que o Direito vigente apadrinhou, o Supremo Tribunal Federal converteu na Súmula 145 o entendimento de que “não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível sua consumação”.
Essa igualmente é a orientação que vem professando o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como se colhe de lúcido acórdão relatado pelo insigne desembargador Marcelo Fortes Barbosa: “No flagrante preparado, que transforma o réu em garoto de recados, viola-se o art. 5º, inc. LVI, da Constituição Federal, produzindo-se provas ilícitas e um autêntico crime imaginário ou de ensaio”([9]).
Em suma: à luz da Doutrina e da Jurisprudência, o flagrante preparado, por infringir de rosto o art. 5º, nº LVI, de nossa Carta Magna (que defende e proscreve a produção de provas ilícitas), não caracteriza crime. Será caso, pois, de absolvição do réu, com fundamento no art. 386, nº III, do Código de Processo Penal.
Notas
([1]) Decidindo conforme esta craveira, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo “desconsiderou a prova ilícita resultante de busca e apreensão efetuada sem mandado judicial, com invasão de domicílio, absolvendo o réu por inexistência da prova do fato (Ap. Crim. nº 83.624/3)” (Ada Pellegrini Grinover, As Nulidades no Processo Penal, 2a. ed., p. 116).
([2]) Donde a lição do egrégio Roberto Lyra, que tem força de aforismo jurídico: “É melhor não punir um crime do que cometer outros crimes para descobri-lo e prová-lo” (apud Walter P. Acosta, O Processo Penal, 1957, p. 164).
([3]) “Mentir é ir contra a mente própria”, escreveu o clássico Manuel Bernardes (Nova Floresta, 1711, t. III, p. 276).
([4]) A importância da prova nas decisões judiciais já a reconheciam as velhas Ordenações do Reino: “A prova é o farol que deve guiar o juiz nas suas decisões, ainda que a consciência lhe dite outra coisa, ou saiba ser a verdade em contrário” (Liv. III, títs. 63 e 68; apud José Antônio Pereira Ribeiro, As Diversas Facetas de Monteiro Lobato, 1a. ed., p. 62).
([5]) A este número pertencem os Estados Unidos (cf. Menna Barreto, Estudo Geral da Nova Lei de Tóxicos, 1976, p. 84). “No Brasil, a Justiça não reconhece legitimidade a essa atuação, considerando-a espúria e incitadora do próprio crime que, sem ela, não teria ocorrido” (Idem, ibidem).
([6]) Comentários ao Código Penal, 1978, vol. I, t. II, p. 107).
([7]) Direito Penal, 1956, t. II, p. 507.
([8]) “No flagrante preparado verifica-se o chamado crime aparente, uma das formas do crime putativo, não passível de pena em virtude da impossibilidade jurídica de sua realização, dada a ciência da suposta vítima, pelo que não haveria sujeito passivo, dado ainda o preordenado acordo com a autoridade, o que tira do fato a nota de antijuridicidade, caindo somente na reprovação moral” (Rev. Forense, vol. 69, p. 177).
([9]) Ap. Crim. nº 162.791, de São Paulo; j. 20.6.93; v.u.; in Boletim da AASP nº 1883.