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A análise da (i)legalidade de constituição de associações de proteção de veículos no sistema jurídico brasileiro

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3 A (I)LICITUDE DAS ASSOCIAÇÕES DE PROTEÇÃO VEICULAR NO REGIME JURÍDICO PÁTRIO

A questão da ilicitude da atividade de proteção veicular no Brasil tem provocado uma verdadeira batalha, com todas as nuances que compõem uma disputa por um espaço no mercado-alvo deste segmento da economia, onde se inserem as seguradoras e, mais recentemente, as associações de proteção veicular.

O início das atividades das seguradoras no ramo de seguros de auto verifica-se na década de 1970, momento em que a demanda de consumo de veículos sofreu um pico de produção até então não observado no mercado brasileiro. Naquela década, verificava-se o que foi chamado de milagre econômico e a nossa economia crescia a índices nunca experimentados anteriormente, inobstante o custo social e político que provocava, em pleno regime ditatorial.

O crescimento do setor automotivo e o desenvolvimento social e econômico trouxeram consigo o aumento dos índices de criminalidade, típico de países em desenvolvimento ou de terceiro mundo, sobretudo porque não veio acompanhado de equilíbrio social, investimento em educação e distribuição de renda.

A composição de crescimento econômico não-sustentável, má distribuição de renda, explosão demográfica e êxodo rural, dentre outros problemas estruturais, possibilitou o desenvolvimento do setor de seguros de automóveis, haja vista o bem automóvel se tornar visado e desejado por todos, iniciando assim um até então um novo modal de crime específico: furto e roubo de veículos, tanto para a aquisição de veículos por valores muito abaixo do mercado, pois era fruto de roubo e furto, quer seja para o desmanche e a venda de peças no mercado de reposição de forma irregular através dos ferros-velhos ou sucatas.

Há de se registrar, que o seguro de automóveis também se desenvolveu por todos os outros motivos alavancadores de sinistros, como estradas de rolamento em péssimas condições de conservação, qualidade tecnológica dos veículos aqui produzidos, componentes de baixa qualidade, além das intempéries naturais que provocam catástrofes, que por sua vez alcançam o bem automóvel direta ou indiretamente.

Acredita-se que a indústria de automóvel terminou por abrir um espaço para o desenvolvimento do mercado de seguros e sua consequente regulação, através da legislação pertinente, obrigando o legislador a se voltar para uma realidade cada vez mais evidente, pois existia o mercado aberto e já consagrado em outros países do mundo, e o nosso carecia, àquela época, de regramento legal para existir e se desenvolve, de forma a fazer frente ao fenômeno ora posto.

Como pode ser observado, o contrato de seguro tem uma importante função social, à medida que, no âmbito da sociedade de risco a que nos expomos, supre o papel importante e indispensável aos interesses individuais e da coletividade, quanto à manutenção e perenidade dos bens adquiridos.

Mas, fazendo justiça à história, antes mesmo do relativamente início recente dos seguros de automóveis no Brasil, merece atenção o resgate e reconhecimento de importante iniciativa desenvolvida objetivando promover a proteção de interesses de proprietários de veículos. Foram criados clubes de serviços diversos, através de sociedades, uma espécie de associação, a exemplo do pioneiro Clube Touring, criado ainda na década de 20, no século passado, mais precisamente no ano de 1923.

Já nesta época, instalou-se no Brasil o que poderia ser identificado como precursor de alguns serviços hoje prestados por seguradoras do ramo de automóveis, assim como pelas associações de proteção veicular. Embora o Touring Clube do Brasil fosse um clube voltado para o turismo nacional e, preferencialmente pelas estradas brasileiras, os seus principais serviços eram destinados, essencialmente, ao público que possuía veículo automotor, seu principal meio de locomoção. Por isso, o Touring Clube desenvolveu uma série de serviços e benefícios para os seus associados. Senão, vejamos: reparos de emergência para veículos; remoção para oficinas; redes de oficinas credenciadas; hotel para espera; passagem de retorno; carro reserva; envio de acompanhantes; despachantes; recursos para multas; assistência jurídica, além de outros benefícios. A história ainda guarda outro clube associativo com serviços e benefícios semelhantes, como o Automóvel Clube do Brasil, muito atuante, sobretudo no sul e sudeste do país.

A breve regressão histórica tem o objetivo de, no diálogo com o contexto histórico, verificar que se lida, nesta temática, com um cenário de “um museu de grandes novidades”, quando abordamos o tema seguradoras versus associações de proteção veicular. Ou seja, a atuação direta ou indireta, existe a muito mais tempo que nos leva a crer o debate jurídico recortado pelo legalismo, hoje em pauta, desprezando a historicidade das relações sociais.

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Este debate jurídico faz um recorte direto sobre a legalidade, ou não, das associações sem levar em conta o contexto histórico e onde se fundamenta a ação das associações de proteção veicular, o que as mesmas pretendem alcançar e quais os caminhos percorrem e lastreiam sua dinâmica de desenvolvimento e organização estruturada.

As seguradoras atuam em um segmento da economia absolutamente regulamentado, tendo inclusive o capítulo 15 do Código Civil, cujo tema é “Do seguro”, voltado exclusivamente para regrar a atuação do seguro no país. Trata-se de uma legislação específica e pormenorizada, que traz todas as nuances até então observadas pelo legislador, a fim de determinar as obrigações das seguradoras, de que forma se comprova a existência de seguro, quem se beneficia, de que forma ocorre o pagamento de prêmios devidos, das possíveis nulidades, dos seguros de pessoas, dos seguros de danos, entre outras particularidades previstas naquele capítulo do Código Civil, do artigo 757 ao artigo 802. Estão descritas do ponto de vista legal, o que caracteriza a atividade das seguradoras, enquanto organizações que atuam na área de seguro.

Bastante relevante, também, o papel da SUSEP, que, através de circulares normativas fiscaliza e legisla suplementarmente o setor de seguros, autorizando notas técnicas de produtos novos, colocando limites e ordenação no setor. É importante ressaltar que a SUSEP foi ciada em 21 de novembro de 1966, cuja função principal é controlar e fiscalizar os mercados de seguros, previdência privada aberta, capitalização e resseguro. É uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda e sua criação se deu através do Decreto-Lei 73/66. Além disso, ainda disciplina a corretagem e a profissão de corretor.

As associações de proteção veicular possuem formato legal e amparam-se também no Código Civil para pleitear sua legalidade e direito de atuação no mercado. Não se identificam como seguradoras, nem pretendem ser. As associações se enquadram, sob o ponto de vista da legalidade, haja vista serem registradas em cartório de pessoas jurídicas, no artigo 46 do CC, que prevê:

Art. 46. O registro declarará:

I - a denominação, os fins, a sede, o tempo de duração e o fundo social, quando houver;

II - o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores, e dos diretores;

III - o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente;

IV - se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo;

V - se os membros respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais;

VI - as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino do seu patrimônio, nesse caso.

Daí fica evidente que as associações são amplamente amparadas e previstas pela legislação pátria.

Durante a III Jornada de Direito Civil, coordenada pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na Comissão de Trabalho Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil, presidida por Antônio Junqueira de Azevedo e José Osório de Azevedo Jr, o enunciado 185 definiu que

A disciplina dos seguros do Código Civil e as normas da previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão.

Os legisladores, já há algum tempo, investem tempo e estudo para demonstrar que as Associações de Proteção Veicular não são seguradoras, possuem regramento próprio e, portanto, não devem ser fiscalizadas pela SUSEP. Neste mesmo sentido, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, em 2012, deu parecer acerca da constitucionalidade do Projeto de Lei 356/2012, que propõe incluir no Código Civil, o artigo 777, com a seguinte redação

Art. 777-A. Excetua-se nas disposições relativas a esse capítulo, não se constituindo em seguro, a ajuda mútua, organizada por associação civil criada para fins não-econômicos, caracterizada pela autogestão.

§1º - A adesão ao sistema de ajuda mútua é voluntária.

§2º - Só há direitos e obrigações recíprocas entre os associados aderentes, restritos a cotas de participação em fundo próprio constituído com a finalidade prescrita no §1º, que terá cadastro de pessoa jurídica específico.

§3º - O disposto neste artigo será objeto de regulamento e se aplica aos proprietários de veículos de passageiros e caminhões autorizados para a exploração de transporte de carga e passageiros.

O que motivou a Comissão de Constituição e Justiça a debruçar-se sobre o Projeto de Lei do Senador Paulo Paim (PT-SP), foi, sobretudo, o relato de caminhoneiros, através da FENACAT – Federação Nacional das Associações de Caminhoneiros e Transportadores, quanto ao fato das constantes recusas, por parte das seguradoras, em aceitar os riscos dos caminhões, que se constituem, muitas vezes, no único bem da família e meio de locomoção desta.

Destaca-se a iniciativa do Senador Paulo Paim (PT-SP), apenas para registrar mais um capítulo desse embate, que é atual e contínuo, e que, certamente, exigirá sensibilidade e discernimento diante do forte e estruturado lobby das companhias de seguros, que hoje representam cerca de 6% do PIB – Produto Interno Bruto do país, e que não mede, nem medirá esforços para não prescindir do nicho de que considera mercado exclusivo.

Para além desse debate, as associações não se limitam somente à defesa dos interesses patrimoniais, avançando para o estabelecimento de firmes posições organizacionais, a exemplo da criação da AAAPV, com o objetivo de sanar eventuais desvios do rumo principal, seguindo a experiência já trilhada por outros setores autorregulamentados em nosso país.

Fruto da iniciativa da AAAPV, o jurista e ex-ministro do STF, Carlos Ayres Brito, produziu um parecer jurídico reconhecendo que não há no ordenamento jurídico brasileiro qualquer óbice ao pleno reconhecimento da licitude da criação e desenvolvimento de atividades pelas Associações de Proteção Veicular privadas.

No entendimento do jurista, não compete à Superintendência de Seguros Privados ou a outro órgão ou ente do sistema de seguros privados fiscalizar ou, por qualquer forma, interferir no funcionamento das associações de proteção veicular privadas.

Quando indagado sobre eventual amparo constitucional para a atuação das associações, respondeu Ayres Brito (2016) que o direito ou liberdade de se associar, já citado, é do tipo individual, mas de exercício necessariamente plural ou coletivo. A Constituição Federal reconhece essa liberdade como plena, o que explica o reconhecimento dela, liberdade de expressão, como um plexo de situações jurídicas ativas tão particulares, quanto predispostas a uma titularidade que independe para seu efetivo gozo de autorização estatal.

No caso das associações aqui tratadas, ajunte-se que se cuida de congregações humanas para a melhor disposição individual desse outro bem jurídico de nome “propriedade”, nos termos do inciso XXII, do art. 5º da CF/88. Propriedade, ou mais exatamente, propriedade privada, já agora conforme o enunciado que se lê no inciso II do art. 170 da CF/88. Saltando a evidência que a propriedade privada é autêntico bem da personalidade, no clássico sentido de que sem a garantia da inviolabilidade, a vida humana se reduziria a subvida e o ser humano a subindivíduo (Brito, 2016).

Pode-se perceber que o imbróglio jurídico envolvendo as associações de proteção veicular e as seguradoras ainda se encontra longe de pacificação e coexistência pacífica e de encontrar termo, no campo da razoabilidade.

A contemporaneidade é marcada por buscas de alternativas que respondam às novas demandas societais e econômicas, em resposta aos modelos tradicionais, muitas vezes, hegemonizados por interesses econômicos e políticos monopolizados. Em vários setores da economia surgem e se fortalecem novas iniciativas e experimentações, a exemplo das cooperativas de crédito, novas tecnologias de comunicação (Skype, Messenger, etc.), novas alternativas de transporte de passageiros (Uber, 99 pop, etc.), grupos de carona compartilhada e vários outros arranjos econômico-sociais que se apresentam como novas possibilidades de suprir necessidades do mesmo público-alvo, tradicionalmente percebido como uma reserva de mercado, cada vez menos justificável e incompatível com os anseios de pluralismo e liberdade de escolha.

O mercado deve ser um ambiente plural e dinâmico, onde a busca de alternativas que façam frente às objeções criadas deve ser reconhecida e fortalecida. Logo, a resposta construída pelas Associações de Proteção Veicular dos desassistidos, ou não aceitos por seguradoras, conta com respaldo moral, político e jurídico, merecendo total reconhecimento.

A disputa jurídica, que se estabeleceu entre as seguradoras e as Associações de Proteção Veicular, no que se refere à legalidade das atividades desenvolvidas pelas últimas, mostram-se atual, justificando a presente pesquisa, ora apresentada parcialmente através do presente artigo científico, como Trabalho de Conclusão de Curso.

Tal relevância se materializa no âmbito jurídico-institucional, através da recente manifestação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que trata da matéria, em 22 de maio de 2018, avalizando a aprovação do PL 3.139/2015, que prosseguirá na tramitação naquela casa legislativa, sendo amplamente debatido e submetido à apreciação do colegiado que constituí o plenário, para vir a se constituir em Lei.

A categoria dos corretores de seguro, de relevante papel na economia nacional, cerrou fileiras junto às seguradoras, como terceiros interessados no tema. Movidos pelas expectativas de ganhos econômicos com a possível desautorização das atividades desenvolvidas pelas Associações de Proteção Veicular e sua consequente interveniência como mediadores remunerados pelas comissões sobre os produtos comercializados pelas seguradoras.

A hipótese de desautorização das atividades das associações implicaria um aumento dos custos para a proteção veicular daqueles beneficiários em cerca de 50%, pela inclusão de impostos e da remuneração dos corretores.

Neste embate, verifica-se, portanto, mais que uma questão de preocupação com legalidade ou ilegalidade. Prevalecem as motivações econômicas, remuneratórias e comerciais, daqueles que resistem às inovações que desestruturam seus privilégios e eventuais monopólios.

Sobre os autores
Ricardo Simões Xavier dos Santos

Advogado. Fundador do escritório Ricardo Xavier Advogados Associados. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal; Mestre e Doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador - UCSal; Especialista em Direito do Estado pelo Jus Podivm/Unnyahna e em Direito Tributário pelo IBET. Professor da Universidade do Estado da Bahia - UNEB , da Universidade Católica do Salvador - UCSal e da Escola Superior da Advocacia - ESA - Seccional da OAB/BA; Coordenador Curso de Pós-graduação em Direito Empresarial da Universidade Católica do Salvador - UCSal. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Tributação e Finanças Públicas - NEF da Universidade Católica do Salvador - UCSal

Saulo Sérgio Santana Vida

Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

XAVIER, Ricardo Simões Santos; VIDA, Saulo Sérgio Santana. A análise da (i)legalidade de constituição de associações de proteção de veículos no sistema jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5721, 1 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72279. Acesso em: 24 nov. 2024.

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