Resumo:
Esta pesquisa tem por objetivo analisar a aplicabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada em relação aos crimes de lavagem de dinheiro no que concerne a responsabilidade penal – dolo – do agente, ou seja, o desconhecimento que este possui ou alega possuir acerca da procedência ilícita dos bens ou dinheiro “lavado”. Será abordado, primeiramente, a historicidade do surgimento e conceituação da Teoria da Cegueira Deliberada e sua aplicação no âmbito internacional. Far-se-á, ainda, a conceituação e tipificação do crime de lavagem de dinheiro para que, posteriormente, seja analisado a Teoria da Cegueira Deliberada no ordenamento jurídico brasileiro relacionando-se as espécies de dolo baseado na teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro. Serão apresentados julgamentos e decisões que abarcaram a referida teoria e suas divergências quanto a possibilidade de aplicação na seara jurídica brasileira. Será constatado que, a aplicabilidade dessa teoria, remete a uma possível condenação do agente que fique em estado de ignorância sobre a ilicitude dos bens ou vantagens que estavam sob sua posse. Isso ocorre com o intuito de que, acaso seja responsabilizado pelo crime de lavagem de capitais, ele poderá alegar a ausência de dolo que, consequentemente, poderá ensejar em sua absolvição. Portanto, as divergências doutrinárias e jurisprudenciais ocorrem justamente no aspecto da aplicação do dolo, sobretudo nos casos de crimes de lavagem de dinheiro, causando, assim, insegurança jurídica no cenário jurídico brasileiro.
Palavras-chaves: Cegueira Deliberada, Ilicitude, Lavagem de Dinheiro; Dolo Eventual.
1. INTRODUÇÃO
A Teoria da Cegueira Deliberada visa a punição do agente que se porta em estado de ignorância quanto ao seu ato de ilicitude. No que concerne aos crimes financeiros, mais precisamente aos crimes de lavagem de dinheiro, comumente conhecido, o agente “ativa” o modo de cegueira quanto ao seu ato praticado, tanto comissivo quanto omissivo, para não ser responsabilizado pelo crime.
Contudo, para empregar esta teoria, há a necessidade de comprovar a culpa dos supostos culpados em relação ao conhecimento da origem ilícita dos bens envolvidos no delito, o que dificilmente é comprovado, pois o agente fica em estado de ignorância e não reconhece a ilicitude de seu ato.
Outrossim, o ordenamento jurídico brasileiro não admite a modalidade culposa para a punição em crimes de lavagem de capitais, ou seja, o desconhecimento que o agente possui ou alega possuir acerca da procedência ilícita dos bens ou dinheiro não se caracteriza como dolo de lavagem.
No âmbito internacional, principalmente nos países que adotam o sistema common law, a conduta desse indivíduo é devidamente punida mesmo que este fique em estado de ignorância, com base na teoria da cegueira deliberada.
Dessa forma, muito se discute a respeito da punição que o agente deva receber quanto ao seu conhecimento ou envolvimento de algum modo em delitos, como por exemplo, nos crimes de lavagem de capitais. Devido a isso, é comum que um terceiro incumbido pela lavagem de dinheiro procure, deliberadamente, ficar em estado de ignorância, de cegueira, para evitar que possui o conhecimento quanto a origem ilícita dos bens ou valores por ele “lavado”.
Assim, a depender do caso concreto, a teoria da cegueira deliberada pode ser empregada, devendo-se observar para tanto o dolo aplicado ao agente que praticou o ato ilícito.
2. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA
A Teoria da Cegueira Deliberada é também conhecida através de outros termos jurídicos, como por exemplo: Teoria das Instruções da Avestruz; Conscious Avoidance Doctrine (doutrina do ato de ignorância consciente); Willful Blindness Doctrine (doutrina da cegueira intencional); dentre outros.
O surgimento desta Teoria ocorreu mediante o julgamento do caso Regina v. Sleep, de 1861, na Inglaterra. Nas palavras de Ana Luiza Klein sobre o assunto em comento:
Sleep era um ferrageiro, que embarcou em um navio contêineres com parafusos de cobre, alguns dos quais continham a marca de propriedade do Estado inglês. O acusado foi considerado culpado pelo júri por desvio de bens públicos – infração esta que requeria conhecimento por parte do sujeito ativo. Ante a arguição da defesa do réu, de que não sabia que os bens pertenciam ao Estado, Sleep foi absolvido pelo juiz, sob a justificação de que não restou provado que o réu tinha deveras conhecimento da origem dos bens, bem como não houve prova de que Sleep se abstivera de obter tal conhecimento. Tal julgamento levou a parecer que, caso restasse provado que o acusado tivesse se abstido de obter algum conhecimento da origem de tais bens, a pena cabível poderia equiparar-se àquela aplicada aos casos de conhecimento (KLEIN, 2012, p.2).
Após a decisão deste mencionado caso, diversos outros julgamentos obtiveram decisões e sentenças com entendimentos similares baseado na willful blindness (Cegueira Deliberada). De origem, portanto, do direito anglo-saxão, esta teoria ganhou forças, anos depois, em todo sistema common law e também foi aceita em alguns países de sistema civil law.
De forma sucinta, Mello e Hernandes (2017, p.2) explica:
A willful blindness tem sido utilizada pelos tribunais norte-americanos para admitir a imputação subjetiva no tipo penal de lavagem de capitais, notadamente nos casos em que o agente tinha consciência da elevada probabilidade de que os bens ou recursos envolvidos eram provenientes de infração antecedente e, ainda assim, agiu de modo indiferente a esse conhecimento.
Assim, segundo a Teoria da Instrução do Avestruz, o indivíduo se coloca em posição de ignorância acerca do assunto que está sendo fomentado.
Conforme preconiza João R. Zacarquim Siqueira,
(...) teoria do avestruz ou teoria da evitação da consciência, foi elaborada na tentativa de atingir o agente que, propositalmente, não quer enxergar a ilicitude da origem de bens, direitos ou valores, comportando-se como um avestruz, escondendo a cabeça na terra, quando o perigo ou algo de errado está próximo, visando eventual vantagem (SIQUEIRA, 2017, p.3).
Portanto, o agente age de forma voluntária, consciente e intencional visando criar obstáculos para que o Estado não chegue a conclusão de que possua conhecimento da ilicitude de sua conduta, ou seja, simplesmente finge o desconhecimento de seu ato.
Por conseguinte, para esta teoria, vão ser responsabilizados da mesma forma tanto aquele agente que sabe que está praticando um delito quanto aquele agente que desconfia que está praticando um delito, contudo, deliberadamente, este se mantém na posição de ignorância mesmo quando era possível obter o pleno conhecimento em relação aos fatos, a fim de que não seja responsabilizado por sua conduta.
Um exemplo simples e prático seria o caso de um vendedor/comerciante de joias, e passa a suspeitar que alguns de seus clientes esteja lhe entregando dinheiro sujo a fim de ocultar a verdadeira origem do numerário, assim, o vendedor se mantém em estado de cegueira e opta por não saber informações acerca do ilícito.
3. LAVAGEM DE CAPITAIS
No ordenamento jurídico brasileiro, o crime de lavagem de capitais, comumente conhecido como lavagem de dinheiro, encontra-se disciplinado pela Lei 9.613/98. Para conceituar este tipo penal a própria lei estabelece em seu artigo 1° a sua definição. Com efeito: “Art. 1º – Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime.”
Percebe-se que o legislador adotou como núcleo principal dois verbos, ocultar e dissimular, neste sentido Marco Antônio de Barros analisa e explica a conceituação de cada um desses fragmentos:
Lavagem é o ato de lavar ou limpar banhando.
Emprega-se a expressão “lavagem de dinheiro” no sentido figurado para destacar a limpeza ou o branqueamento do dinheiro, que sendo “sujo” transmuta-se em “limpo”. É a reciclagem de dinheiro ilegal.
Ocultar significa encobrir, esconder, sonegar, não revelar. Dissimular é ocultar com astúcia, fingir, disfarçar.
Ocultar ou dissimular a natureza, aqui compreendida a própria especificidade dos bens, direitos e valores.
Ocultar ou dissimular a origem, ou seja a procedência desses bens, direitos ou valores.
Ocultar ou dissimular a localização, isto é, onde possam esses bens, direitos ou valores ser [sic] encontrados.
Ocultar ou dissimular a disposição, neste caso o local em que estariam metodicamente colocados, ou a situação em que se encontram.
Ocultar ou dissimular a movimentação, que corresponde à deslocação ou mudança de posição de tais bens, direitos ou valores.
Ocultar ou dissimular a propriedade de bens, direito ou valores que integrem o patrimônio da pessoa e que sejam provenientes de crimes antecedentes, produtos de ilícitos específicos (BARROS, 1998, p. 6).
Partindo desta premissa importante destacar para relacionar posteriormente a teoria da cegueira deliberada com o crime de lavagem de dinheiro que, a doutrina divide o crime de lavagem de capitais em 03 (três) fases, contudo, suas nomenclaturas não são uniformes, podendo ser denominadas, conforme Calleragi (2004, p. 27) expõe, como: colocação, ocultação e integração; conversão, dissimulação e integração; ocultação, mascaramento e integração. Será utilizada a fim de conceituação o primeiro conjunto de denominação.
Colocação: Esta etapa compreende o local em que o dinheiro sujo será introduzido no sistema financeiro.
A característica principal desta fase é a intenção dos criminosos de desfazerem-se materialmente das somas arrecadadas em dinheiro, sem ocultar todavia a identidade dos titulares. Isso ocorre porque os criminosos têm ciência de que a acumulação de grandes somas de dinheiro pode chamar a atenção em relação a sua procedência ilícita. (CALLEGARI, 2004, p. 27).
Ocultação: Ocultar remete ao ato de encobrir, ou seja, não deixar vestígio acerca do dinheiro que foi lavado.
Integração: A terceira e última fase, compreende o retorno da pecúnia ao mercado, isto é, o dinheiro incorpora-se ao sistema financeiro e é devolvido formalmente aos criminosos, se tornando, em tese, “legítimo”.
Através dessa breve abordagem percebe-se que o delito de lavagem de capitais é o conjunto de ações em que o agente busca ocultar a procedência ilícita de sua conduta criminosa, aplicando e incorporando a ilicitude ao sistema financeiro e convertendo o dinheiro ou bem “lavado” ao mercado, de forma aparentemente lícita.
4. A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO ORDENAMENTO JURÍDICO E SUA APLICAÇÃO AO DELITO DE LAVAGEM DE DINHEIRO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO
O Ato de Ignorância Consciente é bastante discutido no cenário brasileiro no que diz respeito a sua aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio.
Importante fazer menção acerca do primeiro caso em que um tribunal brasileiro tratou da Teoria da Cegueira Deliberada explicitamente, a relatoria do julgamento foi pelo Desembargador Rogério Fialho Moreira, no Tribunal Regional Federal da 5° Região, com a Apelação Criminal ACR nº 5520/CE.
Este julgado trata-se do famoso caso do furto ao Banco Central do Brasil em Fortaleza/CE, no valor de R$ 164.755.150,00 (cento e sessenta e quatro milhões, setecentos e cinquenta e cinco mil, cento e cinquenta de reais). Naquela ocasião, os responsáveis pelos furtos se dirigiram a uma concessionária de veículos e fizeram uma compra de 11 (onze) carros à vista em dinheiro, no valor de R$ 730.000,00, deixando um saldo de R$ 230.000,00 para compras futuras, tudo em notas de R$ 50,00. Os responsáveis pelas vendas dos veículos foram denunciados na época por crime de lavagem de capitais, e o fundamento quanto ao dolo, referente ao elemento subjetivo do crime de lavagem, neste caso, foi o fato dos sócios/vendedores, deliberadamente, terem mantido uma posição de cegueira frente aos fatos por terem optado em não buscar saber exatamente a procedência deste dinheiro, mesmo quando poderiam ter observado a origem daquele valor em razão da estranheza daquela situação, por ser um valor completamente altíssimo para dar em espécie, porém, voluntariamente, mantiveram-se cego com relação a verdade dos fatos e, por essa razão, foram denunciados por crime de lavagem de capitais.
A decisão de 1° instância condenou os denunciados por prática de lavagem de dinheiro, vejamos:
O magistrado singular, ao proferir a sentença, considerou que o acusado José Charles, de fato, possuía conhecimento quanto à origem ilícita do numerário utilizado para a aquisição dos automóveis. No que se refere a José Vieira e Francisco Vieira, o julgador entendeu que, embora não tivessem conhecimento da origem ilícita dos valores, tinham elementos suficientes para desconfiar da origem do dinheiro, aplicando, desta forma, a Doutrina das Instruções do Avestruz ao caso.
Em recurso de apelação, Charles sustentava em sua defesa a não ocorrência do crime de Lavagem de Dinheiro em face de o crime de furto não integrar o rol de crimes antecessores descritos na antiga redação da lei 9.613/98 e a ausência de dolo ante o desconhecimento da origem do dinheiro que lhe fora entregue para intermediação na compra dos veículos. José Vieira e Francisco Vieira aduziram a ausência de dolo e de provas convincentes que pudessem ensejar um juízo condenatório, e que a venda dos carros ao correu José Charles foi de boa-fé, pugnando, em último caso, ao instituto do in dúbio pro reo. (KLEIN, 2012, p.10)
O Tribunal Regional Federal da 5° região, em sede de apelação, reformou a sentença de 1° instância, reconhecendo que não havia que se falar em dolo neste caso já que os sócios não haviam a plena consciência de que o capital utilizado para a compra dos veículos era de fato um capital ilícito, então, a teoria da cegueira deliberada neste julgado, importante precedente, ela foi absolutamente rechaçada. Transcreve-se um trecho do acórdão:
[...] TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA (WILLFUL BLINDNESS). INEXISTÊNCIA DA PROVA DE DOLO EVENTUAL POR PARTE DE EMPRESÁRIOS QUE EFETUAM A VENDA DE VEÍCULOS ANTES DA DESCOBERTA DO FURTO. ABSOLVIÇÃO EM RELAÇÃO AO CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO. [...] 2.4- Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da doutrina americana da cegueira deliberada (willful blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente, a responsabilidade penal objetiva; não há elementos concretos na sentença recorrida que demonstrem que esses acusados tinham ciência de que os valores por eles recebidos eram de origem ilícita, vinculada ou não a um dos delitos descritos na Lei n.º 9.613/98. O inciso II do § 2.º do art. 1.º dessa lei exige a ciência expressa e não, apenas, o dolo eventual. Ausência de indicação ou sequer referência a qualquer atividade enquadrável no inciso II do § 2º.- Não há elementos suficientes, em face do tipo de negociação usualmente realizada com veículos usados, a indicar que houvesse dolo eventual quanto à conduta do art. 1.º, § 1º, inciso II, da mesma lei; na verdade, talvez, pudesse ser atribuída aos empresários a falta de maior diligência na negociação (culpa grave), mas não, dolo, pois usualmente os negócios nessa área são realizados de modo informal e com base em confiança construída nos contatos entre as partes.- É relevante a circunstância de que o furto foi realizado na madrugada da sexta para o sábado; a venda dos veículos ocorreu na manhã do sábado. Ocorre que o crime somente foi descoberto por ocasião do início do expediente bancário, na segunda-feira subsequente. Não há, portanto, como fazer a ilação de que os empresários deveriam supor que a vultosa quantia em cédulas de R$ 50,00 poderia ser parte do produto do delito cometido contra a autarquia.- A empresa que explora a venda de veículos usados não está sujeita às determinações dos arts. 9 e 10 da Lei 9.613/98, pois não se trata de comercialização de “bens de luxo ou de alto valor”, tampouco exerce atividade que, em si própria, envolva grande volume de recursos em espécie.- Ausência de ato normativo que obrigue loja de veículos a comunicar ao COAF, à Receita, à autoridade policial ou a qualquer órgão público a existência de venda em espécie.- Mesmo que a empresa estivesse obrigada a adotar providências administrativas tendentes a evitar a lavagem de dinheiro, a omissão na adoção desses procedimentos implicaria unicamente a aplicação de sanções também administrativas, e não a imposição de pena criminal por participação na atividade ilícita de terceiros, exceto quando comprovado que os seus dirigentes estivessem, mediante atuação dolosa, envolvidos também no processo de lavagem (parágrafo 2º, incisos I e II). (TRF, 2008)
Portanto, o Tribunal aplicou o princípio in dubio pro reo, baseado no artigo 386, inciso VII do Código de Processo Penal, dando provimento ao recurso interposto pelos acusados (sócios da revendedora de automóveis), por entender que os requisitos necessários para a aplicação da Willful Blindness Doctrine não se fizeram presentes no caso concreto.
Posteriormente, outros julgados começaram a tratar acerca da teoria da cegueira deliberada.
Em um segundo caso, no ano de 2012, o Supremo Tribunal Federal, através da Ação Penal n° 470/MG, que envolveu diversos políticos brasileiros, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, o Ministro Celso de Mello acompanhou o voto do relator votando pela condenação de alguns dos acusados baseado na teoria da cegueira deliberada.
Assim, nota-se por meio de ambos os julgamentos que a aplicabilidade da teoria da cegueira deliberada dependerá do entendimento de cada magistrado através do caso concreto, observando-se em conjunto a espécie do dolo a ser aplicado ao agente do delito, o qual será melhor abrangido através dos subtópicos seguintes.
4.1 Dolo no Código Penal Brasileiro
Para a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada em casos de crime de lavagem de dinheiro, é necessária a observância da espécie do dolo a ser aplicado. O artigo 18, parágrafo único do Código Penal dispõe que: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando pratica dolosamente.”
A regra contida neste parágrafo prevê que todo crime é doloso, salvo quando praticado culposamente, ressalvado a possibilidade de a lei expressamente prever a sua punição. Em síntese, a culpa é a exceção e o dolo é a regra.
Para explicar a disposição do artigo 18 do Código Penal, a doutrina majoritária entende que o Brasil adotou as Teorias da Vontade e do Consentimento, chamada também de assentimento. De forma sucinta Carvalho (2017) explica que: “A teoria da vontade foi adotada na primeira parte do art. 18 para explicar o dolo direto (quando o agente ‘quis o resultado’), e a teoria do consentimento na segunda parte do art. 18, para explicar o dolo eventual (‘assumiu o risco’).”
Assim, para melhor entendimento, vejamos a conceituação doutrinária acerca do dolo direto e dolo eventual.
Rogério Greco preconiza sobre o dolo direto:
Diz-se direto o dolo quando o agente quer, efetivamente, cometer a conduta descrita no tipo, conforme preceitua a primeira parte do art. 18, I, do Código Penal. O agente, nesta espécie de dolo, pratica sua conduta dirigindo-a finalisticamente à produção do resultado por ele pretendido inicialmente. Assim, João, almejando causar a morte de Paulo, seu desafeto, saca seu revólver e o dispara contra este último, vindo a matá-lo. A conduta de João, como se percebe, foi direta e finalisticamente dirigida a causar a morte de Paulo. (GRECO, 2017, p. 320)
A respeito ao dolo eventual ele aduz: “Fala-se em dolo eventual quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto e aceito.” (GRECO, 2017, p. 322).
No que concerne a teoria da cegueira deliberada, a doutrina fomenta dúvidas quanto a aplicação do dolo eventual aos delitos de lavagem de dinheiro, Calleragi (2017, p. 37) aduz:
No entanto, há uma discussão doutrinária quanto ao cabimento apenas do dolo direito, no qual o autor deve ter conhecimento pleno e absolto da origem ilícita do produto, ou se seria possível também a aplicação do dolo eventual, caso em que a mera suspeita seria suficiente para fins de imputação, abrindo espaço, assim, para a Doutrina da Cegueira Deliberada.
Contudo, a jurisprudência pátria tem entendido, a depender do caso concreto, pela possibilidade de aplicação do dolo eventual aos delitos de lavagem de dinheiro, remetendo, assim, à aplicabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada.
4.2 As Divergências da Aplicação do Dolo Eventual à Teoria da Cegueira Deliberada na Ação Penal 470
No caso mensalão, Ação Penal 470, o ministro revisor Ricardo Lewandowski obteve o entendimento de que para a configuração da lavagem de dinheiro exige uma forma muito rígida de dolo que é a regra no direito brasileiro. O dolo direto, como já preceituado, é a intenção e vontade de produção de um resultado que é tratado pela lei como resultado criminoso (GRECO, 2017, p. 316). Age dolosamente, portanto, quem sabe e conhece exatamente as circunstâncias de suas ações e age com o intuito de produzir o resultado criminoso. O lavador de dinheiro, nessa acepção, é a pessoa que tem conhecimento da origem ilícita do dinheiro e atua com o deliberado propósito de maquiar essa ilicitude e reinseri-lo de aparência lícita na economia.
O ministro relator Joaquim Barbosa entendeu que a lavagem de dinheiro pode ser cometida também pela pessoa que não necessariamente atua com a intenção deliberada de lavar o dinheiro, mas que imagina que o dinheiro tenha origem ilícita e assume o risco de que através da sua ação esteja lavando o dinheiro, muito embora não queira deliberadamente lavá-lo. Este tipo de dolo é caracterizado como dolo eventual.
Imagine-se, por exemplo, uma pessoa que pratica uma corrida de carro no meio da cidade chamado “racha” ou “pega”. Essa pessoa pode não ter a mesma intenção direta de matar alguém do que a pessoa que saca uma arma e dispara um tiro a queima roupa numa região letal de sua vítima mas, ela sabe que sua conduta poderá trazer um risco enorme a vida das pessoas que estão ao seu redor e, ao escolher engajar-se numa corrida de carro, assume o risco de que alguém venha sofrer um dano caso provoque um acidente na sua ação. Este tipo de dolo é caracterizado como dolo eventual e é comumente debatido no sentido se é cabível ou não para a aplicação ao crime de lavagem de dinheiro.
No Direito anglo-saxão, as Cortes Americanas têm exigido para a aplicação desta teoria alguns critérios específicos para os crimes de lavagem de capitais. No mesmo ínterim, a ministra Rosa Weber discorreu acerca da teoria à folha 1.273 do acórdão. Em seu voto admitiu a sua utilização e afirmou que esses critérios são prudentes a serem adotados. Quais sejam:
(i) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa (STF, 2013).
No mesmo entendimento, o Ministro Celso de Mello acompanhou o voto do Ministro Joaquim Barbosa (relator) admitindo a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada (SIQUEIRA, 2017, p. 10). Vejamos:
Admito a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores, mediante o dolo eventual, exatamente com apoio no critério denominado por alguns como ‘teoria da cegueira deliberada’, que deve ser usado com muita cautela”, disse. O ministro explicou que, conforme essa teoria, o agente finge não perceber determinada situação de ilicitude para alcançar a vantagem pretendida (STF, 2012)
Em contrapartida, o ministro Marco Aurélio Mello se preocupou quanto a aplicação do dolo eventual aos casos dos crimes de lavagem de dinheiro, exemplificando que, se aceita essa aplicação, abriria margens para a caracterização do dolo eventual em outras searas. Vejamos:
Assusta-me, Presidente, brandir que, no caso da lavagem de dinheiro, a ordem jurídica contenta-se com o dolo eventual. Não quero assustar os criminalistas, mas vislumbro que teremos muitas ações penais contra os criminalistas, no que são contratados por acusados de delitos até gravíssimos. É claro que poderão supor que os honorários, os valores estampados nos honorários são provenientes de crimes praticados por traficantes, por contraventores e por outros criminosos, valendo notar que houve a reforma da Lei nº 9.613/98. Abandonou-se o rol exaustivo referente ao crime antecedente. Hoje, numerário proveniente de qualquer crime poderá ser tido como lavado ou como branqueado, vocábulo da preferência de alguns (STF, 2012, p.31).
Vê-se, portanto, que na Ação Penal 470 houve grandes debates acerca da Teoria da Cegueira Deliberada quanto a possibilidade de sua aplicação devido a equiparação ao dolo eventual, em que o agente, voluntariamente, cria barreiras e busca evitar o conhecimento de indícios sobre a ilicitude dos bens ou dinheiro do objeto que está sob sua posse ou atividade, causando, assim, a sua possível condenação.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o exposto, percebe-se que a doutrina e os tribunais brasileiros não são pacíficos e uniformes quanto a aplicabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada, pois envolve elemento cognitivo do dolo, ou seja, a consciência e o entendimento do agente ao praticar a conduta criminosa, gerando, por conseguinte, dificuldades na ciência jurídica, principalmente na seara do delito de lavagem de capitais, pois precisa demonstrar a sua culpabilidade.
Todavia, através dos julgados brasileiros existentes, demonstram que a Teoria da Cegueira Deliberada vem ganhando espaço na jurisprudência. Embora tenha sido reportada por poucos ministros na Ação Penal 470, seus critérios para aplicação não foram rechaçados, demonstrando, portanto, uma possibilidade de incorporação ao conceito de dolo em casos em que o agente se porte em estado de ignorância. (SIQUEIRA, 2017, p. 11).
Verifica-se, portanto, a urgente necessidade de uniformização sobre o tema no Brasil, sobretudo nos casos de crimes de lavagem de capital, no que diz respeito a equiparação ao dolo eventual, pois ficando à mercê do entendimento de cada magistrado continuará causando divergências sobre a sua aplicação e, consequentemente, uma grande insegurança jurídica para aqueles que se socorrem ao judiciário.
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