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Individualismo como incentivador da violência e o papel do Direito Penal nesse contexto

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Agenda 07/09/2005 às 00:00

3. O Direito Penal e o Individualismo

Este tópico procura desvendar a relação entre o individualismo-competitivo, a violência e o Direito Penal. Parte do pressuposto de que o foco da violência é dimanado pelo Homem social, ou seja, em que as dimensões do eu, outro e nós estão impregnadas de aspectos individuais e sociais predominando a dinâmica competitiva. Logo, o âmago do fluxo da violência localiza-se no modus vivendi e operandi do ser humano, constituindo o Direito Penal como mecanismo controlador da violência. Desde logo, e partindo do Direito como sistema referencial, é preciso deslocar, dividindo, o problema da violência; primeiramente, focalize a ação social do Homem e, também, identificar no Penal a dinâmica incentivadora da violência. O isolamento destes dois fatores causa uma redução de complexidade, mas que, no entanto, parcializa e possibilita uma visão, apenas, periférica do intricado emaranhado de valores e fatos sociais nos quais o Direito e especificamente o Direito Penal está envolto.

Ademais, invocando esta perspectiva, das inumeráveis possibilidades de análise da violência, a discussão deste último capítulo centrar-se-á na obscura relação entre a tridimensão social: o eu, o tu e o nós, no afloramento da violência em meio ao individualismo e no movimento repressivista lei e ordem. Procura-se um liame entre estas três peculiaridades da contemporaneidade.

3.1 O eu, o outro e o nós

Com o deslocamento do foco de atenção da pessoa, como pertencente ao um estamento imutável, para a concepção de indivíduo, ser dinâmico que pode, através de sua competência mudar de condição, status social, há uma ruptura de paradigmas. Por um lado, a pessoa nascida, principalmente no período medieval, em determinado estamento estava fadada a permanecer nele por toda a vida; no entanto, com as mudanças o indivíduo ganhou mobilidade social através das idéias iluministas de liberdade. Esse novo modo de ver o mundo e o homem provocou a possibilidade de ultrapassar barreiras de classes. Viu-se uma concentração de poderes no indivíduo e uma desconexão deste com a coletividade. A disputa por poder passa a ser através da competência e não mais pela força física, nisto o ensimesmamento se torna radical, atinge a raiz; dilui o nós em outro e em eu, ficando este último isolado em si mesmo, afastando-se de maneira progressiva do sentido coletivo. Como acima abordado, o início – para marcar um ponto referencial – dá-se ou ocorre com a divisão do trabalho. Cada um, neste momento, sobrevive, apenas, com sua força de trabalho e não mais com o auxílio dos demais. Hodiernamente, com a tecnologia e as relações humanas concentradas, basicamente, no econômico-consumista, ocasiona um distanciamento do eu do outro e o enfraquecimento do nós.

Na primeira parte do trabalho procurou-se ressaltar a importância do ambiente social para o Homem e o progressivo afastamento deste da sociedade, embora haja, de fato, a impossibilidade de abandono total, ou seja, de absoluta ruptura de relação do eu com o outro. No mais, faz-se relevante a importância do nós, eis que sem esta conjugação coletiva há um esvaziamento de todo e qualquer conceito de Direito e quiçá de vida. Tentar-se-á deixar assente esta visão conectiva da tridimencionalidade do social eu, outro e nós.

O Homem, como de logo pode-se notar, é, inegavelmente, o ser de maior complexidade deste mundo cognoscente. Sua constituição psíquica-física – racional – transporta-o para a esfera do indefinido, do mutável, da interação com o ambiente, etc; logo, só a morte, ao impedir uma nova mudança, torna o homem no definitivo e imutável si mesmo (...) liberta-o da mudança e o eterniza [90] Tal condição faz com que a especificidade humana consiga, diferente de outros animais, interferir no seu meio de maneira consciente, de tal forma que possa modificar a natureza existente e construir o mundo cultural ao seu redor. Por isso, quando se fala em ser humano pode-se, de maneira abrangente, dividi-lo ser-instinto e ser-razão. A questão, neste momento, não é tornar complexa, mas alertar para a constituição do indivíduo, que ao nascer é só instinto «Id», no decorrer do desenvolvimento aflora-se o «Ego» e o «Superego». [91] Estes fatores o distinguirão, individualizando-o dos demais seres animis. Observa-se que as relações intersubjetivas tornam-se a essência do Homem e a má constituição delas provoca uma hipertrofia tensionadora destas relações, incentivando o conflito. Elias (1994) tece as seguintes observações:

Já enfatizamos que essa noção de individualidade como expressão de um núcleo natural extra-social dentro do indivíduo, em torno do qual os traços "típicos" ou "sociais" se depositam como uma concha, está ligada, por sua vez, a uma vida íntima específica e historicamente determinada. Essa noção está ligada à tensão entre as funções egóicas e superegóicas, de um lado, e as funções instintivas, de outro – uma tensão que jamais, em nenhuma sociedade, está completamente ausente, mas se mostra especialmente intensa e difusa quando o processo civilizador atinge um estágio avançado. Essa tensão – as contradições entre os desejos do indivíduo parcialmente controlados pelo inconsciente e as exigências sociais representadas por seu superego – é o que alimenta constantemente a idéia de um núcleo individual natural, na concha condicionada pela sociedade ou pelo ambiente. Essas contradições fazem parecer evidente ao indivíduo que ele é algo distinto "internamente", enquanto a "sociedade" e as outras pessoas são "externas" e "alheias". Essa forma específica de superego, esse cerceamento especialmente vigoroso e semi-automático de todos os impulsos e afetos direcionados para outrem, foi o que permitiu ao indivíduo – de maneira cada vez mais perceptível à partir do Renascimento – perceber-se como "sujeito" e perceber o mundo como uma coisa separada dele por um abismo, como o "objeto". Isso facultou-lhe ver-se como um observador externo ao restante da natureza, enquanto a natureza o confrontava com uma "paisagem"; facultou-lhe a sentir-se um indivíduo independente de todas as outras pessoas e ver as outras pessoas como um campo "estranho" que originalmente nada tivera a ver com seu ser "interior", como um "ambiente", um "meio", Uma "sociedade". Somente quando o indivíduo pára de tomar a si mesmo como ponto de partida de seu pensamento, pára de fitar o mundo como alguém que olha de "dentro" de sua casa para a rua "lá fora", para as casas "do outro lado", e quando é capaz – por uma nova revolução copernicana em seus pensamentos e sentimentos – de ver a si e a sua concha como parte da rua, de vê-los em relação a toda a rede humana móvel, só então se desfaz, pouco a pouco, seu sentimento de ser uma coisa isolada e contida "do lado de dentro", enquanto os outros são algo separado dele por um abismo, são uma "paisagem", um "ambiente", uma "sociedade". [92]

O aspecto valorativo relevante a ser considerado é o ser-humano, a condição de mortalidade, a vida; põe-se como fim último (Kant, s.d.) como valor máximo a ser curado e exaltado. Há na contemporaneidade uma inversão deste postulado moral kantiano, logo, o que se encontra como o fim não mais são que coisas [93] (acima exposto). Em decorrência disto há uma inversão de valoração do respeitante ao valor do ser humano. Para a percepção do que se está a falar basta evocar Recaséns Siches (1973):

A vida é sempre pessoal, circunstancial, intransferível e responsável. Se mais adiante nos encontramos com vida, nossa ou de outros, que não possua esses atributos, deve dizer-se, (sem atenuação nem dúvida), que não é vida humana no sentido próprio e originário, isto é, vida como realidade radical; será vida, e se se quiser, vida humana, em outro sentido, será outra classe de realidade diferente daquela e, ademais, secundária, derivada, mais ou menos problemática. Tropeçaremos com formas de vida nossa que, por ser nossa, teríamos de chamar de vida humana mas que, por lhe faltarem aqueles atributos, teríamos de chamar, também e ao mesmo tempo não humana ou inumana. Só é propriamente humano em mim o que penso, quero, sinto e executo com meu corpo, sendo eu o sujeito criador disso, ou então: aquilo que a mim mesmo, como tal mim mesmo, me acontece. [94]

O ser humano, está intimamente ligado, na natividade, ao outro (ORTEGA Y GASSET, 1973). Sua existência, necessariamente, se deve à presença ativa do outro, sem a qual inviabiliza-se a existência do eu. Logo, isso implica irredutivelmente uma realidade posta, uma realidade já existente quando da aparição no mundo do indivíduo – eu. Sendo assim, a primeira percepção do eu encontra-se focalizada no outro e no a priori da realidade transcendente do eu. A realidade mundanal e o outro, constituem-se, destarte, numa base concreta do mundo, nos primeiros contatos, constituidores do ser-eu; o alter, portanto, existe, constitui-se, é perceptível prima facie do unus. O ser humano – como eu – apercebe o corpo, a ação, a constituição em ser materialmente objetivado do outro. Assim, infere-se que início da existência do eu só ocorre quando há a percepção do outro, ficando a constituição perceptiva do eu, como eu, para o processo de endoculturação. Daí emergirá do unus e suas peculiaridades. Enquanto esse processo não ocorre é de destacar a imprescindibilidade da existência do outro para o eu. Este é, nestes primeiros momentos de existência, extensão do outro, embora autônomo nos seus desejos instintivos-culturalizantes.

Nesta condição de ser-eu no mundo, como ser humano, diferenciado em relação aos outros animais, percebe-se, de maneira latente, a peculiaridade humana de introspecção, de volver-se a si mesmo e libertar-se das coisas mundanas materiais. A ocorrência desta capacidade, ensimesmamento, demonstra o reconhecimento do eu como eu e a diferenciação do outro, como ser distinto do eu. Nessas condições vislumbra-se a condição de distinguir duas realidades: a do eu, na dimensão de intus, e do outro, alter ego na condição de estranho. Essas realidades distintas guiaram e guiarão a relação inter-subjetiva. O reconhecimento ou o desconhecimento do eu com o outro e do outro com o eu, provoca a tensão, tema do trabalho, inviabilizando a constituição do nós.

Ao vir ao mundo, o eu [95] não se percebe, não consegue distinguir-se como indivíduo capaz de se ensimesmar. Encontra-se aberto a toda influência do outro, até o momento da percepção da possibilidade-condicionadora de isolar-se em si mesmo. A partir dessa faculdade (poder) descobre um mundo próprio, uma realidade que só o próprio eu [96] tangenciona e, ainda, consegue projetar no outro esta mesma capacidade. Não só, o fato de ver no outro características semelhantes – identificantes – o possibilita a considerar o alter como ser humano, como o eu, no entanto, consegue manter a cisão entre estas duas realidade, distintas, pois constituem-se em vivências dissonantes. Dessa forma, pode-se inferir que vida humana, em sua radicalidade, é a do eu. Deve-se isto à impossibilidade de captar o sentir-íntimo do outro, ou seja, à falta de condições de sentir com a mesma intensidade, com as mesmas características as dores e prazeres do outro e o outro do eu. Pode-se presumir, imaginar, questionar a dor, alegria, etc. do outro, mas a do eu é inquestionável e, além do mais, é só o eu (ou o outro em si) que apresenta a real avaliação do que se passa intimamente, [97] no ensimesmamento. Haverá, através das expressões, da comunicação uma suposição, uma hipótese do que ocorre intimamente no outro, no entanto, só estar-se-á perante a aparência; mera presunção.

Há a aparição do outro. Inicia-se o contato e a avaliação do outro. O outro ser distinto do eu distinguem-se-á como "ser humano", ou seja, com semelhanças que o caracterizam como tal, desde o momento aparente da identificação. O outro ser indeterminado ou determinado (individualmente conhecido). [98] Isso revela a relação de não intimidade e de intimidade com o outro. Além do mais, o surgimento do outro implica diversas considerações; considerações influenciadoras e influenciadas de por dinâmicas sócio-individuais.

O horizonte a ser vislumbrado com o surgimento de um ser que o eu identifica como sendo semelhante a si ocasiona tensões, pois este outro interfere diretamente no eu em sua existencialidade, tem opiniões sobre o eu, age de forma cooperativa ou competitiva com o eu, existe no mundo e interfere nele como o/e com o eu e tudo o mais que se pode elucubrar sobre a interação entre as dimensões – eu e outro. Neste peculiar conjuntivo encontra-se o nós. Seja para o bem ou para o mal, a junção constituidora do nós localiza-se na troca de experiências da intersubjetividade. Deste fato retira-se a sociabilidade formativa da coletividade. O relacionamento entre o eu e o outro, é caracterizado pela afeição de afirmação ou negação, seja no sentido de reconhecimento ou do estranhamento. Nestes dois sentidos, há uma atitude do unus em relação ao alter; verifica-se, de qualquer forma, uma realidade constitutiva do unus et alter. Encontra-se, neste momento, a marca da coexistência no mundo e da formação cultural.

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Sobrepuja, nesta relação subjetiva, a constituição da coletividade do nós - o eu e o outro somos o nós, no qual nasce a relação social, devido à resposta de uma realidade que o eu enfrenta, a resposta do nós. Destaca-se: isto envolve ações boas ou más; a troca de experiências interacionistas revela tão-só a interação, o envolvimento destas duas realidades. Logicamente que esta condição levará ao ponto fulcral da violência ou da não-violência. Esta interação [99] revelará o que o outro significa para o eu. A compresença desentranha a expectativa do conhecimento do outro, de uma hipotética intimidade do outro, pois a única intimidade real para o eu é a de si próprio. Porém, nesta mesma senda, o outro gera uma expectativa no eu, pelo fato de se mostrar intimamente compresente e, por isso, deixa ansioso o eu, pois não sabe este como o outro agirá. É uma incógnita. Diante, então, do desconhecido, o eu interiorizado esperando a atitude do outro; da mesma maneira o outro age, causando um afastamento de duas realidades, distintas, mas conexas socialmente. Nada mais instintivo, instintivo do homem do que a auto-proteção e o ensimesmamento, pois favorece a criação de um escudo" protetor que é a intimidade; [100] como foi visto, uma realidade que só é realidade para o eu.

Neste momento, localiza-se a conjuntura do individualismo e a negação do nós, ou a falsa constituição do nós. Um não é decorrente do outro, mas a conjuntura sócio-cultural reforça e pontencializa o distanciamento natural pondo obstáculos na tentativa de reaproximação intersubjetiva e conjunção do nós cooperativo. Quando ocorre uma manifestação de junção de eu e outros na perseguição de objetivos comuns desvela-se a junção de propostas individualizadas que se encontram jungidas por um fim comum; entretanto, em nada estão para cooperar entre si além da concretização do pleiteado. Nada além do que uma simples coletivização de eu e outros competindo com outros de interesses antagônicos. A junção de forças, neste caso, significa, tão-somente, o uso da coletividade para o desígnio do próprio eu. Emerge, assim a instrumentalização do humano, usado como suporte para o confronto e conquistas de crétidos – de qualquer natureza [101]. Daí retiram-se, muitos exemplos de fracassos de lutas para o reconhecimento de prerrogativas oficialmente marginalizadas. Destaca Neves (s.d.) da seguinte forma:

Com efeito, não habitamos ou usufruímos o mundo sem a mediação dos outros. Já porque os outros se nos impõem numa interferência, ao manifestarem-se como "obstáculo" na concorrência sobre o mesmo bem-objecto referido no mundo; já porque os outros podem revelar-se como coadjuvantes, nas múltiplas formas de conjugação de esforços, no trabalho, na produção, na inter-acção. No primeiro caso, podemos falar de uma mediação negativa – só se atingem os bens possibilitados pelo mundo numa relação exclusiva com os outros –; No segundo caso, estaremos perante uma mediação positiva – só se atingem os bens possibilitados pelo mundo numa relação inclusiva com os outros.. [102]

O significante da relação inter-individual encontra-se na ameaça representada pelo outro para o eu; na dinâmica de competição o descuido, a abertura para o outro – como ocorre na natividade – pode significar o fracasso ou prejuízo social. A racionalidade econômica de perda e ganho é constante na previsão comportamental no mundanal. E nisto o Direito, instrumento – hodiernamente – de ordenação comportamental, nada mais se tornou que uma extensão do processo de codificação, num meio de operar a funcionalidade ao objetivo a ser concretizado, não valores significativamente importantes para a dignidade do humano, valores condizentes ao prazer materialmente expressivo do/de (alguns) humano(s), politicamente impostos por condições eticamente inversas à dignidade do ser humano; a ideologia, se não absolutiza todo o processo de conhecimento, causa graves distorções num ambiente não-pluralista [103] (no passado, a sacralização do mundano; no contemporâneo, racionalidade econômica do Homem). Indelevelmente a condição vigente influência na interação entre o eu e o outro.

O estranhamento do outro não significa uma ruptura total, mas a construção de uma ligação negativa com o outro. A negação da existência fática do outro continua a existir, entretanto, é baseada numa visão negativa, depreciativa e conflitiva; Ser em si mesmo, é natural, não é basicamente o problema se resultassem numa interação positiva, de tolerância do diferente que não é o eu e está além dele como uma realidade desconhecida. Foi abordada a insegurança que causa o desconhecido, da mesma forma, causa insegurança o desconhecimento do outro.

Emerge, dessa vênia, a relação intersubjetiva do ser dotado de razão. Se a sociedade influencia diretamente ou indiretamente, não cabe aqui a discussão, no entanto, não se pode responsabilizá-la pelos traumas da contemporaneidade, seria responsabilizar o indeterminável e indelimitável. Atribuir a responsabilidade aquém não pode se responsabilizar, pois não subsiste por si própria, nem tem a capacidade de perceber o certo ou errado, a não ser aqueles que a compõem, o Homem, é não responsabilizar ninguém. Coloca-se a problemática da assunção da responsabilidade e liberdade, da autonomia humana em suas determinações. Herança do jusnaturalismo racionalista e vigorada no jusracionalismo, em termos jurídicos. O status libertatis, embora suas restrições, proporciona a legitimação de condutas, ações no espaço social; frisa-se que tal possibilidade denota uma responsabilização do eu, do outro e do nós. Não é possível adentrar a esfera da liberdade, devido à complexidade deste assunto no âmbito deste trabalho. Fica, no entanto, registrado que é na liberdade-racionalista que o Homem cria o mundo, traz a lume o seu mundo de acordo com seus desígnios [104] e, sem dúvida alguma, deve, por isto, ser responsabilizado, pelos resultados sociais, levando em consideração a sua tripartição no eu, no outro e no nós.

3.2 A violência e sua origem no individualismo

As solidariedades da sociedade de constituição simples já se extinguiram ou estão em vias de se extinguirem. Isto em decorrência da ampliação do circulo social das tribos ainda existentes; e ainda, pela introdução e absorção nestes grupos de elementos endógenas à sua cultura. Logo, com o desenvolvimento social, o agrupamento de diversas etnias em regiões próximas e a formação da cidade, perde-se a referência familiar que havia de um grupo inteiro. A família restringe-se, dessa forma, ao um pequeno conjunto ligado, seja por causas oriundas do sangue, seja por afetividade ou até mesmo por questões econômicas. É cabal destacar que há concepções hodiernas que classificam a família como aquela constituída apenas pelo casal heterossexual, também, se discute a questão dos direitos dos homossexuais. [105]

Essa agregação de etnias diversas deu-se de maneira civilizadora voltada a aspectos econômicos. Após o homem descobrir uma função para o excedente da produção; primeiramente a troca, logo a comercialização, as relações entre as pessoas começam a basear-se pelo vínculo econômico. [106] Essa ligação é frágil e tênue, eis que deixa um espaço vazio de afeto entre os indivíduos. Neste momento, inverte-se o postulado kantiano, que se constituem as coisas serem consideradas como o fim e as pessoas como o meio. [107] Para acirrar o ambiente social, advém a divisão do trabalho – decorrência da modernização estatal; com isso, há uma maior especificidade em cada função; a diferenciação dos indivíduos exacerba-se, não há mais semelhanças, mas diferenças. A coesão só se mantém pela solidariedade orgânica, ou seja, pela dependência do outro, que, pela sua função, suprirá, mediante retribuição (troca de bens), as necessidades do eu.

A conexão forte que ligava o indivíduo ao grupo extingue-se, cedendo lugar ao espírito de individualismo [108], ou melhor, o sujeito percebe que sua existência não depende da conjunção de forças do grupo, mas de sua própria força, interagindo com os outros para o suprimento de suas necessidades, como sociais, econômicas, biológicas e psicológicas. Com isso, Gauer (1996) expõe o seguinte:

A última etapa do processo da relação conceptual entre o indivíduo, a Igreja e o mundo é, para Dumont, a Reforma de Calvino sobre Lutero. O autor coloca que "(...) o elemento mundano antagônico, ao qual o indivíduo devia ‘faire place’, desapareceu internamente na teocracia de Calvino. O campo é absolutamente unificado. O indivíduo é agora o mundo, e o valor individualista reina sem restrição nem limitação. Temos diante de nós o indivíduo-no-mundo, na opinião do autor (Dumont, Louis. op. cit. p. 60.). Podemos dizer que os indivíduos passaram a encarnar o outro mundo em sua ação neste mundo; sua legitimação é a participação neste mundo e não o refúgio em outro mundo. [109]

As sociedades de constituição complexas apresentam sua base construída pela visão individualista que força a um isolamento, eis que nas sociedades de constituição simples não havia. Neste ponto, encontra-se o contra-senso. Fazem parte de uma sociedade mais extensa e pluralista que ao mesmo tempo as pessoas são localizadas e encaixadas numa posição rotuladora atribuidora de um status de estranho [110], para os demais indivíduos. Coloca-se no meio deste discurso a divisão de classes, ou melhor, dizendo há fatores de diferenciação mais agudos. No entanto, a abordagem deste tema afetaria o escopo do trabalho. Mas é de se levar em conta questões implícitas nos meandros sociais.

Nesta toada de relações superficiais o indivíduo, alienado ao sub-sistema, interioriza-se, ensimesma-se, concentra-se na sua individualidade. [111] Simplesmente coabita no meio social, fisicamente e permanece psiquicamente isolado, imerso na sua própria individualidade. Individualidade reforçada pela cultura narcisista da atualidade, em que a aparência, a estética é mais valorada do que a própria essência. A sociedade do espetáculo, [112] do glamour do consumismo, [113] da superficialidade e, além disto, com o enfraquecimento da alteridade compõe a estruturação e fortalecimento do eu.

Essa onda de "choque" começa atuando desde a tenra idade do indivíduo seja pelo tratamento usado pelos pais ou a educação recebida para enfrentar um mundo no isolamento do individualismo. O eu prevalece sobre o nós. Precocemente a criança vai entronizando, no processo de adaptação, uma idéia de máxima valoração da competição. E recebe, ainda, para potencializar seu espírito competitivo, a instrução de rejeitar qualquer aproximação do estranho – outro –, "inimigo", segundo um modelo pré-formatado em sua concepção pela observação na sociedade da insegurança.

Além disso, com as transformações sociais, os indivíduos são instados a controlar e a esconder seus afetos instintivos, intensifica-se o autocontrole como um meio de esconder-se dos demais. A tentativa de cada um volta-se para seguir um padrão básico de conduta. É tentar se socializar sem, ao mesmo tempo, expor-se, ou seja, continuar fechado na sua própria armadura. O comportamento exigido levará o sujeito a tornar-se um igual dentro das suas peculiaridades exteriorizadas. Caso não haja a observância da conduta imposta é taxado de marginal.

O paradigma transforma-se num paradoxo enlouquecedor. Exige-se de um ser humano posições antagônicas. O Homem, como um ser social, precisa interagir com seus pares, – o contato é fundamental para uma saúde e desenvolvimento sadio – no entanto, a contemporaneidade, com seu autocontrole e a divisão de classes, impõem comportamentos individualizadores e competitivos, direção oposta ao comportamento cooperativo. Mas é preciso que se sigam os ditames sociais vigentes para não ser tratado como estranho, e ser, definitivamente, excluído. [114]

A repressão de seus impulsos, como autocontrole é via de individualização, ocasiona, numa pessoa desestruturada – econômica-social-educacionalmente – um distúrbio psicológico. O indivíduo, anteriormente ser sociável, transforma-se num indivíduo que deve autodeterminar-se sobre os freios do autocontrole, fechando-se em si mesmo, sem deixar uma brecha para o mundo exterior. Faltando-lhe todo o aporte afetivo, muitas vezes negado pela vida social (de maneira consciente ou inconsciente) causando-lhe conseqüências graves de caráter e personalidade. Isso significa moldar uma personalidade anti-social, chegando a radicalidade da significação psiquiátrica.

No entanto, o autocontrole, exigido por fatores exógenos, principalmente a sociedade e seus padrões estéticos/éticos (morais), têm, atualmente uma força descomunal na criação e desenvolvimento do caráter e, por isso, é influenciador do comportamento individualista do eu, que nega o nós e afasta o outro. O planeamento do autocontrole é equivocado e deve ser revisto no comportamento do outro que recebe o eu ao nascer. Isso pode ser transportado ao nós, em decorrência de influências sociais, é merecidamente sublinhável que a responsabilidade começa pelo ser individualizado. O começo e o término de uma coletividade são os Homens, como valor totalizante e único. A condição humana é perene, universal e imensurável na materialidade do contidiano. A sua negação é afirmação da mera instrumentalidade do ser humano. [115]

Dessa forma, com essa "opção" de vida, surgem as personalidades anti-sociais que representam, sintomaticamente, a falência de uma sociedade que deveria ser fraterna e tolerante com seu próximo, mas que na verdade é autodestrutiva. Causa mal a si própria, pois além de produzir em larga escala um ambiente inóspito ao desenvolvimento sadio do ser humano, marginaliza, de forma cruel, aqueles que, por circunstâncias impostas pelo próprio meio, acabam sendo condenados duas vezes, um bis in idem; ou melhor, geralmente, nascem num grupo que sobrevive em condições precárias, sendo vítimas de uma parca educação e de uma condição econômica abaixo do nível da pobreza (miserabilidade) e, como se não bastasse, sofrem a perseguição do Estado através do Direito Penal e sua persecução, que procurará excluí-los do sistema ao invés de fornecer o tratamento e as condições necessárias a uma vida digna.

De fato revela-se uma faceta da sociedade, hodiernamente de consumo, anti-humanista. [116] A preponderância valorativa do bem de consumo sobre o indivíduo desloca-o para uma interiorização no eu hermeticamente fechado sem dar azo ao nós (sentido coletivo), fato que causa um acirramento das relações interpessoais, e que determina o afastamento entre os indivíduos, que, inevitavelmente, acarreta atribulações no convívio social.

Os conflitos e a competição inviabilizam o fornecimento do devido afeto e atenção que cada indivíduo deveria receber do meio social, diga-se do outro(s). Sua imprescindibilidade da relação com os seus pares e o seu distanciamento, constrói o ambiente fecundador de distúrbios anti-sociais. Sendo a classe pobre a mais atingida, eis que as parcas condições econômicas, juntamente com a precária educação e a falta de assistência do Estado são cabais para a desconstituição ou má formação do caráter dos indivíduos.

A pior constatação, ainda, que pode ser trazida à tona, é a reprodução deste ambiente inóspito através das crianças que nascem em tal meio. A inação do Estado, que deveria prestar auxílio, só piora a situação posta. A miserabilidade, além de causar distúrbios desviantes, ocasiona outras implicações e reflexos na vida social. [117]

A perfunctoriedade dos laços sociais é a mais veemente expressão do que ocorre na atualidade. A sociedade espetáculo (estética) só exaltará aqueles atores que souberem "dançar no ritmo da música". O descompasso acarretará sérias conseqüências psicossociais, como depressões ou síndromes e pânicos. A alteridade cedeu terreno em detrimento do individualismo narcisita-consumista desconectado de qualquer consistência de laços afetivos.

A imagem negativa, [118] perante o grupo, muitas vezes, é determinante da interação/integração social. Dessa forma, a fragilidade da moldura comportamental não suporta o conteúdo, a essência contida no seu interior. Por isso, qualquer abalo na estrutura modeladora desencadeia uma seqüência de atitudes de libertação que vai de encontro com o comportamento social comum. Corolariamente haverá uma reação social, na intenção da manutenção do status, ou melhor, da estabilidade social.

Dessa forma, pode-se concluir que há várias forças agindo sobre a psique de cada um de nós. Forças de libertação e de contenção, exógenas e endógenas, e que só se definirá o comportamento conforme a intensidade de cada força em determinados momentos. Ainda, as circunstância de cada eu (ORTEGA Y GASSET, 1973) determinam o ser em si mesmo e o ser no meio exterior. Se o humano encontra no outro o aporte fundante do desenvolvimento, encontra em si o casulo de proteção de autodefesa. Como acima foi exposto, a tríade formadora do Homem não é mais do que sua condição natural, mas tem, na atual contingência dos fatos, destacado no eu. Enquanto o reconhecimento do outro é a primeira racionalização do mundo, o despertar para o eu torna-se latente e perene atualmente.

Esta condição é rompida pela esfera penal que por escopo inicial, de sua existência, seria o mecanismo do Direito mantenedor do Humano como valor absoluto.

3.3 Direito penal repressivista: movimento lei e ordem [119]

Este tópico terá por base o pensamento de Loïc Wacquant (2001), exposto nos livros: As Prisões da Miséria e Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. É importante salientar que o primeiro livro citado refere-se a uma globalização do movimento Lei e Ordem e que o segundo tem seu foco voltado à análise norte-americana da política penal.

O esclarecimento do escopo do Direito Penal, que se encontra sob as rédeas firmes do movimento da lei e da ordem, fornece as bases do entendimento operativo e a ratio do legislador condizente à esfera penal.

O Estado liberal, e de maneira atualizada e fortalecida, o neoliberal, tem seu enfoque de preocupação com o livre mercado econômico, deixando de implementar medidas assistencialistas que porventura possam impedir o aumento da criminalidade. [120] Melhor dizendo, a política criminal, através do Direito Penal, sob a égide da epígrafe de defesa social, [121] cria diretrizes para o controle delitivo que o Estado implementa porque é, apenas, policial-penitenciário, eis que faltando com ações no campo socioeconômico, [122] concentra-se, então, mais na repressão que na prevenção.

Esta teoria advém da lógica econômica, como observa Buchholz (1989):

Por enquanto nós vimos como os economistas examinaram a lei do agravo e de propriedade, mas não há área do direito que os vorazes economistas tenham deixado intacta. O economista Gray Becker aplicou os princípios de Marshall ao direito de família e ao direito criminal. As questões são fascinantes. O modelo criminal de Becker postula que há criminosos que aparentemente pesam os custos e os benefícios de cometer delitos. Se o crime é um problema, sugere Becker, é porque o crime ‘compensa’. Então os economistas começaram a querer determinar o que é que impede um criminoso. Há duas variáveis que parecem ser mais importantes: (1) taxa de detenções e (2) rigor das penas. O efeito de impedimentos difere dependendo do tipo do crime. Em alguns tipos de crime, a polícia deveria se concentrar em prender o criminoso. Em outros casos, a taxa de detenções não amedronta os marginais. Entretanto, penas severas são capazes de assustá-los e desencorajá-los. [123]

Hodiernamente, o econômico tomou o lugar do ser humano de destaque, tornando-se o centro do mundo, o fim último. Como o trecho citado acima, segundo os economistas, os criminosos raciocinam numa perspectiva econômica, de perda e ganho. Através deste disparate reducionista ao pensamento mercadológico em que há preponderância do capital sobre o social, política que descura da esfera humana da sociedade, torna-se necessário reforçar as atividades que procuram garantir a segurança dos consumidores.

Neste sistema, racionalizado sobre bases mercadológicas-econômicas, os excluídos do mercado de trabalho tornam-se visões indesejadas, grotescas, para aqueles que usufruem do espaço público, que defendem políticas neoliberais vigentes e desprezam o assistencialismo estatal. Logo, as oportunidades aos marginais sociais se extinguem, inviabilizando uma melhor, ascensão social. Esta pode perfazer-se em dois caminhos o lícito – que lhe é dificultado – e o ilícito – que sempre lhe é oferecido.

Quando a opção para ascensão social é pelos caminhos ilícitos, recai imediatamente a força do Estado, que está sedento para afastar os delinqüentes da convivência dos ditos cidadãos "impolutos". Estes, para o aparelho estatal, devem usufruir os espaços públicos sem o incômodo de ter ao seu redor a pobreza.

Essa ideologia política constitui o programa de "tolerância zero", aplicada em Nova Iorque. [124] Com uma espécie de dogmatização da criminalidade e suas causas, as autoridades norte-americanas foram doutrinando a população a não mais tolerar sua própria miséria, sua delinqüência, seu fracasso, salienta Bauman (1999) o seguinte:

A experiência das cidades americanas analisadas por Sennett aponta para uma regularidade quase universal: a suspeita em relação aos outros, a intolerância face à diferença, o ressentimento com estranhos e a exigência de isolá-los e bani-los, assim como a preocupação histérica, paranóica com a ‘lei e a ordem’, tudo isso tende a atingir o mais alto grau nas comunidades locais mais uniformes, mais segregadas dos pontos de vista racial, étnico e de classe. [125]

Então, a partir dessa postura, desta forma, criou-se um ambiente de intolerância com os criminosos na cidade de Nova Iorque (também no resto do país, até mesmo no mundo) de intolerância com os criminosos, começando pelos bagatelares, (na sua maior parte oriundo de países pobres, principalmente africanos e latino-americanos) que, por qualquer desvio, ou suspeita de desvio na ordem pública, são isolados, excluídos do ambiente social. A total observação, o domínio dos desviantes e prováveis delinqüentes proporciona uma sensação de segurança na parte "nobre" da comunidade.

A repressão tornou-se, destarte, intensa, abrindo o ensejo até mesmo para o arbítrio despótico das autoridades no seio do grande orgulho norte-americano em relação a democracia. A guerra "para limpar o espaço público da sujeira" é defendida por divulgações de estudos, publicações de livros, defesa de opiniões apaixonadas, programas midiáticos massivos, discursos raivosos, que levam a um ódio da pobreza; isso tudo patrocinado por autoridades públicas e organismos criados para tal finalidade. [126]

A difusão da política norte-americana tomou proporções globais, concomitantemente com a propagação da economia de mercado, foi anexada, destarte, a política de maximização do direito penal, a repulsa e a estranheza contra os pobres. A mudança do paradigma de Estado está ocasionando, também na Europa, uma elevação nos índices de criminalização, na mesma direção norte-americana. O Estado está sofrendo uma guinada na sua imagem como observa Bauman (1999):

Max Weber definiu o Estado como agente que reivindica o monopólio dos meios de coerção e do uso deles em seu território soberano. Cornelius Castoriadis alerta contra o hábito muito difundido de confundir o Estado com o poder social enquanto tal: ‘Estado’, insiste ele, refere-se a uma forma específica de distribuir e condensar o poder social, precisamente tendo em mente a capacidade reforçada de ‘ordenar’. ‘O Estado’, diz Castoriadis. ‘é uma entidade separada da coletividade e instituída de modo tal a garantir a permanência dessa separação’. Deveríamos reservar o nome de Aparelho de Estado – o que implica uma ‘burocracia’ separada, civil, clerical ou militar, ainda que rudimentar: em outras palavras, uma organização hierárquica com área de competência delimitada. [127]

Desta forma, há uma migração da população, já oprimida no gueto para os presídios. Nada mais que um ostracismo social causado por uma xenofobia caracterizada pela cor da pele e descendência latina e africana.

Os Estados Unidos recorrem, no curso de sua história, não a uma, mas a muitas ‘instituições peculiares’ para definir, confinar e controlar os afro-americanos. A primeira é a escravidão como pivô da economia das plantações e matriz original da divisão racial da época colonial até a Guerra Civil. A segunda é o chamado ‘sistema de Jim Crow’, sistema legal de discriminação e de segregação do berço à tumba que ancorava a sociedade agrária do Sul do fim da Reconstrução até a Revolução dos Direitos Civis, que o derrubou um longo século depois da abolição da escravatura (Woodward, 1957; Litwack, 1998). O terceiro dispositivo especial graças ao qual a América conteve os descendentes de escravos nas metrópoles do norte industrial é o gueto, produto do cruzamento da urbanização e da proletarização dos afro-americanos da Grande Migração de 1914 – 1930 até os anos 60, quando a transformação conjunta da economia e do Estado e a mobilização crescente dos negros contra a exclusão de casta, que culminou com a vaga de confrontos urbanos reportados pelo Relatório da Comissão Kerner (Spear, 1968; Kerner Commission, 1988), tornaram-no parcialmente obsoleto. Argumentei aqui que a quarta ‘instituição peculiar’ da América é o novo complexo institucional composto por vestígios do gueto negro e pelo qual aparato carcerário, ao qual o gueto ligou-se por uma relação estreita de simbiose estrutural e de suplência funcional. [128]

Logo, com essa política inflacionando as penitenciárias, os aparatos penitenciários orgulham aqueles defensores da reclusão nas instituições totais.

Com a insuficiência do aparelho estatal de perseguição dos criminosos e na imposição de uma ideologia penalizante, foi se estruturando a autovigilância social, [129] que constitui de mecanismos difusores que implicam a publicação, pelos órgãos de comunicação (públicos ou privados), de todos os dados referentes aos condenados ou, por vezes, apenas, acusados, pelo cometimento de um crime; ou seja, os dados dos criminosos ou, por vezes suspeitos, são tornados públicos, uma forma ultrajante de controle societário. O importante a ser destacado, ainda, é que a manutenção destas informações, quando feita, é com desdém, pois muitos dos "fichados" já cumpriram sua pena e continuam, por causa destes arquivos, sendo marginalizados e, como se não bastasse, há, ainda, informações equivocadas, pessoas que nunca cometeram ato delituoso e constam no rol. [130]

Desta forma, o controle é exercido pela própria população, fato que causa, desde o primeiro momento, um mal-estar e um afastamento do delinqüente do convívio social. A procura pelos cidadãos por esse banco de dados é intensa, pois todos, têm a intenção de se precaver contra seus vizinhos de rua ou até mesmo de bairro. Estas medidas vêm com a proposta de uma efetivação da segurança pelo panopticismo. Bauman (999) destaca o seguinte:

Há poucas imagens alegóricas no pensamento social que se equiparem em poder persuasivo à do Panóptico. Michel Foucault usou o projeto abortado de Jeremy Bentham com grande efeito: como uma metáfora da transformação moderna, da moderna contribuição dos poderes de controle. Com mais discernimento que muitos dos seus contemporâneos, Bentham viu diretamente através dos variegados invólucros dos poderes controladores a ameaça constante, real e palpável de punição; e, através dos muitos nomes dados às maneiras pelas quais se exercia o poder, a sua estratégia básica e central, que era fazer os súditos acretitarem que nenhum momento poderiam se esconder do olhar onipresente dos seus superiores, de modo que nenhum desvio de seu "tipo ideal", o Panóptico não permitiria qualquer espaço privado, pelo menos nenhum espaço privado opaco, nenhum sem supervisão ou, pior ainda, não passível de supervisão. Na cidade descrita por Zamiatin em Nós, todo mundo tinha um lar privado, mas as paredes das casas eram de vidro. Na cidade de Orwell em 1984, todo mundo tinha um aparelho de TV particular, mas ninguém jamais tinha permissão para desligá-lo e ninguém podia saber em que momento o aparelho era usado como câmera pela emissora.... [131]

Destarte, delega-se ao cidadão a tarefa de observação dos movimentos do desviante, ficando na espreita, à espera da primeira oportunidade de denunciá-lo, por algum ato que se considere impróprio a sua condição, ou ao Estado. Este, por sua vez, vislumbra a oportunidade de trancafiá-lo numa cela. Política de concorrências conducentes a uma co-vigilância entre os próprios comunitários, numa mútua desconfiança do vizinho.

O movimento lei e ordem, como a tolerância zero, abrange aspectos da funcionalidade do Direito Penal – legitimidade e legalidade –, que estão intimamente interligados a uma doutrina econômica. Nota-se escopos na atuação de um Estado contra-contratualista, ou melhor, de um Estado que de fim último de proteção do bem comum de seus membros tem como finalidade a seleção de seus cidadãos; os demais (os que sobram), não conseguem auferir de seu Estado "protetor" mais do que míseras ofertas assistencialistas.

O Direito Penal tem suas normas diretamente voltadas a uma maximização de condutas incriminadoras e, além do mais, encontra-se na perspectiva de aumento da pena máxima dos tipos penais comuns, ou seja, tipos que aos olhos míopes do legislador-midiático são corriqueiros. Destaca-se, deste modo, um apelo midiático [132] à penalização máxima. Com bases construídas por estes paradigmas a esfera penal transforma-se num mecanismo perseguidor dos desorientados socioeconomicamente. Pois suas proposições políticas voltam-se à criminalidade comum, ou seja, à exascerbadamente tipificada. No entanto, que toca à criminalidade chamada do "colarinho branco" há uma desídia do legislador. [133]

Sobre este aspecto, o trato legislativo é colocado em segundo plano e a persecução penal com sua violência é abrandada, procedimento que cria um espaço vazio entre estes paradigmas criminais. Em suma, há dois tipos de criminosos; os que atuam sobre a pecha de marginais, estranhos, excluídos e os que são idolatrados como espertos, audazes, astuciosos etc. Essa cultura é estimulada pelo próprio sistema penal que trata diferentemente e de maneira díspares estes duas sendas criminais.

A concepção de Direito, em sentido amplo, normativista, anteriormente criada sob o argumento principiológico da igualdade e da legalidade, proteção do indivíduo frente ao arbítrio Estatal, insurge, hodiermanente, na perfídia dos legisladores, na desconstrução destes dois princípios e na criação da insegurança do indivíduo, que a qualquer momento pode cair nas malhas finas dos aparelhos repressivos-administrativos do Estado (ALTHUSSER, 1998).

A inflação da legislação penal, que busca abranger a maior quantidade de fatos, ditos perturbadores do cotidiano público, é um sintoma da implementação da segregação, através do Direito Penal, dos indesejados; escravizar [134] os já sem liberdade, retirando-lhes as garantias conquistadas. Estes, por conjunturas socioeconômicas são sugados para as instituições totais.

O processo de globalização da economia leva junto à ideologia e com isto ocasiona uma pandemia do Direito Penal, partindo do modelo Norte-Americano. O Direito Penal – o processo penal se inclui – e sua repressão são atingidas em cheio, pois se faz mecanismo estratégico para separar os bons dos maus e, ainda, é possuidor da violência física, mental do cárcere e, ainda, torna temporalmente defasado na reinserção à sociedade. [135]

Desprende-se desta política, a clara motivação de exclusão. Se o individualismo distingue o eu e o outro e causa tensões conflitivas, a partir desta situação de violência, seleciona-se os bons dos maus, os que serão excluídos e o que serão protegidos. É notória a seletividade no meio do conflito, pois acaba por justificar a atuação do penal em separar os "sociáveis" dos não "sociáveis". O liame torna-se claro se a ligação for guiada pelo caminho do afastamento do outro e a ameaça que este representa é amenizada pela força penal. Dois problemas são resolvidos desta forma: 1) a ameaça do outro e a insegurança que este representa é debelada pela repressividade, ou seja, surge a ilusão do seguro; 2) no ambiente competitivo, o afastamento do outro, por suposto sua neutralização, no meio das malhas penais, significa a queda de um competidor. Ora, o penal repressivista demonstra, em um aparelho acirrador do ambiente degenerado, sócio-individualista, o que produz ainda mais violência. Além disso, mostra-se como um campo que pretende inovar em termos de Direito, ou seja, pretende propor novos horizontes-institutos ao Direito-poder-do-Estado na sua revigoração como legitimo detentor do poder máximo. Corre-se o perigo de ocorrer novos movimentos resgatadores do monopólio do Estado na imposição do Direito. A pluralidade, neste cenário, encontra-se ameaçada pelo seu debelamento em detrimento disto.

Os princípios assentes do Estado-Democrático-Constitucional-de-Direito protetores dos cidadãos em face dos desmandos do poder do "supremo" devem ser protegidos, curados em todas as instâncias da sociedade como valores intimamente ligados à dignidade do Homem. Embora artificialmente ligados a este, recebe proteção das agressões despóticas inadmissíveis no contemporâneo.

Sobre o autor
Guilherme Camargo Massaú

especialista em Ciências Criminais pela PUC/RS, em Pelotas (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MASSAÚ, Guilherme Camargo. Individualismo como incentivador da violência e o papel do Direito Penal nesse contexto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 796, 7 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7249. Acesso em: 25 dez. 2024.

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