6. DO DIREITO CANÔNICO
O chamado direito penal da igreja contribuiu de maneira relevante para a humanização da aplicação da pena, embora, politicamente, seus métodos visassem proteger o predomínio dos interesses de dominação da igreja. Procurou a extinção do juízo de Deus e dos duelos judiciários, introduzindo as penas privativas de liberdade, bem como a sua mitigação, não tendo mais o fim de expiação.
Além disso, buscava-se a regeneração do criminoso e sua purgação de culpa pelo arrependimento, o que levou, contraditoriamente, aos excessos da Inquisição, surgida com o Concílio de Latrão, em 1215, passando-se então, à prática da tortura em larga escala. No processo inquisitório não haveria a necessidade de prévia acusação, podendo as autoridades eclesiásticas agirem de ofício. Vale a pena salientar que o direito penal eclesiástico era contrário à pena de morte (MIRABETE, 2015).
Neste período, aceitava-se a igualdade de todas as pessoas, dando uma especial importância ao aspecto subjetivo da pena: deve-se dar essencial relevo à intenção do agente e não ao fato do agente. A penitenciária foi criada pelo Direito Canônico para que o criminoso refletisse sobre seus atos, emendando-se (COSTA JÚNIOR, 2010).
7. A PENA NO PERÍODO PRIMITIVO E SUA MUDANÇA COM O PASSAR DOS TEMPOS
Como exposto acima, a aurora da humanidade e a aplicação da pena são contemporâneos e sempre andaram juntos. A pena, em sua definição primitiva, nada mais é do que uma vingança: um revide à agressão sofrida pela vítima, sem a preocupação com a justiça. Michel Foucault (2002) descreve em sua obra, “Vigiar e Punir”, que a pena, sendo privativa de liberdade ou não, sempre vinha acompanhada de uma dose de Suplício (uma espécie de pena corporal), significando que a punição de determinada pessoa era feita de forma desproporcional, selvagem e, sobretudo, desumana.
No decorrer do século XVIII surge uma mudança de paradigma no que diz respeito à aplicabilidade da pena: passou-se a punir ao invés de vingar. Nasceu uma nova visão do Estado e da sociedade sobre a questão de uma pena proporcional à conduta praticada pelo infrator: não punir menos, mas punir melhor. Contudo, somente no início do século XIX o corpo do condenado deixou de ser alvo de aplicação da pena (MIRABETE, 2015).
Ou, nas descrições magníficas da obra de Foucault:
A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as funções da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser compreendidas, ficou a suspeita de que tal rito que dava um ‘fecho’ ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a frequência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração (2002, p. 13).
Mostrando, com apenas duas partes da história, que o modo de impor sanção evoluiu e, sobretudo, humanizou. Mas para concluir sobre sua eficácia, vale salientar como e o que foi essa “humanização” das leis, quais as escolas falaram sobre esse assunto, além de alguns períodos até então não falados. Veremos isto nas linhas a baixo.
8. DO PERÍODO HUMANITÁRIO E A FILOSOFIA DAS LUZES
Meio a esses períodos de aplicação descontrolada de normas, criadas sem a observação de direitos naturais do homem, ou aquilo que realmente garanta a segurança jurídica do grupo social, surge um pensamento que revolucionou o ideal primitivo de aplicação das penas. A sociedade estava cansada de ver barbáries praticadas pelo Estado sobre o pretexto de aplicação da lei. Por isso, esse período nasceu com o intuito de derrubar as arbitrariedades praticadas pela justiça penal e o caráter real das penas (NUVOLONE, 1981, p. 1).
Nos séculos que representaram esse período, XVII e XVIII, o pensamento predominante era no sentido de que o homem precisava conhecer a justiça. Esta época foi marcada pela expansão da burguesia e o grave conflito entre esta classe (comandante do capitalismo) e a nobreza, surgindo então o liberalismo burguês. Tais ideais de liberalismo ganharam força com um movimento conhecido como iluminismo ou filosofia das luzes (ESTEFAN; GONÇALVES, 2013).
Os pensadores dessa filosofia foram de suma importância para a, digamos, revolução ideológica de aplicação das penas, pois, além de pregar os direitos fundamentais do homem, criticavam a intervenção do Estado na economia, bem como as interferências “maléficas” religiosas na forma de criação das leis. O iluminismo equivale, portanto, à emancipação do ser humano ao autoritarismo Estatal ou às regras “contra legem” impostas pela igreja (COSTA JÚNIOR, 2010).
Autores como Montesquieu, jurista Francês, criador do “Espírito das Leis” e defensor da separação dos poderes do Estado; John Locke, jurista Inglês, conhecido como pai do iluminismo, autor da obra “Ensaio Sobre o Entendimento Humano”; François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, filósofo Francês, conhecido pela intolerância religiosa e pelas críticas ao clero católico e à preponderância dos poderosos; e Rousseau, defensor dos ideais da Revolução Francesa, tiveram fundamental importância na aplicação da nova ideologia do direito, mas foi com Cesar Bonesana, o Marquês de Beccaria, que o direito sofreu sua real mudança (SMANIO; FABRETTI, 2015).
“Dos delitos e das penas”, foi sua obra prima, considerado “o Pequeno Grande Livro” pelos filósofos da época. Pregava concepções de liberdade e a aplicação justa e proporcional das penas, dentre outros princípios. Beccaria, filósofo imbuído dos princípios pregados por Jean Jacques Rousseau e Montesquieu, lutava por um sistema de indícios que justificaria a prisão preventiva, tais como a confissão do acusado, o risco de sua fuga ou seu ódio pela vítima e o clamor público.
Combatia também as acusações secretas, os juízes de Deus e a prática de tortura com fim de confissão pelo acusado. Ensinava, a propósito, que “a lei que autoriza a tortura é uma lei que diz: homens, resisti à dor”, dentre vários outros pensamentos que revolucionaram o modo de impor sanção mundo a fora (COSTA JÚNIOR, 2010).
A mencionada grande obra criada por esse magnífico autor foi formada por alguns princípios básicos do Direito Penal moderno, muito dos quais foram adotados pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, sendo eles:
1. Só as leis podem fixar as penas, não se permitindo ao juiz interpreta-las ou aplicar sanções arbitrariamente;
2. Devem ser admitidas em juízo todas as provas, inclusive a palavra dos condenados (mortos civis);
3. Não se justificam as penas de confisco, que atingem os herdeiros do condenado, e as infamantes, que recaem sobre toda família do criminoso;
4. A pena deve ser utilizada como profilaxia social, não só para intimidar o cidadão, mas também para recuperar o delinquente;
5. Os cidadãos, por viverem em sociedade, cedem apenas uma parcela de sua liberdade e direitos. Por essa razão, não se podem aplicar penas que atinjam direitos não cedidos, como acontece nos casos da pena de morte e das sanções cruéis (MIRABETE apud DDHC, 2015. p.19).
Com essas ideias, fica fácil enxergar a justiça natural ou a cultura do pensamento “jusnaturalista” na nova visão contemporânea de aplicação das penas. Uma humanização do direito penal à luz de pensamentos filosóficos. Não é possível dizer, ao certo, se foi daí que nasceu o Direito Penal do fato, mas o acusado, a partir desse período, passou a ser julgado por um “tribunal” o qual tinha como missão a aplicação da Justiça.
9. DA APLICAÇÃO DA PENA SEGUNDO A ESCOLA CLÁSSICA
As ideias fundamentais dessa escola são trazidas por autores que foram influenciados pela doutrina iluminista e por Beccaria. Seu principal expositor, Francesco Carrara, pregava o delito como um “ente jurídico” compelido por duas forças: a física (movimento corporal e o dano do delito), e a moral (vontade livre e consciente de praticar o crime). Para eles, a pena é uma proteção aos bens jurídicos tutelados penalmente e uma defesa social, além de ser aplicada com respeito à proporcionalidade (GILISSEN, 2008).
Segundo Paulo José da Costa Júnior (2010), ao estudar Feuerbach e explicar seus pensamentos, a pena deve deter o delinquente antes de iniciar o inter criminis, sendo, portanto, preventiva e não retributiva. O motivo disso seria o interesse na segurança jurídica. Para ele, a execução da pena seria o demonstrativo de que a ameaça era séria e válida, nada obstante não ter deixado claro se seguiria ou não seus pensamentos. Disse ainda que Feuerbach foi um fiel defensor do princípio da legalidade dos crimes e das penas, sendo dele a expressão latina nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege (não há crime sem lei, não há pena sem lei).
10. DO PERÍODO CRIMINOLÓGICO E A ESTRUTURA BIOSSOCIOLÓGICA DO CRIMINOSO
Para melhor entender as proposições anteriores, é necessário saber ao menos os preceitos básicos que constituem o agente alvo da aplicação do produto da sanção, pois a perfeição que o direito procura somente ocorrerá quando, também, a “justiça conhecer o homem”.
Diferentemente do pensamento de Carrara, pensador da escola Clássica; para os positivistas, o crime é um fenômeno biológico e não um ente jurídico. Por essa razão, este movimento da segunda metade do século XVIII, praticava o estudo experimental e não o lógico-dedutivo dos clássicos. A escola em tela nasceu das teorias evolucionistas de Darwin e Lamarck e das ideias de John Stuart Mill e Spencer (MIRABETE, 2015).
O principal autor desse movimento criminológico e pioneiro da escola positiva foi o médico e professor italiano César Lombroso, quem considerava o crime como a manifestação da personalidade humana. Ele estudava o criminoso do ponto de vista biológico e foi o criador da antropologia criminal. Sendo suas principais ideias, as seguintes proposições:
1. O criminoso é um ser atávico e representa a regressão do homem ao primitivismo. É um selvagem e nasce delinquente como outros nascem sábios ou doentios, fenômeno que, na biologia, é chamado de degeneração.
2. O criminoso nato apresenta características físicas e morfológicas específicas, como assimetria craniana, fronte fugidia, zigomas salientes, face ampla e larga, cabelos abundantes e barba escassa, dentre outros.
3. Esse criminoso nato é insensível fisicamente, resistente ao traumatismo, canhoto ou ambidestro, moralmente insensível, impulsivo, vaidoso e preguiçoso.
4. O criminoso é, assim, um ser atávico, com fundo epilético e semelhante ao louco moral, doente antes que culpado e que deve ser tratado e não punido (MIRABETE apud LOMBROSO, 2015, p. 21).
Apesar de não haver coerência na definição de criminoso nato e dos exageros trazidos por este autor, seus estudos ampliaram os horizontes do Direito Penal e construíram novas estradas na luta contra a criminalidade. As ideias de Lombroso, com o tempo, foram ampliadas e/ou retificadas por alguns de seus seguidores, dentre eles Henrique Ferri e Rafael Garófalo (MIRABETE, 2015).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dada a pesquisa realizada, conclui-se que, ao longo da história das civilizações, o modo de aplicar as penas evoluiu gradativamente do desejo de vingança dos Deuses para uma clara necessidade social de se fazer justiça. E, no que se refere, propriamente, à imposição de sanções, o resultado não poderia ser diferente: a tendência, desde o início do século XIX, é no sentido de desvincular a figura corpórea do criminoso da execução das medidas punitivas.
Dito isso, a evolução histórica da aplicação das penas na sistemática do Direito Comparado é evidente, e no que tange à humanização das penas, o progresso é inegável.
Por fim, nota-se a real evolução do Direito Penal frente a uma criminalidade que não caminha para o fim. A sua estruturação é moldada de acordo com o elemento gerador do ato ilícito e nem sempre é voltada ao benefício da coletividade, mas sim como fato fundante da realização pessoal do legislador. Contudo, como bem exposto ao longo da pesquisa, a pena disfarçada de suplício não serve para um Estado humanitário, mas servirá para uma sociedade que quer acabar com a criminalidade?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal. Vol. 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.
ESTEFAN, André; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito penal esquematizado. 2 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 25 Ed. São Paulo: Editora Vozes, 2002.
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal – Vol. 1. 7 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
GILISSEN, John. A introdução ao direito. 5 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 18 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2002.
NUVOLONE, Pietro. O sistema de direito penal. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.
PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a Pena na Atualidade. 1 ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1983.
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SMANIO, Gianpaolo Poggio; FABRETTI, Humberto Barrionuevo. Introdução ao Direito Penal: criminologia, princípios e cidadania. 4 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015.
STRATENWERTH, Gunther. Derecho penal, parte general. 1 ed. Civitas, 1999.
VIRTU, André; MERLE, Roger. Traité de Droit Criminel. 7 ed. 2001.