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Da necessária (e viável) regulamentação da profissão do sexo: já chega de jogar pedra na Geni!

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Agenda 23/03/2019 às 09:30

Capítulo 2-Aspectos jurídicos gerais sobre a prostituição

2.1 Dos sistemas legais em sede de direito comparado

Ao adentrar aos aspectos jurídicos e sociais da prostituição, faz-se necessária uma breve apreciação a respeito dos tipos de sistemas legais e seus diferentes tratamentos a questão da legalização que, de certa forma, também refletem o contexto social de determinados países acerca dessa temática.

Como explica o autor Mario Bezerra da Silva, em seu Artigo “Profissionais do sexo e o Ministério do Trabalho”, em nível mundial, existem três diferentes tipos de sistemas legais no que tange aos profissionais do sexo: o Abolicionismo, o Regulamentarismo e o Proibicionismo.17

No sistema abolicionista, no qual se enquadram a maioria dos países, como Brasil, Portugal e Argentina por exemplo, existe a visão de que o profissional do sexo é a vítima de uma coação para que exerça tal trabalho, sendo punidos somente aqueles que se aproveitam economicamente da atividade sexual desempenhada por essas pessoas. Nesse sentido leciona Luiz Regis Prado: “o sistema abolicionista apregoa que, por ser a prostituição uma atividade não criminosa, não deve o Estado interferir no seu exercício”.18

Na Argentina, não representa conduta tipificável o agenciamento de prostitutas, salvo em casos de coação, ameaças ou quaisquer outras condutas ilegais que forcem a prática da atividade, contudo a legislação do país goza certa severidade a fim de punir quem de qualquer forma colabora pra que se configure a prostituição de menores, como se pode notar da seguinte transcrição traduzida do Artigo 125 do Código Penal Argentino:

Artigo 125 - Quem, para o lucro ou para satisfazer seus próprios desejos ou outros, promove ou facilita a prostituição ou corrupção de menores, independentemente do sexo, mesmo com o consentimento da vítima, será castigado:

1.Reclusão ou prisão de quatro a quinze anos, se a vítima for menor de doze anos;

2.Reclusão ou prisão de três a dez anos se a vítima for maior doze anos e menor de dezoito anos;

3.Reclusão de dois a seis anos se a vítima for maior de dezoito anos e menor de vinte anos. Seja qual for a idade da vítima, a pena é de prisão ou pena de prisão de dez a quinze anos, quando praticada mediante engano, violência, ameaças, abuso de autoridade ou de quaisquer outros meios de intimidação ou coerção, como se o autor for ascendente, marido, irmão, tutor ou pessoa responsável pela sua educação ou cuidados ou a ver com sua vida de casada

Passando ao sistema de regulamentação, utilizado na Alemanha e na Holanda, há plena regularidade do exercício da profissão de profissional do sexo, com todos os direitos inerentes a um contrato de trabalho convencional.

Tal sistema prima não só pela proteção dos direitos dos profissionais do sexo, mas também por questões de saúde pública, conforme leciona Luiz Regis Prado:

o sistema da regulamentação tem por escopo objetivos higiênicos, a fim de prevenir a disseminação de doenças venéreas e também a ordem e a moral públicas. Por esse sistema a prostituição fica restrita a certas áreas da cidade, geralmente distantes do centro, onde as mulheres sujeitam-se a um conjunto de obrigações como a de submeterem-se periodicamente a exames.19

Nesse sentido, a Holanda merece destaque como primeiro país a promover o pleno exercício de direitos da atividade de profissional do sexo, sob a argumentação de promover o fim da exploração de terceiros sobre as prostitutas e também em prevenir doenças sexualmente transmissíveis. Vale ressaltar que não existe somente uma concessão de direitos, mas também uma série de obrigações e condições, como o pagamento de tributos vinculados a atividade e a obrigatoriedade de realização periódica de exames médicos para a prevenção e possíveis identificações de patologias.

Na Alemanha, também há direitos trabalhistas, concedidos como a qualquer outra classe trabalhadora, como férias e seguro-saúde, assim como a assinatura da carteira de trabalho.

Merece destaque a transcrição do parágrafo 1º do Artigo 1º da Lei de Prostituição (LProst) criada no ano de 2002:

Artigo 1º (...)

§ 1º Realizada uma relação sexual mediante pagamento previamente acordado, este acordo fundamenta uma obrigação jurídica exigivel. O mesmo vale quando, no âmbito de uma relação negocial, uma pessoa, por determinado tempo e mediante contra-pagamento, se tiver colocado à disposição para a realização de uma relação dessa espécie.

É importante mencionar também algumas peculiaridades, como a proibição da atividade em certas áreas das cidades, cujo o desrespeito pode gerar penalização até aos clientes.

Merece destaque negativo a existência de proibição ao estrangeiro de fora da União Europeia requisitar visto de trabalho e residência com intuito de trabalhar como profissional do sexo, tal medida torna propícia a exploração por dependência de imigrantes por terceiros.

Ultrapassados estes dois modelos, resta o sistema proibicionista que é adotado, por exemplo, em algumas unidades federativas dos Estados Unidos, no qual são punidos tanto o ato de se prostituir quanto qualquer outro ato que faça parte da cadeia de trabalho da prostituta, promovido inclusive por terceiro (cliente, agenciador, proprietário de estabelecimento, etc.), como explica Mario Bezerra da Silva:

O Proibicionismo é adotado por pouquíssimos países, mas, como é o sistema vigente nos Estados Unidos, com sua poderosa indústria cultural, é muito conhecido. Quem nunca viu em filmes, por exemplo, prostitutas sendo levadas presas? Por esta visão, é ilegal prostituir-se, ou seja, o Estado decide o que a pessoa pode ou não fazer com seu corpo. É de difícil aplicação em certos casos. Um presente após uma noite de sexo pode ser entendido como pagamento pelo serviço sexual. Tanto a prostituta quanto o dono de casa de prostituição e até cliente são puníveis pela lei.20

Ressalva-se, nos Estado unidos que em alguns estados, como Nevada, o ato de prostituir-se não é considerado como crime.

2.2 Dos princípios constitucionais: valor social do trabalho, dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade e não discriminação

É notório que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, devendo todos os princípios que fazem parte do estado democrático de direito basearem-se, de forma a serem banhados por esta máxima. Por tal, ao esmiuçar seus conceitos e sua abrangência acaba-se por adentrar nos conceitos de vários outros princípios constitucionais básicos, a saber o Valor Social do Trabalho, Autonomia da Vontade, Não Discriminação e etc. Tal caráter é responsável por dar unidade aos princípios constitucionais, como leciona Alexandre de Moraes:

A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.21

Basicamente, o fato de ter condição humana é o que torna a dignidade inerente ao ser humano, devendo, portanto, o Estado e a sociedade respeitarem esse princípio e restando ao primeiro o dever de proteger e coibir qualquer violação.

Assim, leciona Chaves de Camargo:

[...] pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua inteligência e possibilidade de exercício de sua liberdade, se destaca na natureza e se diferencia do ser irracional. Essas características expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser. Não admite discriminação, quer em razão do nascimento, da raça, inteligência, saúde mental, ou crença religiosa.22

Logo, é perceptível que o conceito de dignidade da pessoa humana encontra uma ligação íntima com a ideia de liberdade, pois somente aqueles que são plenamente livres podem ter sua dignidade protegida. Pode-se, então, chegar a conclusão de que a ideia de dignidade da pessoa humana está em um conjunto de direitos que são inerentes a existência humana, que garantem mais que o ser físico, mas acabam por ser a causa de existir dos direitos humanos, como preceitua José Luiz Magalhães:

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Acreditamos, no entanto, que o direito à vida vai além da simples existência física. (...) O direito à vida que se busca através dos Direitos Humanos é a vida com dignidade, e não apenas sobrevivência. Por esse motivo, o direito à vida se projeta de um plano individual para ganhar a dimensão maior de direito (...), sendo, portanto, a própria razão de ser dos Direitos Humanos.23

Diante de tais conclusões, como pode-se falar em dignidade da pessoa humana sem que se tenha a liberdade para exercer sua sexualidade da forma que lhe convir? Como conceber esse princípio constitucional sem poder exercer livremente sua profissão? Como pensar em dignidade sem a autonomia da vontade? Como pensar no livre exercício de todos esses pilares principiológicos sofrendo seguidas discriminações por situações que só são consequências do exercício de seus próprios direitos?

Partindo para uma análise dos princípios constitucionais relacionados, iniciando pelo livre exercício profissional, faz-se necessária a menção ao Artigo 6º de nossa Carta Magna, que assegura o seguinte: “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.24

Pela leitura do dispositivo constitucional conclui-se que o legislador coloca o trabalho no rol dos direitos mínimos existenciais que são necessários ao exercício da dignidade da pessoa humana.

Continuando a análise de dispositivos constitucionais, traz-se à tona o Inciso XIII do Artigo 5º ditando: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.25

Conforme dita o artigo mencionado, o exercício de qualquer trabalho é livre, por tratar-se, o referido dispositivo, de norma de eficácia contida e de aplicação imediata. Isso significa dizer que não se deixa de contemplar ninguém com o direito, dada a generalidade do dispositivo, que não especifica quais os tipos de trabalho se enquadram.

Pode-se, portanto, afirmar que, assim como qualquer outro ramo de trabalho, segundo a Constituição, as profissionais do sexo têm pleno direito de exercer sua atividade, assim como devem ter garantidos seus direitos pelo Estado, sob pena de impedir, por ato de omissão, o livre direito ao trabalho, que faz parte do rol de direitos necessários ao mínimo existencial para que se garanta que todo ser humano seja respeitado. Essa omissão encontra-se bem demostrada nos ensinamentos de Francisco Lima: “faz parte (…) deste mínimo existencial e é complementado pelos demais direitos trabalhistas em espécie (salário digno, férias, repouso, proteção contra acidentes, (...) etc.)”.26

Em sequência, é preciso que seja respeitado o Princípio da Autonomia da Vontade contratual, que também deve reger as relações entre as profissionais do sexo e seus clientes, e consiste de forma sucinta na liberdade de contratar, conforme ensina Maria Helena Diniz:

o princípio da autonomia da vontade é o poder conferido aos contratantes de estabelecer vínculo obrigacional, desde que se submetam as normas jurídicas e seus fins não contrariem o interesse geral, de tal sorte que a ordem pública e os bons costumes constituem limites a liberdade contratual”.27

Assim sendo, conforme os ensinamentos da renomada doutrinadora, pode-se notar que a autonomia da vontade contratual, consiste basicamente na liberdade que vai desde a criação do contrato, escolher um outro contratante, fixar o conteúdo do contrato e regras para a prestação do serviço e também por óbvio a liberalidade de contratar ou não contratar, ou seja, na prática, a profissional oferece seu serviço com determinado preço e o cliente aceita, a partir dai encontra-se firmado um contrato de prestação de serviços temporário em que, a prostituta se compromete a prestar o serviço e o cliente se compromete em entregar determinado valor em pagamento.

No contrato firmado, se aplicam todos os princípios inerentes aos contratos, como função social e boa-fé, mas, mesmo que tudo isso se materialize na relação contratual, o fato de não haver normas jurídicas que regulem esse tipo de relação, faz com que a existência na informalidade seja desprovida de garantias e direitos, principalmente pela impossibilidade do exercício da coerção que é intrínseca a lei. Sendo assim, na prática, o contrato existe, mas o cumprimento das obrigações recíprocas, bem como demais atos e consequências oriundas dessa relação não gozam de proteção jurídica.

Ademais, deve-se frisar que o estado tem a obrigação de garantir a igualdade, bem como de promover a não discriminação em quaisquer esferas sociais mas, quando em omissão regulativa, acaba por promover o contrário, ferindo assim os próprios valores que tem a obrigação de proteger.

Ocorre discriminação quando há uma atitude que diferencie pessoas perante uma característica específica e diferente e resulta na destruição ou ausência de aplicação dos direitos fundamentais do ser humano, prejudicando um indivíduo no seu contexto social, cultural, político ou econômico. Nesse sentido expõe o Dicionário de Sociologia, organizado por Boudon, Besnard, Cherkaoui e Lécuyer:

Embora o termo implique apenas por si mesmo a faculdade de fazer distinções, ganhou em sociologia um sentido crítico. Designa as distinções feitas na vida social em detrimento de certos grupos, que são julgadas inaceitáveis pela maioria, porque violam as normas sociais e o princípio da igualdade perante a lei, ao mesmo tempo que certos subgrupos da população as justificam. (...)

O fato de se ter podido definir a discriminação social como a maneira de tratar desigualmente indivíduos iguais mostra até que ponto se trata de um conceito estreitamente ligado à sociedade moderna, que põe a igualdade no centro dos seus valores: nas sociedades fundadas nas diferenças de estatuto ou de casta, a discriminação é um conceito neutro, descritivo, desprovido da conotação pejorativa que lhe atribuímos nas nossas sociedades.28

Assim, tendo esse conceito sociológico bem frisado, é dever do estado mais do que coibir, mas também ter atitudes que não permitam que discriminações de qualquer natureza ocorram e, por tal, nossa Constituição Federal traz essa proteção de forma consistente, vedando as distinções prejudiciais e admitindo apenas discriminações positivas, que devem ocorrer no sentido de salvaguardar os direitos das minorias, como explica Alexandre de Moraes:

A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenças arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito.29

Absorvendo esses conceitos pode-se afirmar que qualquer distinção (com exceção das diferenciações positivas), incluindo discriminação com relação a profissão exercida, é indevida, sob pena de violação constitucional e, que é dever do estado cumprir e ter atitudes que coíbam e não permitam que o preconceito se perpetue.

Assim sendo, conclui-se que o estado, ao manter sua postura de omissão legislativa em todos os sentidos que envolvem o livre exercício do profissional do sexo, permite que a discriminação exista e se perpetue, a medida que concebe cada vez mais tais trabalhadores se encontrem sujeitos a agressões físicas e morais, e fiquem relegados a toda sorte de riscos contratuais e de saúde, alocando-os em uma espécie de segundo calão de trabalhadores, que não tem os mesmos direitos ou a mesma proteção dos demais. Ao omitir-se dessa forma, o estado fere dispositivos constitucionais, maculando gravemente o direito ao pleno exercício das atividades desses profissionais.

Assim sendo, é imperioso que se reconheça que os profissionais do sexo devem ter sua dignidade respeitada pela sociedade e garantida pelo estado. Para isso é preciso que sejam garantidas o direito ao livre exercício de sua profissão, a fim de que possam garantir sua subsistência, sendo necessário o efetivo respeito a autonomia da vontade com sua consequente positivação nesse âmbito, para que possam esses profissionais e seus clientes recorrerem, eventualmente, a tutela judicial quando de problemas no contrato de serviços, pois é essencial que todas as pessoas que exercem essa atividade ou usufruem de seus serviços sejam respeitadas e não discriminadas de nenhuma forma.

A negativa desses direitos por parte do estado e o desrespeito por parte da sociedade perfazem graves violações constitucionais e por consequência grande mácula ao Estado Democrático de Direito, que tem como maior fundamento a Dignidade da Pessoa Humana.

2.3 Do direito constitucional à saúde

O direito a saúde é direito básico das pessoas e, por tal, esse direito é consagrado em nossa Constituição, como assim expressa o Artigo 196. In verbi:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Nesse sentido, é fundamental que se destaque o caráter preventivo do direito a saúde, ou seja, essa garantia constitucional vai além do acesso ao tratamento médico, mas também a medidas que visem coibir doenças e tornar sua existência mais saudável, conforme leciona Henrique Monteiro Castro (2005) sobre o conceito dessa máxima:

Corresponde a um conjunto de preceitos higiênicos referentes aos cuidados em relação às funções orgânicas e à prevenção das doenças. Em outras palavras, saúde significa estado normal e funcionamento correto de todos os órgãos do corpo humano, sendo os medicamentos os responsáveis pelo restabelecimento das funções de um organismo eventualmente debilitado.30

Portanto, conclui-se que o direito a saúde é muito mais amplo do que simplesmente ter acesso a atendimento médico e medicamentos, mas também a condições que previnam doenças e constituam uma vida mais saudável a todas as pessoas. Seguindo essa lógica, é importante que seja frisado que um dos maiores problemas de saúde pública no mundo são as doenças sexualmente transmissíveis, que no Brasil possuem números alarmantes com relação as pessoas infectadas a cada ano, conforme informações divulgadas pelo Ministério da Saúde:

As doenças sexualmente transmissíveis (DST) são consideradas como um dos problemas de saúde pública mais comuns em todo o mundo. Em ambos os sexos, tornam o organismo mais vulnerável a outras doenças, inclusive a aids, além de terem relação com a mortalidade materna e infantil. No Brasil, as estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS) de infecções de transmissão sexual na população sexualmente ativa, a cada ano, são:

Tais números são preocupantes e revelam o risco à saúde das pessoas, além do impacto nos gastos do SUS para tratamento de todas as pessoas infectadas a cada ano.

Somando os dados estatísticos a omissão legislativa do estado resta por construído um ambiente perigoso e propenso a riscos a saúde aos profissionais do sexo e também a seus clientes.

Ao se omitir com relação a regulamentação dos profissionais do sexo, o estado deixa de promover a saúde dessas pessoas e de todos os usuários de seus serviços, ao passo que não tem como fiscalizar e obrigar o uso de preservativos e demais ações que eliminem ou reduzam os riscos de contágio de doenças venéreas. Nesse sentido, vale trazer novamente à tona em sede de direito comparado a Holanda, na qual a normatização da profissão permite que se possa ter ações desse tipo, indo inclusive além quando institui a obrigatoriedade de realização periódica de exames.

Assim, fica evidente a clara violação por parte do estado em relação ao direito constitucional à saúde, uma vez que a negativa de regulamentação impede que existam políticas públicas mais eficientes no combate as doenças sexualmente transmissíveis. Tal constatação leva à conclusão de que o Estado não só não protege essa parcela da população, mas também contribui, de forma significativa, para que os que fazem parte dessa relação não tenham o acesso ao direito a saúde em sua forma consolidada, já que se tornam carentes de campanhas eficazes e outros mecanismos de prevenção a doenças.

Merece menção a condição atual da saúde pública brasileira, que é alarmante. De acordo com dados do PNAD 2011,32 cerca de 190 milhões de pessoas fazem uso do Sistema Único de Saúde que, sendo caótico, tem como das principais causas da má qualidade a demanda de serviço muito superior a mão de obra qualificada e a instalações, equipamentos e materiais necessários aos atendimentos e tratamentos.

Ao passo que o sistema de saúde é insuficiente, deve o estado agir em duas frentes: A melhora geral da infraestrutura, com o aumento de profissionais, instalações e demais necessidades ao atendimento (o que não faz parte diretamente do questionamento aqui levantado) e buscar formar de reduzir essa demanda, através de ações de prevenção, conforme estabelece o Direito a Saúde, constante da constituição e já mencionado em momento anterior.

Ao não regular a profissão, as relações contratuais e tudo que envolve as atividades dessas profissionais o Estado não promove as ações necessárias a prevenção de doenças que esse grupo específico necessita, o que contribui diretamente para aumentar a demanda pelos serviços futuros do SUS, agravando mais ainda a situação da saúde pública e produzindo impacto negativo direto em relação a qualidade da assistência do Sistema Único de Saúde a todas as pessoas, fazendo com que, indiretamente, essa ausência legislativa contribua para o desrespeito ao Direito Constitucional a Saúde em relação a toda sociedade brasileira.

2.4 Do cabimento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

Trata-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão de um mecanismo constitucional que visa a suprir a inércia do legislador em relação à criação de lei sem a qual deixa de ter eficácia determinado dispositivo constitucional. Também é utilizada quando o administrador público não toma outras providências necessárias para efetivar norma da Constituição. É fixada no texto constitucional, no § 2º do Artigo 130:

Art. 103- Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

(...)

§ 2º- Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.33

Nesse sentido disserta Canotilho:

O legislador não faz algo que positivamente lhe era imposto pela Constituição. Não se trata, pois, apenas de um simples negativo ‘não fazer’, trata-se, sim, de não fazer aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado.34

Dada a grande amplitude de temas abordados na Constituição, várias normas não conseguem produzir seus efeitos sem que haja leis que as regulamentem. Então, para que se combata tal omissão, o instrumento cabível é a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, que objetiva provocar o judiciário a fim de que se reconheça a demora da produção da lei regulamentadora.

Nesse diapasão, a situação jurídica dos profissionais do sexo, de ausência de regulação que permita que se efetivem direitos constitucionalmente garantidos a todos, a saber o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o da Autonomia da Vontade, o do Livre Exercício Profissional, a Não Discriminação e o Princípio do Direito a Saúde, configuram um caso grave de omissão reguladora, que não só não permite que direitos fundamentais sejam garantidos a determinado grupo (omissão parcial) mas também faz com que se perpetuem situações que ferem princípios garantidos em nossa Carta magna. Na prática o estado acaba por agir como verdadeiro promovedor de atos inconstitucionais.

Assim, restando por configurada a omissão inconstitucional, faz-se, não só cabível, mas sim necessária, de forma urgente, a propositura de Ação de Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, a fim de que se estabeleça a normatização para o pleno exercício dos profissionais do sexo.

2.5 Aspectos penais

É sabido que a função do direito penal é a proteção dos bens jurídicos que a sociedade julga como mais importantes. Essa proteção se dá por meio da proibição de que se cometam determinados atos com a consequente cominação de punições ao descumprimento dessas determinações.

Sendo princípios do direito penal o da intervenção mínima e o da adequação social, que determinam que somente condutas relevantes sejam tratadas como delitos e que só se deve recorrer ao direito penal como último recurso após a falha de todos os outros mecanismos de controle social, conclui-se que a criminalização só deve ocorrer em casos estritamente necessários nos quais todas as opções de solução que fogem a pretensão punitiva tenham sido tentados e se mostrado ineficazes, como ensina Cesar Roberto Bitencourt, “o Direito Penal tipifica somente condutas que tenham uma certa relevância social; caso contrário, não poderiam ser delitos […] antes de se recorrer ao Direito Penal deve-se esgotar todos os meios extrapenais de controle social”.35

É preciso que seja levada em consideração a idade do atual Código Penal, datado de sete de dezembro de 1940, para que se possa entender que o contexto social da época de sua edição era completamente diferente e primava, muitas vezes, por valores diferentes, ou até, em alguns casos, pelos menos valores de hoje, mas em uma intensidade muito maior.

Nesse sentido, faz-se necessário que se traga à tona de forma analítica a teoria da adequação social, elaborada por Hans Welzel, que, no âmbito penal, quer dizer que um indivíduo não deve ser punido por conduta a qual a sociedade em que se está inserido aceite, ou seja, as condutas toleradas pela sociedade, mesmo que descritas como crimes, não são dotadas de tipicidade e, por tal, não devem ser passíveis de punição. Como ensinam Paulo José Teotônio e Silvio Henrique Teotônio:

O princípio da adequação social, então, exclui, desde logo, a conduta do sujeito como inadequada ao modelo legal, retirando sua reprovação do âmbito de incidência do tipo, situando-a entre os comportamentos atípicos, ou seja, como comportamentos normalmente tolerados, que não constituem crimes, apesar de descritos como tal.36

Com base nessa teoria, em 2005, através da Lei n 11.106, foram revogados os crimes de sedução, rapto, rapto consensual e adultério, que se tornaram atos que não mais mereciam a tutela do direito penal, uma vez que caíram em desuso dada a não efetividade e a falta de necessidade da proteção ao bem jurídico tutelado, que, segundo o título do capítulo no qual esses crimes encontravam-se enquadrados (Dos Crimes Contra os Costumes), seriam os costumes.

Merece menção o fato de o legislador ter, em 2009, através da Lei 12.015 alterado a nomenclatura do capítulo VI de “Dos Crimes Contra os Costumes” para “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”, numa evidente tentativa de alterar o bem jurídico protegido pelas normas elencadas nesse capítulo, qual sejam os crimes elencados nos artigos 228 a 230.37

Assim sendo, e passando a análise individual, é importante trazer a tona o entendimento de Nucci, sobre o delito contido no Artigo 229 do Código Penal, acerca da manutenção de casa de prostituição:

Consoante se verifica, a conduta denunciada, apesar de estar incriminada no Código Penal, há muito tempo, deixou de ser considerada crime no âmbito da jurisprudência, por ser socialmente aceita. Tanto passou a ser irrelevante para o Direito Penal a manutenção de casa de prostituição, que existem estabelecimentos dessa natureza em praticamente todos os municípios do país, fato que é conhecido da população e das autoridades policiais e administrativas. Ademais, a penalização da conduta em nada contribui para o fortalecimento do estado democrático de direito ou para o combate à prostituição. Ao contrário, se constituiu tratamento hipócrita apenas de casos isolados, normalmente marcado pela participação de pessoas de baixa renda, diante da prostituição institucionalizada, amplamente anunciada com rótulos como "acompanhantes", "massagistas" e outros, inclusive pelos meios de comunicação social.38

Como infere-se do entendimento de tal doutrinador, no caso de delito contido no Código Penal em seu Artigo 229, deve ser aplicada a teoria da adequação, uma vez que a sociedade e o Estado, conhecem e toleram a conduta, de tal forma que a tutela penal perde completamente seu sentido, esbarrando no princípio da intervenção mínima do direito penal, já que a conduta é conhecida e amplamente tolerada, agindo o estado com hipocrisia, ao passo que proíbe que a manutenção de local destinado a prática das profissionais do sexo, mas não proíbe a atividade desempenhada pelas prostitutas e nem mesmo a vinculação de anúncios dos serviços em sites, jornais e similares.

Ademais, a manutenção de casa destinada à prostituição enquadra-se perfeitamente na teoria de Welzel, pela qual, mediante a transigência social, não se deve tratar tal atitude como ato passível de punição penal, como pode-se notar dos constantes julgados na atualidade:

Casa de Tolerância em zona do meretrício: inexistência de crime – STF: Casa de prostituição. Exploração em Zona do meretrício. Inexistência de crime. Concessão de habeas corpus. Inteligência do art. 229 do Código Penal. A exploração de casa de tolerância em zona de meretrício não constitui crime.39

CÓDIGO PENAL. ART. 299 DO CP. MANTER CASA DE PROSTITUIÇÃO. ATIPICIDADE. A manutenção de casa de prostituição com conhecimento das autoridades, sem imposição de restrições, desfigura o delito previsto no art. 229 do CPP. Conduta que, embora prevista como ilícita, é aceita pela sociedade atualmente. Absolvição mantida. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ART. 244-A. SUBMISSÃO DE ADOLESCENTE À PROSTITUIÇÃO. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. EXISTÊNCIA DO FATO E AUTORIA. Submissão de adolescentes, com 16 anos de idade, à prostituição e consumo de bebidas alcoólicas em uma boate de prostituição. Apesar de existirem indícios de autoria, não há prova suficiente de que os acusados submeteram as vítimas à exploração sexual, nos termos do fato narrado na inicial, impedindo a condenação. Sentença absolutória foi a melhor solução. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ART. 243. FORNECER BEBIDA ALCOÓLICA PARA MENORES. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O ART. 63, I, DA LEI DAS CONTRAVENCOES PENAIS. EXISTÊNCIA DO FATO E AUTORIA. Em razão da distinção estabelecida pelo legislador, no art. 81 do ECA, apartando bebidas alcoólicas dos produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, o fornecimento daquelas a menores não caracteriza o crime do art. 243 do ECA, mas a infração do art. 63, inc.I, da LCP. APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO IMPROVIDO E APELO DEFENSIVO PROVIDO PARA DECLARAR EXTINTA A PUNIBILIDADE DOS RÉUS QUANTO À CONTRAVENÇÃO DO ART. 63, I DA LCP. UNÂNIME.40

Por fim resta por óbvio a perda total sentido de ser da norma contida no Artigo 229 do Código Penal, pela teoria da adequação social que, conforme demonstrado nos julgados, denota que a conduta de manter casa de prostituição é amplamente tolerada pela sociedade e pelo poder público, perdendo, portanto, o sentido de existir também a luz do princípio da intervenção mínima, restando por necessária a descriminalização como medida de adequação da legislação a sociedade na atualidade.

Sobre o autor
Manuel Flavio Saiol Pacheco

Pesquisador, Advogado e funcionário público, graduado em Direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Campus Três Rios. Atualmente é mestrando em Justiça e Segurança, pela Universidade Federal Fluminense. É Pós Graduado em Direito Administrativo, Direito Constitucional e Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PACHECO, Manuel Flavio Saiol. Da necessária (e viável) regulamentação da profissão do sexo: já chega de jogar pedra na Geni!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5743, 23 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72788. Acesso em: 23 dez. 2024.

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