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A popularização dos direitos humanos

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Agenda 13/09/2005 às 00:00

            Será que se pode, em presença de um movimento fechado, sem rumo constante, ainda falar de um progresso?

"A montanha mágica" – Thomas Mann


            Muito se tem debatido a respeito da efetividade dos direitos fundamentais e da necessidade da previsão, nos Pactos Fundantes, de princípios e regras capazes de ressonar, no mundo concreto, seu conteúdo jurídico superior.

            O estudo ora proposto visa realizar um recorte mais específico em aludida efetividade, dando realce não exatamente aos direitos fundamentais dentro da concepção de que são direitos humanos internalizados no direito posto dos países, mais especificamente em suas Constituições, mas à apreensão do conceito dado a direitos humanos a partir dos organismos internacionais, seguindo sua leitura pelas organizações governamentais e não governamentais e especialmente a conotação popular – isto é, como são recepcionados os direitos humanos pelas pessoas, pelo povo (aqui definido como o destinatário das prestações positivas e das abstenções que o gozo de tais direitos exige) [01] – e, nessa linha de prestigiar o domínio popular dos direitos humanísticos, conferir de qual modo com eles se relacionam e devem se os operadores do direito.

            Trata-se de realizar um exame da efetividade dos direitos humanos (DH) à luz de sua compreensão e assimilação pelos diversos setores da sociedade, num viés de que a incorporação pelas pessoas da idéia de que são titulares de prerrogativas básicas é uma das alavancas, senão a principal, da franquia a todos aos direitos englobados na concepção maior "direitos humanos" e, logo, da respectiva observação e cumprimento de que são merecedores.

            Nessa linha, sem insinuar que o Estado deixe de exercer seu papel de garantidor dos direitos essenciais à cidadania, há, sim, a proposição de que a sociedade é mola propulsora da sua própria transformação e que pertinentemente aos direitos humanos, com o fito de provocar o Estado a cumprir seus papéis, mostra-se indispensável a conscientização de todos sobre tais direitos e a isso se chama "Popularização dos direitos humanos".

            A senda desafiadora, então, conduz à idéia de que a cooptação dos detentores dos direitos humanos, a conscientização de sua titularidade, é ângulo merecedor de reflexão.

            A aceitação e a fluidez dos direitos humanos pede a sua dominação, ou melhor, a sua "popularização" e bem por essa é que transitarão com maior atenção e entendimento questões como, por exemplo, ações afirmativas e as respectivas cotas, bem como a igualdade material ou substancial.

            Dir-se-á: mas a proposta se trata da já propalada e repisada "efetivação de tais direitos"!

            Sim e não!

            É uma efetivação no sentido de que compreendidos os direitos humanos, apreendido seu sentido e incorporado ao senso comum, além dos instrumentos de efetividade ter-se-á sua cobrança, o gozo dos direitos humanos.

            Numa tentativa de diferençar afirma-se: há uma efetividade formal traduzida nos mecanismos legais garantidores dos direitos humanos e há uma efetividade material ou popular ou prática [02]quando estes direitos são inseridos no consciente coletivo.

            Para alcançar essa esfera efetivadora substancial dois questionamentos:

            I - Quando se verificará o esperado tratamento igual ou eqüitativo entre as pessoas sem uma demanda ou cobrança específica da igualdade material, por exemplo?

            II - Quando se constatará, consoante diz Sandro Cesar Sell, que a igualdade "deriva sim de uma opção política aceita nos Estados de direito contemporâneos de que construir uma sociedade mais igualitária é algo desejável" ? [03]

            As respostas aos "quandos" reclamam, por óbvio, um desenho histórico dos direitos em pauta conforme ensina Bobbio no seu A era dos direitos.

            Assomando, entanto, ao aspecto temporal, iteramos o aspecto real, sua substanciação, isto é, a cultura do povo em exercitar seus direitos, reclamá-los, respeitá-los e daí sim imaginar, esperar, mesmo, uma consciência igualitária que independa de fórmulas especiais e artificiais, ou de outra maneira, que as justifique (igualdade material), havendo chancela geral para sua aplicação no extrato social necessitado.

            A vereda perseguida imporá a visitação a conceitos atualmente em evidência no diálogo jurídico: são as concepções ligadas a quem é a pessoa humana, ou o que é ser digno, livre, igual, cidadão, ter saúde, educação, cultura, lazer, projeto de vida, etc.

            Não se trata, entretanto, de ignorar a fundamentação teórica dos direitos humanos, porque positivados, com vistas a vê-los praticados, efetivados, mas, isto sim, deixando de lado a preocupação temporal emoldurada na Era dos direitos [04], buscar conferir se os fundamentos e realidade compartilham da mesma fonte.

            A resistência não é sobre a concepção histórica, mas à sua baldada condição, pois diz o próprio Bobbio que os direitos fundamentais "nascem quando devem ou podem nascer" [05] e nessa perspectiva supera-se o discurso conceitualista e parte-se à aplicação do direito nascido. Mais do que contrariedade ao pensador, trata-se de ponto de apoio à exortação da tese.

            Em caso de aferição entre a realidade e a proposição deôntica, bastará o efetivismo jurídico já pregado, e na hipótese negativa, impenderá fazer no estado da arte um corte epistemológico e rebuscar as raízes dos direitos em jogo na pessoa humana real e não na abstrata e isso se realiza com a popularização dos direitos humanos, na consideração de que uma nova abordagem e cultura reagirá com o titular dos interesses, informando, despertando e provocando sua fruição.

            Quer-se, com fincas em Bachelard quando trata da prova científica, dizê-la ambígua, porque se afirma tanto na experiência como no raciocínio: "ao mesmo tempo num contato com a realidade e numa referência à razão". [06]

            Para Bachelard, então, a fenomenologia tende a ser apreciada sob a "dupla rubrica do pitoresco e compreensível", ou, vertendo para nossa linguagem, há uma polarização epistemológica entre o popular e o racional.

            Cuida-se de seguir na busca do verdadeiro pensamento científico que "lê o complexo no simples, diz a lei a propósito do fato, a regra a propósito do exemplo". [07]

            Exemplificativamente pode-se utilizar a infanto-adolescência para a defesa da idéia.

            É sabido que o artigo 227 da Constituição Federal estabelece que se deve dar absoluta prioridade nas ações familiares, sociais e estatais destinadas ao melhor interesse das crianças e adolescentes, o que, aliás, deflui da Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 e da Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989.

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            Esta regra superna foi regulamentada pela Lei 8069/90, chamada de Estatuto da Criança e do Adolescente, que reproduz princípios, explicita-os em variegadas normas e estabelece ferramentas para que a intitulada Doutrina da Proteção Integral seja observada.

            Nada obstante, porém, a previsão constitucional e legal e a existência de alguns programas, algumas iniciativas, em verdade continuam aspráticas assistencialistas e não emancipatórias, havendo evidente preconceito quanto aos menores-excluídos-despossuídos [08], aos quais se atribui um perfil marginal e uma vocação à delinqüência (com proposições de políticos e juristas para a diminuição da idade de imputabilidade penal, que é de 18 anos conforme o §8º, do artigo 227, antes referido, que só não foi alterado mediante o poder constituinte reformador porque defende-se ser tal regra cláusula pétrea).

            Ora, a infanto-adolescência é categoria reconhecidamente acolhida pelos compromissos de direitos humanos e possui legislação especializada, com medidas pontuais inclusive e apesar disto, apesar da internalização dos direitos humanos, ou seja, de sua positivação na Constituição Brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na própria ratificação pelo Estado Brasileiro da Convenção de 1989, há, e no próprio meio jurídico, profunda incompreensão das razões, das justificativas da legislação protetiva.

            Trata-se de ausência de objetivos coletivos [09], de desconhecimento das contingências e vicissitudes da comuna, dos fins e causas das políticas de defesa dos jovens, tudo à míngua de maior esclarecimento pelo Estado e aculturamento dos operadores jurídicos.

            Sérgio Luiz Kukina vê no Estatuto da Criança e do Adolescente "feliz exemplo das denominadas ‘ações afirmativas’" anotando, não obstante, que o atingimento das metas desse microssistema "reclama, intuitivamente, um firme compromisso de solidariedade entre todas as instituições oficiais e privadas, profissionais liberais, educadores, religiosos, familiares, enfim, todos os membros da comunidade, operadores jurídicos ou não... ", isto é, exige a permeabilização dos DH da infanto-adolescência por todo o tecido social, pois só assim serão praticados, uma vez que foram popularizados. [10]

            Pode-se argumentar, em reforço à idéia de que há incompreensão sobre os direitos humanos, com a manifesta aceitação geral de determinados interesses ou prerrogativas e nessa via destaca-se que nas relações de consumo dá-se o fenômeno oposto ao da infância e juventude, visto que este segmento a todos interessou, economicamente falando, informar e se informar.

            Sabidamente a linguagem patrimonial é tradicional e de mais simplista apreensão e eis aí a razão do relativo sucesso do direito consumerista, mas não se pode efetuar apenas as tarefas que individualmente atendem aos reclamos cotidianos, há aquelas de caráter coletivo, como a assimilação dos direitos humanos.

            As questões trabalhistas foram, igualmente, assimiladas pelo social, foram "carnavalizadas", popularizadas, pois além de veicularem idéias de interesse à grande camada proletária, — certamente desinteressantes para o estamento patronal, que, de qualquer modo, tamanho seu apelo popular, não podia ignorá-las —, vieram municiadas de instrumentos jurídicos aptos a dar vazão célere a sua implementação. Significando dizer: nos setores consumerista e trabalhista a compreensão popular foi imediata, tudo graças ao seu sentido universal, e, mais do que isso, porque a conduta jurídica esteve voltada a concretizá-los.

            A linha de estudo pretendida assenta-se nesta preocupação.

            A alegoria de "Prometeu arrebatador do fogo", depois agrilhoado no Cáucaso exatamente por ter afastado o homem das trevas e decorrendo tal sanção, imposta pelos olímpicos deuses, por da ignorância o titã retirar as pessoas, calha à fiveleta na proposição de difundir o jurídico senso dos direitos humanos e não somente aos operadores do direito.

            Guarda coerência, aliás, tal cenário, com o pregado por Karl Engish em sua Introdução ao pensamento jurídico quando observa que todos estamos sob o direito. Nas suas palavras:

            Quando o leigo se representa o jurista e o seu "ofício" pensa-o como um homem que se ocupa de leis. Mas, ao pensar assim, o certo é que apenas está a ver uma das faces da realidade. Até o leigo sabe já que o prático do Direito se ocupa da vida (gn). E o leigo sabe ainda mais: ele sabe que, para todo e qualquer indivíduo, o Direito é uma força que tem incidência sobre seu viver (gn)". [11]

            Dentre outros, há o desafio de afastar a estigmatizante função atribuída aos operadores jurídicos de serem servos do formalismo.

            Há que se negar, de tal modo, a visão dada por Erasmo aos jurisconsultos, tidos pelo pensador como os "mais vaidosos dos homens", comparados a Sísifo e sua perenal pena de empurrar um rochedo montanha acima, para vê-lo imediatamente rolar monte abaixo, pois "amontoam textos e mais textos de leis em assuntos que nada têm a ver a com elas". Reclama do culto do jurista ao mero discurso e, portanto, do olvido da realidade pelo meio jurídico [12]

            Alfim, útil questionar como seria a "popularização" dos direitos humanos.

            Os operadores jurídicos passariam a palestrar na ágora para o povo?

            Colheriam da massa discípulos e caminhariam pela pólis debatendo a transcendentalidade de tais interesses?

            Apesar de ser tentador imaginar que quem domina o estado da arte pudesse transmiti-la diretamente àquele para a qual é desenvolvida a ciência, dando luzes, mesmo, qual o titã Prometeu, à quem ainda não vislumbra o caminho de sua cidadania, trata-se, aqui, de proposta bem mais singela.

            Com efeito, seguindo o mesmo vetor apontado por Flávia Piovesan de que o Estado Brasileiro vem se alinhando à proteção dos direitos humanos e vem superando a postura de aceitar, mas não praticar as garantias internacionais de proteção, pretende-se que os operadores jurídicos despertem a essa assimilação do Estado quanto aos direitos humanos, posto ser sua responsabilidade primária, e a perpassem para a prática jurídica cotidiana, com a aplicação, especialmente, dos atos ratificados [13].

            Busca-se do mundo jurídico, quanto aos direitos humanos, não deixá-los isolados ou confinados na língua das leis, mas conduzi-los a uma perspectiva de materialização. Melhor dizendo, a uma efetividade prática dos Direitos Humanos e, para tanto, apontando, necessariamente, ao universal e popular, opondo-se a "todo caráter ideal abstrato" [14].

            Bobbio chama de especificação a tendência consistente na "passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma ulterior determinação dos sujeitos titulares de direitos", a qual é a ante-sala da efetivação discursiva, isto é, do reclamo pelo igualitarismo material, e este prepara o que se defende, que é o efetivismo prático ou a popularização dos direitos humanos. [15]

            Este autor nos ensina que:

            1º - A pessoa humana buscou liberdade: agir com autonomia, sem interferência, especialmente do Estado, e dos demais indivíduos;

            2º - Definida a liberdade, passou-se a buscar o seu titular, donde defluiu a irmã gêmea desse direito mor — a igualdade — e, assim, detectou-se a titularidade — o cidadão livre — representação pragmática do abstrato sujeito "homem", especificado a partir da idealização libertária dos séculos XVII e XVIII. Dessa fermentação apurou-se a concepção dos sujeitos titulares de direitos, decompondo-se o gênero humano e as várias fases da vida, inclusive quanto "à diferença entre estados normais e estados excepcionais na existência humana";

            3º - Quanto ao gênero, definiu-se relativamente entre as diferenças entre a mulher e o homem;

            4º - No pertinente às etapas da vida, "foram-se progressivamente diferenciando os direitos da infância e da velhice, por um lado, e os do homem adulto por outro";

            5º - "Com relação aos estados normais e excepcionais, fez-se valer a exigência de reconhecer direitos especiais aos doentes, aos deficientes, aos doentes mentais, etc";

            E nesse crescer de prerrogativas humanas refere à dificuldade da proteção efetiva aos direitos do homem "à medida que as pretensões aumentam".

            Dá-nos, entanto, sinalização ao pensar ora proposto, ao afirmar que a proteção dos direitos humanos no interior de um Estado de direito é mais fácil de ser buscada do que em esfera internacional, e isto vem ao encontro da proposição de popularização dos Direitos Humanos, a se dar primeiramente em cada Estado e a partir das condutas de seus cidadãos, em relevo dos operadores jurídicos. [16]

            Bobbio averba, ainda, que o progresso moral da humanidade é mensurado por atos, pela superação do verbo, eis que "de boas intenções, o inferno está cheio". [17]

            Não se discorda, anote-se, da idealização de Bobbio do ausente fundamento absoluto dos direitos dos homens, entrementes, e usando de sua expressão eficácia prática [18], basta, a este momento, das concepções já sedimentadas sobre os Direitos Humanos, das atenções quanto aos imperativos categóricos e cabe agir para tornar plásticos e práticos, efetivamente eficientes, os direitos humanos.

            Deseja-se, alfim, perseguindo a ensinança de Bobbio, vislumbrar nas dobras sociais, seja na esfera técnica, e no caso em desenvolvimento — a jurídica —, seja na esfera leiga, popular, a concretude da formação do Estado moderno (ainda), que é a inversão "da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos dos cidadãos", algo que, quanto aos direitos humanos, no sentido de que deles se servem as pessoas, não vem nesse momento histórico de ocorrer, isto é, não se atenta à observação de que compreender a sociedade significa "partir de baixo, ou seja, dos indivíduos que a compõem, em oposição à concepção orgânica tradicional, segundo a qual a sociedade como um todo vem antes dos indivíduos". [19]

            Sugere-se um desprendimento dos "remotos resíduos místicos e dialéticos", florescendo "um idealismo moral, independente de dogmas religiosos e apriorismos metafísicos; os ideais da perfeição, fundados na experiência social, e evolutivos como ela própria, constituirão a íntima conexão de uma doutrina de perfetibilidade indefinida, propícia a todas as possibilidades da elevação humana". [20]

            Há que se formar um ideal de Direitos Humanos, pautado no indispensável exemplo e na conduta do mundo jurídico, pois como refere Ingenieros:

            "Os ideais podem não ser verdades: são crenças, Sua força se estriba em seus elementos afetivos; influem sobre nossa conduta, na medida em que neles cremos. Por isso, a representação abstrata das variações futuras, adquire um valor moral: as mais proveitosas para a espécie são concebidas como aperfeiçoamento" [21].

            Tudo se resume, enfim, em aculturamento através da educação: auto-educação humanística dos operadores jurídicos e educação do destinatário do direito pelo exemplo e pela respectiva cooptação.

            Oliveira Ascenção endossa este posicionamento quando descreve o papel do jurista:

            ... a ordem jurídica não é uma estrutura estática e acabada, mas uma ordem evolutiva, uma resposta diferente a cada a cada nova situação social. O jurista tem de ser o agente desta incessante actuação da ordem jurídica, sabendo distinguir o que deve fazer-se e o que tem de morrer, porque contrário à ordem essencial da sociedade. A liberdade de repudiar equilíbrios actuais em nome de uma ordem mais alta é característica última do verdadeiro jurista e missão indeclinável que lhe cabe desempenhar em todas as épocas históricas. [22]

            Há uma certa timidez no campo dos direitos humanos quanto à sua compreensão, quanto à influência dos organismos internacionais em relação aos países signatários dos diversos atos de direitos humanos, quanto à validade destes direitos se incorporados no normativo pátrio, quanto à sua dignidade na constelação jurídica interna dos Estados e quanto e especialmente à sua introjeção pela sociedade e a busca desta de exercitá-los.

            Percebe-se uma ausente percepção da validade dos direitos humanos pelas forças jurídicas (função judicial, advocacia, Ministério Público, polícia) e políticas, ou, muita vez, há a resistência de aplicar no cotidiano tais direitos, por ameaçar hierarquias e grupos sedimentados, tudo em negação a relevantes setores sociais como a família e a comunidade e forjando, como refere Roberto DaMatta, um sistema dual:

            "de um lado, existe o conjunto de relações pessoais estruturais, sem as quais ninguém pode existir como ser humano completo; de outro, há um sistema legal, moderno, individualista (ou melhor: fundado no indivíduo), modelado e inspirado na ideologia liberal e burguesa". [23]

            É um conflito diagnosticado pelo antropólogo entre a igualdade (relações pessoais estruturais: família e vida comunitária) e a liberdade (o indivíduo e suas ações), crise ou choque que não deveria ocorrer, posto nos princípios fundantes do sistema jurídico brasileiro grassarem a dignidade da pessoa humana, a cidadania e os direitos fundamentais, que dão estrutura à ordem normativa e mitigam, senão afastam, o perfil burguês-liberal indicado.

            A principiologia constitucional brasileira recomenda compatibilizar individual e coletivo, pois que acolhe a dinâmica dimensional dos direitos humanos, expressos pelo menos nas três reconhecidas gerações, que pululam em diversos dispositivos da Carta Magna, além de permitir sua ampliação e releitura através da influência dos compromissos internacionais de Direitos Humanos, consoante se infere dos §§2º e 3º, do art.5º, da Constituição Federal e sua interpretação pelas cortes superiores pela franquia aninhada nos artigos 102, III,b e 105, III, b, ambos do mesmo Estatuto Superior. [24]

            Embora se concorde com DaMatta de que nossa práxis jurídica conduz à afirmação de "obra de quem tem de se haver diretamente com as leis de instituições impessoais do Estado na sua lógica jurídica que ‘não pode parar’ e tem razões que o coração deve desconhecer", tal ocorre mais pela não utilização, por exemplo, dos direitos humanos, resultado do hábito malfadado de se ignorar os valores éticos-jurídicos norteadores de nosso sistema, do que pela inexistência de regras que valorem o humano e sua centralidade como destinatário das normas. [25]

            Com o mote "diferente, mas juntos", DaMatta procura romper com modos convencionais de investigação, como a questão temporal, afirmando que "mesmo numa sociedade historicamente determinada, se podem encontrar valores, relações, grupos sociais e ideologias que pretendem estar acima do tempo". Do mesmo modo se afirma a existência de valores e relações que não são compreendidas pela neutralidade de nosso direito tradicional, pautado na res ou na pessoa abstrata. [26]

            Busca-se demonstrar que somente com a superação do mito patrimonialista e com a detecção de que o direito é ferramenta emancipatória das gentes, obteremos um sistema jurídico apto a tocar a realidade e servir para viabilizar liberdade com igualdade, numa expressão social onde as diferenças coexistam, dentro, então, do ideal de justiça que pode ser traduzido na frase "diferentes, mas juntos", com recusa ao formalismo retórico da igualdade, que somente forma "iguais, mas separados".

            Almeja-se, finalmente, à semelhança do que foi chamado de "carnavalização" dos costumes por Mikhail Bakhtin a partir de um estudo da obra de Rabelais, referenciar a "popularização dos direitos humanos".

            Num exame feito do carnaval no período pré a médio-renascentista, conclui o russo que o carnaval é o locus comum onde se manifesta a ambivalência, "em que o ator é também espectador", pois não é "resultado do mundo oficial", "as pessoas são o carnaval, e o mundo oficial, como todo o resto, está sujeito a seus rituais e a suas leis ¾ a Igreja assim como a Coroa". Trata-se da "hilaridade vivida por todos" e este "riso... abraça tanto a morte... quanto a vida" [27].

            A alegoria de Bakhtin vem demonstrar que o carnaval é onde se encontram todas as realidades humanas e neste ponto defende-se que a popularização é a realidade dos direitos humanos, num sentido mais literário é a "carnavalização dos direitos humanos". Pertencem a todos, pertencem a qualquer estamento social ou oficial e devem ser apropriados por toda a sociedade, seja na perspectiva dos cidadãos em face do Estado, seja no quadrante de compreender que a sociedade é a somatória das pessoas e do Estado e, assim, no que relaciona aos direitos humanos, não ocorrem as distinções de castas ou classes sociais, todos transitam e são titulares de direitos humanos e é exatamente através deles que exsurge a igualdade materializada, ora na ausência de distinções, ora na constatação de que diferenças existem.

            Colhendo de Bakhtin esta concepção de popularização, ou melhor, de popular, anota ele de sua fonte inspiradora — Rabelais —, que a sabedoria ao alcance de todos o francês buscou nos refrões, nos provérbios, na boca dos simples e dos loucos. E é isso que se procura com o jurídico em geral, seu apego e interpenetração com as fontes populares.

            Romper com o fetiche positivista [28] e propor imagens "hostis a toda perfeição definitiva, a toda estabilidade, a toda formalidade limitada, a toda operação e decisão circunscritas ao domínio do pensamento e à concepção do mundo".Um rompimento, um desfazer-se das exigências "profundamente arraigadas, a revisão de uma infinidade de noções". [29]

            A cultura humanística possui um referencial a ser utilizado, um fim e unidade na pessoa humana e por isso mesmo não está adstrita a ritos e cultos "oficiais" e os operadores do direito devem perceber que esse "oficial", ou de outra maneira, "usual", sequer, por vezes, se aproxima da demanda da população, nada sabe da cultura popular da praça pública [30] onde estão os destinatários do jurídico.

            Há uma dualidade a ser desfeita: de um lado temos o mundo oficial, das fórmulas e do outro o real das pessoas. A meta é popularizar o oficial ou oficializar o popular, compatibilizando as classes sociais entre si e em relação ao Estado com o ponto comum de todos estes estamentos: o humanismo.

            Nessa caminhada, a par de conceituar direitos humanos, há de aprender a distinção dos diversos compromissos (declarações, convenções, pactos) e suas conseqüências para os Estados compromissários, e, de igual modo perceber a extensão ideológica das regras constitucionais ligadas à matéria (em especial o artigo 1º, III, 4º, I e 5º, §§2º e 3º) e forjadas na idéia de direitos humanos (arts.5º,6º, 227, etc.), culminando com uma ampla reflexão sobre a "popularização dos direitos humanos", alvitrando-se o domínio destes direitos pela sociedade e dessa "dominação" legítima avultando a sua materialização nos diversos setores, o que redundaria ou redundará na sua efetivação, porém metajurídica, além da jurídica, popular.

            A meta ansiada, é merecedor timbrar, vem ao encontro do que lineado pelo Programa Nacional de Direitos Humanos II, de 2000, que no sentido da assimilação dos Direitos Humanos assim estabelece:

Sobre o autor
Alberto Vellozo Machado

promotor de Justiça no Paraná, mestre em Direito pela UFPR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Alberto Vellozo. A popularização dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 802, 13 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7285. Acesso em: 24 dez. 2024.

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