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A síndrome da mulher de potifar e o depoimento especial

Criminologia

Agenda 28/03/2019 às 18:12

Aborda a síndrome da mulher de Potifar e a utilização do mecanismo do depoimento especial como forma de controle quanto ao erro judiciário proveniente da denunciação caluniosa.

 

 

 

A SÍNDROME DA MULHER DE POTIFAR E O DEPOIMENTO ESPECIAL

 

 

A criminologia cumpre sua relevante função de proporcionar a compreensão ampla sobre o fenômeno criminal, quando realiza mapeamentos e enfoques que se refiram a todos os sujeitos e objeto do crime, bem como as transições com alternância dos lugares de ação e de fala entre aqueles sujeitos. Os esforços hermenêuticos devem considerar todos os protagonistas, ante a complexidade e dinâmica dos eventos típicos. Nesse aspecto, a vitimologia organiza uma colaboração notável ao permitir que, nos enredos que resultem em fatos criminosos, se conduza uma verificação analítica sobre a vítima.

 

Nessa concepção, a síndrome da mulher de Potifar constitui uma perspectiva que não pode ser ignorada de uma forma geral e mais, especialmente na análise dos fatos que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei 11.340/2006); crimes contra a dignidade sexual, mesmo que envolvam menores e nos litígios de família, a alienação parental (Lei 12.318/2010).

 

A teoria criminológica se assenta etiologicamente na figura bíblica de José no período em que esteve como escravo no Egito. Potifar era seu senhor e a ele tudo confiava, inclusive quando ausente. A mulher de Potifar manifesta interesse libidinoso por José, que renega esse afeto, baseando-se na ética da servidão a Potifar. Diante de sucessivos apelos negados, a mulher de Potifar prepara uma armadilha ao escravo. Agarra José e clama mais uma vez pelo contato sexual, mas José nega e seguro pelas vestes tenta fugir, ficando com a mulher as peças do vestuário do hebreu.

 

A mulher anuncia aos presentes que fora vítima de tentativa de estupro e como gritara o seu algoz fugira. Faz o mesmo relato ao marido Potifar quando retorna à casa e mostra-lhe a materialidade: as vestes de José. Imputa a responsabilidade ao marido por ter confiado no escravo indigno. Potifar providencia a prisão de José baseada no relato falso de sua mulher (Bíblia Sagrada, Gênesis, 38).

 

Pois bem. O fundamento da síndrome é a probabilidade da denunciação caluniosa. A criação de estratagemas em situações jurídicas nas quais a valorização dos relatos da vítima adquirem densidade preponderante assume aspecto determinante da responsabilidade. Não se pode com isso, ignorar o desolador cenário de violência doméstica e familiar contra a mulher; o volume indecoroso de crimes contra a dignidade sexual e os casos crueis de alienação parental.

 

Contudo, não se pode naturalizar apenas um fator para o evento criminoso quando se trata de observar a criminologia. Não podemos nos mais diversos episódios descartar de pronto a complexidade do inusitado. Apostar nas soluções mais evidentes e mais corriqueiras de modo linear, significa não admitir que o fenômeno criminal traz como característica inerente à sua vastidão, um certo incômodo pelo lugar comum.

 

É nesse contexto, que a Lei 13.431/2017 (arts. 7º ao 12) ao prever a escuta especializada e o depoimento pessoal constitui legítimo instrumento de aprimoramento da construção dos relatos das vítimas, permitindo um filtro e contenção quanto aos efeitos deletérios da síndrome da mulher de Potifar. A lógica e estrutura da escuta e depoimento é permitir a proteção à vítima, mas significando vetor que resguarde a própria aquisição da verdade por aproximação, o que resulta em garantia contra a denunciação caluniosa.

 

O procedimento deve consistir na escolha de um ambiente que mostre acolhimento e amistosidade, contrária a lógica dialética, dura e ortodoxa das audiências com perguntas e reperguntas realizadas sucessivamente. A oitiva deve ser única e gravada em sistema audiovisual. A postura brainstorming muito propícia na mediação não deve ser utilizada. 1 O relato deve ser orientado pela espontaneidade. Conta-se com a perspectiva da técnica do rapport. 2

 

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais editou a Portaria Conjunta 823/2019 regulamentou o depoimento especial no âmbito da Justiça Mineira. Embora o objetivo central seja evitar a sucessiva ampliação do sofrimento da vítima, ainda menor e constrangimentos à testemunha, é automática a sua contribuição para a melhoria da qualidade da prova, inclusive no que diz respeito à responsabilidade penal construída por postura caluniosa. Permite assim mais uma ferramenta importante para se evitar o erro judiciário.

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É certo que a síndrome da mulher de Potifar não pode ser evitada pura e simplesmente com o procedimento do depoimento especial. Os fatos podem ser contextualizados entre atores adultos. Mas, quando a criminologia identifica um fator de desencadeamento de distorções como pode ser considerada uma hipotética condenação derivada de denunciação caluniosa, contribui de modo decisivo para que o sistema normativo progrida no sentido de se aperfeiçoar para que a finalidade da norma seja justaposta como meio para a aproximação do direito à decisão justiça.

 

 

1Brainstorming é o nome dado à uma técnica grupal – ou individual – na qual são realizados exercícios mentais com a finalidade de resolver problemas específicos. Popularizado pelo publicitário e escritor Alex Faickney Osborn, o termo no Brasil também é conhecido como 'Tempestade de ideias'.Brainstorming - Tempestade de Ideias – InfoEscola - https://www.infoescola.com/administracao_/brainstorming/

 

2Rapport é uma palavra de origem francesa (rapporter), que significa “trazer de volta” ou “criar uma relação”. O conceito de Rapport é originário da psicologia, utilizado para designar a técnica de criar uma ligação de empatia com outra pessoa, para que se comunique com menos resistência.Rapport: o que é, como usar essa poderosa arma e exemplos reais - https://resultadosdigitais.com.br/agencias/rapport/

 

Sobre o autor
Amaury Silva

Juiz de Direito. Juiz Eleitoral. Magistrado no Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Mestre em Estudos Territoriais (ênfase em Criminologia e Direitos Humanos). Doutor em Ciências da Comunicação interface com Direito Professor na Graduação e Pós-Graduação (Direito Penal, Processual Penal e Direito Eleitoral). Autor de diversas obras jurídicas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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