Inicialmente, faz-se mister tecer algumas considerações indispensáveis à construção lógica e didática do tema, a fim de se atender aos objetivos a que se propõe este artigo, isto é, contribuir para a ampliação do conhecimento acerca da relação entre sociedades cooperativas e o Direito do Trabalho, abrangendo de forma concisa as hipóteses de configuração do vínculo empregatício entre os sujeitos daquela relação, especialmente diante de uma política governista promotora do cooperativismo, tudo com base nos preceitos e ensinamentos do mais respeitados doutrinadores, bem como à luz das normas trabalhistas e específicas em vigor.
As cooperativas são entidades de natureza civil e, portanto, também reguladas pelo Código Civil Brasileiro, podendo adotar por objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, nos termos definidos pela Lei 5.764/71 (Estatuto do Cooperativismo Nacional), sendo-lhes, contudo, obrigatório o emprego da expressão "cooperativa" em sua denominação social (art. 5º do ECN).
É, porém, no art. 4º da referida lex que encontramos a definição legal genérica de sociedade cooperativa, como sendo "sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados", ainda elencando em seus onze incisos algumas características que as distingam dos demais tipos societários, dados esses por ora dispensáveis.
Outra importante exigência legal está inserida no art. 3º da mesma Lei das Cooperativas, qual seja o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum aos associados, cuja finalidade não seja o lucro.
Frise-se que a expressão "lucro" é empregada no sentido de que o resultado econômico da atividade desenvolvida, como prevista no inciso VII, do art. 4º já vislumbrado, não poderá retornar à pessoa jurídica da cooperativa, a fim de enriquecê-la, mas unicamente em benefício dos seus associados, por meio das sobras líquidas do exercício, como ensina Cláudia Salles, in "Manual Prático das Relações Trabalhistas" [01].
Daí, pode-se entender que o principal escopo de uma cooperativa, qualquer que seja o seu ramo de atuação, é propiciar aos associados uma retribuição econômica e social mais vantajosa do que aquela obtida por um não cooperado, substituindo a intermediação da mão-de-obra e eliminando a figura do patrão, em contraposição dos interesses mercantilistas característicos de uma empresa não cooperativa.
Entretanto, embora legalmente definida como sociedade de natureza civil e, por isso, subordinada às normas do Código Civil, o Estatuto do Cooperativismo Nacional não veda à cooperativa a característica de sociedade comercial, uma vez que a prática de atos comerciais pode constituir o objeto para o qual foi criada. [02]
No caso específico das cooperativas cujo objeto é prestar serviços através da mão-de-obra própria ao tomador da prestação (cooperativas de trabalho), sua função é justamente promover a aproximação entre este e o associado (prestador dos serviços contratados), desde que dentro do contexto acima estudado (melhores vantagens pessoais ao cooperado, inexistência de subordinação e de intermediação da mão-de-obra).
Assim, a priori, não há que se falar em vínculo empregatício na relação entre a cooperativa e os seus associados, segundo prevê o art. 90, da Lei nº 5.764/71, mas sim em controle democrático e associação em virtude de objetivos comuns.
"Art. 90 - Qualquer que seja o tipo de cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados."
Entretanto, tal regra não pode ser interpretada literalmente, sem que se analise a natureza dessa relação.
Sobre esse problema, consoante o magistério de Wilson Alves Polonio [03], "o comando legal citado não pretendeu revogar e não o fez, os pressupostos legais caracterizadores do vínculo empregatício", até porque "a norma contida no art. 90, da Lei Nº 5.764/71, diga-se de passagem, já convive harmoniosamente com a legislação trabalhista há quase 30 anos."
Veja-se ainda o que dispõe o art. 91 do mesmo diploma legal:
"Art. 91 - As cooperativas igualam-se às demais empresas em relação aos seus empregados para os fins da legislação trabalhista e previdenciária."
Então, pode-se perceber que, embora não haja subordinação dos associados para com a cooperativa e, por isso, não existe vínculo empregatício entre ambos, sendo a priori sua relação jurídica objeto do Direito Civil, nada impede a admissão de empregados pela sociedade cooperativa, devendo, obrigatoriamente, incidir os direitos e obrigações decorrentes dessa relação laboral, aplicando-se os preceitos do Direito do Trabalho.
Noutra hipótese, pode ainda o associado aceitar estabelecer relação empregatícia com a cooperativa. Dessa feita, aquele teria seus direitos como associado restringidos, perdendo o direito de votar e de ser votado, até a aprovação das contas do exercício correspondente ao período em que se encerrou o vínculo laboral. Tudo conforme o art. 31 do "Estatuto do Cooperativismo Nacional". [04]
Percebe-se, então, que o trabalhador cooperado estará vinculado à cooperativa como um associado ou como um empregado, nunca concomitantemente, até porque este jamais poderá assumir os riscos da atividade econômica exercida, ao contrário daquele, como determina o art. 89 da Lei das Cooperativas.
No entanto, a CLT teve, em seu art. 442, inserido um parágrafo único, pela Lei nº 8.949/94, a qual estabelece que qualquer que seja o ramo de atividade da cooperativa, inexiste vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores daquela.
Contudo, é pacífico entre os doutrinadores do Direito do Trabalho o entendimento de que tal novidade em nada acresceu ao panorama jurídico anterior à sua edição, vez que o aplicador do direito já dispunha de instrumentos normativos (como no caso dos arts. 90 e 91 da CLT) para analisar, na realidade fática da relação formada entre tomadores de serviços e associados cooperados, a existência do vínculo empregatício. [05]
Pelo contrário, o parágrafo único do art. 442 da CLT, permitiria apenas que terceiros interessados se valessem da mão-de-obra ofertada pelos cooperados, sob a escusa de não se estabelecer qualquer relação de emprego com o tomador da prestação. [06] Assim, por exemplo, um empresário poderia demitir seus funcionários e recontratá-los por meio de uma cooperativa ou criar um setor na sua empresa e pôr cooperados para executarem atividades anteriormente realizadas por trabalhadores empregados.
No entanto, não foi essa a intenção do legislador, como se percebe da análise da justificação do Projeto de Lei Nº 3.383-B/92, da Câmara dos Deputados, o qual veio a se tornar a lei Nº 8.949/94, anteriormente referida. Observa-se, por outro lado, que a verdadeira intenção do legislador foi fomentar indiretamente a terceirização, através de uma "imunidade trabalhista" de que gozam as sociedades cooperativas. [07]
Conforme visto, o parágrafo único do art. 442 da CLT, acrescentado em virtude da Lei Nº 8.949/94, abre a possibilidade de terceirização de serviços através de sociedades cooperativas, uma vez que não se forma vínculo empregatício entre estas e seus associados, nem entre os cooperados e os tomadores de serviço daquela, desde que observados os requisitos legais.
Embora não esteja definida em lei, podemos conceituar a terceirização como sendo uma estratégia de gestão empresarial que, como afirma Wilson Alves Polonio [08], consiste "na transferência para terceiros (pessoas físicas ou jurídicas) de serviços que originalmente seriam executados dentro da própria empresa."
Trata-se, portanto, da contratação de mão-de-obra de terceiro (como o próprio nome indica) para a realização de atividades outras que não o objeto principal da empresa (atividade-fim). Ou seja, o objetivo de um processo de terceirização é liberar a empresa da realização de determinadas atividades consideradas acessórias (atividades-meio). [09]
Contudo, a utilização de terceirização pelas empresas acarreta problemas jurídicos a serem vislumbrados à luz do Direito do trabalho, como veremos.
Os conflitos de ordem trabalhista decorrentes da terceirização dizem respeito à existência ou não da relação de emprego [10]. Em virtude de tais problemas, fez-se necessária a definição de um posicionamento jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho (TST), consubstanciado originalmente no Enunciado 256 e posteriormente, na sua revisão, pelo Enunciado 331 da quela Corte, de onde se constata existirem apenas quatro hipóteses lícitas de terceirização: 1a) no caso de trabalho temporário, desde que presentes os pressupostos de necessidade transitória de substituição de pessoal permanente da empresa tomadora ou acréscimo extraordinário de serviço; 2a) atividades de vigilância regidas pela Lei nº 7.102/83; 3a) atividade de conservação e limpeza; e 4a) serviços especializados ligados à atividade-meio (atividade secundária) do tomador.
É importante observar que nas três últimas hipóteses, os elementos da pessoalidade e da subordinação devem estar ausentes, sob pena de desconsideração dos aspectos formais da relação jurídica, em virtude de ficar caracterizada a simulação fraudulenta, acaso se verifique que a empresa tomadora de serviços está se utilizando de empresa locadora, unicamente no intuito de burlar a legislação trabalhista. [11]
Ademais, só pode ser considerada lícita a terceirização dos serviços relacionados com a atividade do tomador. Isso porque o que se pretende evitar é que as empresas terceirizem os serviços ligados a suas atividades essenciais (atividades fins), no intuito de se isentarem dos riscos inerentes à atividade empresarial.
Nesse caso, a assunção dos riscos da atividade econômica faz parte do próprio conceito de empregador (art. 2º da CLT), restando infundada qualquer tentativa com tal sentido.
Concluindo o exame do Enunciado 331 do TST, o tópico IV estabelece uma responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, caso haja inadimplemento da empresa prestadora de serviços, pelo pagamento da contraprestação devida. Tal responsabilidade subsidiária impõe-se como medida protetiva do trabalhador, recaindo a cobrança sobre o devedor secundário (tomador de serviços) se o principal (no caso, a cooperativa) não honrar suas obrigações.
Sob essa ótica, consoante defende Bruno de Aquino Xavier [12], as tomadoras de mão-de-obra devem escolher com critério as cooperativas com quem pretendem contratar, descartando aquelas que se mostrarem inidôneas. "Caso contrário, incorrerão em responsabilidade subsidiária pelas verbas trabalhistas e sociais não quitadas".
Assim, se constatados os elementos caracterizadores do vínculo empregatício e não seja demonstrada a presença da dupla qualidade do cooperado (prestador do serviço e proprietário e autogestor dos negócios comuns aos associados) e da remuneração pessoal diferenciada, tratar-se-á da fraude prevista no art. 9º da CLT.
Vale salientar que a criação e a manutenção de cooperativas fraudulentas importam na responsabilidade criminal dos envolvidos, uma vez que tal prática constitui crime previsto no art. 203 do Código Penal Brasileiro.
Finalmente, podemos observar que dessa prática ilícita da intermediação de mão-de-obra por cooperativas (sobretudo cooperativas de trabalho), são criadas cooperativas no intuito de fraudar a lei (cooperativas fraudulentas ou "fraudocooperativas"), através da promoção de uma triangulação da relação contratual, funcionando aquelas como meras locadoras da força de trabalho dos seus cooperados [13].
Se a empresa prestadora (cooperativa) não possui atividade específica, consoante ensina Cláudia Salles [14], limitando-se a fornecer mão-de-obra à tomadora, "não há terceirização, e sim autêntica marchandage", evidenciando-se a falsa relação jurídica criada para mascarar a verdadeira.
Nessa hipótese, é flagrante que a prestação do trabalho se dá de forma pessoal, contínua e subordinada à empresa tomadora de serviço, resultando na nulidade da intermediação e na caracterização do vínculo empregatício de forma direta com a empresa contratante.
Surgem também as chamadas "coopergatos" [15] ou cooperativas de fachada, onde não há gestão democrática, mas uma relação interna de subordinação e hierarquia. Então, nessas condições, deverá ser reconhecida a relação de emprego formada entre o trabalhador cooperado e a sociedade cooperativa, restando a empresa tomadora dos serviços responsável subsidiariamente pelas prestações da natureza trabalhista e social, segundo estabelece o Enunciado 331 do TST, em seu inciso IV, como estudado [16].
Por fim, não se deve olvidar que a cooperativa não pode agir sob o manto da legalidade explorando a força de trabalho alheio e nem ser utilizada em substituição da mão-de-obra interna das empresas, uma vez que seu objeto é a ajuda sócio-econômica de seus associados e não de terceiros. [17]
Contudo, nada impede que a atividade terceirizada possa se realizar por meio de uma sociedade cooperativa, desde que ausentes os elementos do vínculo empregatício, lembrando-se que, para a caracterização da relação de emprego, o que deve ser considerado é a realidade fática que envolve a prestação dos serviços, não a aparente legalidade com que se procura camuflar a fraude.
Notas
01
VIANNNA, Cláudia Salles Vilela. Manual prático das relações trabalhistas. São Paulo: editora LTr, 2000, p. 680.02
Apud POLONIO, Wilson Alves. Terceirização: Aspectos legais, trabalhistas e tributários. 1. ed. Sao Paulo: Atlas, 2000, p. 47.03
Apud POLONIO, Wilson Alves, op. cit., p. 69.04
Idem, ibidem. p. 7005
Idem, ibidem.06
MARTINS, Sergio Pinto. A terceirização e o direito do trabalho. 2. ed. São Paulo: editora Malheiros, 1996.07
PAMPLONA FILHO, Rodolfo M. V. Cooperativismo e Direito do Trabalho . Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001.08
POLONIO, Wilson Alves. op. cit., p. 97.09
Idem, ibidem.10
MARTINS, Sergio Pinto (A Terceirização...).11
XAVIER, Bruno de Aquino Parreira. A terceirização por intermédio de cooperativa de trabalho. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 61, jan. 2003.XAVIER, Bruno de Aquino Parreira, op. cit.12
Idem, ibidem.13
"Cooperativa – Relação de emprego. Quando o fim almejado pela cooperativa é a locação de mão-de-obra, a relação jurídica revela uma forma camuflada de um verdadeiro contrato de trabalho" (TRT-2ª R., 1ª T., RO 02930463800, ac. 02950210648, Rel. Juiz Floriano Corrêa Vaz da Silva, DOESP 7.6.95, p. 41)."Imprópria a denominação de cooperativa na contratação de trabalho entre associados e beneficiário dos serviços, configurando evidente fraude aos direitos das reclamantes, por afastá-las da proteção do ordenamento jurídico trabalhista. Reconhecimento de vínculo empregatício entre cooperativados e tomador dos serviços." (TRT - 4ª - R-RO - 7.789/83 - Ac. 4ª T- 8.5.84, Rel. Juiz PETRÔNIO ROCHA VOLINO, in LTr 49-7/839-840).
14
VIANNA, Cláudia Salles Vilela, op. cit., p. 681.15
Essa distinção entre "fraudocooperativas" (cooperativas fraudulentas) e "coopergatos" (cooperativas de fachada) é feita por Marco Túlio Viana e mencionada por Marcia Costa Misi, in Cooperativas de trabalho – direito do trabalho e transformação social (pp.99-100).Vide: XAVIER, Bruno de Aquino Parreira, op. cit.
16
"TERCEIRIZAÇÃO – Quem, mesmo sob a denominação de ‘cooperativa’, contrata, dirige, paga e demite trabalhadores, cooperativa não é, sendo, portanto, a teor do art. 9º da CLT, nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos no Estatuto Consolidado (TRT – 15ª Região; Rec. Ord. Nº 16.749/97-0-Barretos-SP; Rel. Juiz Domingos Spina, j. 7-10-1998; v.u.)"17
VIANNA, Cláudia Salles Vilela, op. cit., p. 681.