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A norma do devido processo legal em seu aspecto procedimental e sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal

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Agenda 26/09/2005 às 00:00

1. Introdução.

O objeto do presente trabalho é investigar o conteúdo da norma do devido processo legal, enunciada no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, e como vem sendo aplicada pelo Supremo Tribunal Federal.

Para tanto serão utilizadas algumas categorias adotadas por Humberto Ávila, na obra Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos [1], quais sejam: 1. os critérios propostos pelo autor para distinguir as normas jurídicas, buscando-se fixar de que espécie é a norma sob exame, ou ainda, se há mais de uma norma que possa ser extraída do enunciado normativo já referido. 2. Partindo-se da premissa de que o devido processo legal é um princípio (o que se pretende demonstrar no primeiro tópico), serão utilizadas as diretrizes metodológicas propostas pelo autor para a análise dos princípios jurídicos.

A investigação dos princípios jurídicos deve ser feita através do exame de casos, tendo em vista que os comportamentos prescritos não estão explicitados no enunciado normativo. A tarefa a ser empreendida é extrair dos casos estudados standards que possam depois ser utilizados na resolução de outros casos, ou ainda que possam ser manejados para crítica de casos em que o mesmo princípio foi mal utilizado [2]. O que se busca é alcançar é um uso mais coerente, racional e controlável do princípio estudado [3].

Antes de proceder à análise de casos, é preciso explicitar qual é a compreensão que se tem do devido processo legal, com apoio na doutrina, sem prejuízo de que tal compreensão venha a ser alterada ou mesmo superada pelo exame da jurisprudência. Ademais, a própria eleição de casos paradigmáticos já pressupõe uma escolha prévia das questões que merecem ser examinadas, dentre as que suscitam controvérsia na doutrina.

Por fim, registro que centrarei a análise no aspecto procedimental do devido processo legal. Não se estará cuidando, portanto, dos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, extraídos por parte da doutrina de uma dimensão substantiva do mesmo enunciado normativo [4]. Apesar disso, cumpre destacar que o devido processo legal procedimental possui também um aspecto substantivo, na medida em que está relacionado com o conceito de julgamento justo (fair trial). Em verdade, apesar de identificar campos distintos de atuação nas dimensões substantiva e procedimental, a norma do devido processo legal sempre traz subjacente a idéia de refrear interferências injustas, arbitrárias, ou desarrazoadas nos bens tutelados.

Em razão do caráter substantivo do devido processo procedimental desde logo se descarta a idéia de que a norma estudada garanta apenas um processo ordenado segundo a lei. A concepção de que o devido processo legal assegura tão somente a observância de ritos procedimentais previstos em lei restringe sobremaneira a função desse princípio. Como veremos a seguir, a ausência de rito legal ou a insuficiência das regras processuais cabíveis para a concretização do julgamento justo autoriza a incidência direta da norma de modo a assegurar o procedimento devido, ainda que não ordenado em lei.


2. Esforço de definição do conteúdo do devido processo legal.

A norma contida no enunciado do art. 5º, LIV, da Constituição Federal é um princípio porque não descreve um comportamento, mas sim a realização de um fim (norma imediatamente finalística). Isso não significa que a norma não prescreva comportamentos, mas apenas que tais comportamentos (obrigatórios justamente por serem necessários à realização do fim) não estão descritos no enunciado, como ocorre com as regras [5].

Não estando os comportamentos necessários à realização da norma previamente descritos, exigir-se-á do intérprete uma justificação diferenciada ao aplicar o princípio: demonstrar que o comportamento tido como necessário é apto a contribuir para a realização do fim estabelecido na norma [6].

Qual é o fim propugnado pela norma do devido processo legal? Qual é o estado de coisas a ser buscado?

O princípio do devido processo legal está relacionado à idéia de controle do poder estatal. O Estado pode, através de seus órgãos, a fim de realizar os fins públicos, impor restrições aos bens individuais mais relevantes. No entanto, não pode fazê-lo arbitrariamente. O escopo do princípio estudado é reduzir o risco de ingerências indevidas nos bens tutelados, através da adoção de procedimentos adequados. Ou ainda, garantir que a prolação de determinada decisão judicial ou administrativa seja precedida de ritos procedimentais assecuratórios de direitos das partes litigantes.

O conteúdo do procedimento devido (o conjunto de comportamentos necessários à realização do fim) não está descrito na norma. O exame dos julgados do Supremo Tribunal Federal permitirá fixarmos o que se convenciona chamar de conteúdo mínimo do devido processo legal. Por conteúdo mínimo quero significar a definição dos elementos que devem estar presentes para que o procedimento esteja conforme à norma constitucional estudada.

Uma primeira advertência se faz necessária. Apesar de a norma se aplicar indistintamente aos processos judiciais cíveis e criminais e aos procedimentos administrativos, é possível identificarmos elementos que são extraídos do devido processo legal exclusivamente em matéria penal. Algumas adaptações também se fazem necessárias quando o princípio incide na esfera administrativa.

O direito processual penal sempre se revelou um campo fértil para a exploração das potencialidades da cláusula do devido processo legal. Tanto na jurisprudência da Suprema Corte Norte Americana quanto na de nosso Supremo Tribunal Federal, os casos pioneiros em que foram explicitadas as garantias decorrentes do princípio estudado referiam-se a processos criminais [7]. Isso se pode explicar pela relevância dos bens sob risco - liberdade e, nos sistemas que admitem pena de morte, a própria vida - e também pelo fato de a relação processual se estabelecer mais comumente entre o Estado (autor) e o indivíduo (réu).

Essa relação desigual no processo (Estado no exercício do jus puniendi versus indivíduo na iminência de ser privado de direitos fundamentais) moldou o conteúdo do due process na seara penal, conferindo-se maior proeminência aos direitos do réu, relacionados não só com a ampla defesa (conjugação da defesa técnica e da autodefesa, indisponibilidade da defesa técnica) e o contraditório, podendo ser enumerados os seguintes direitos: proteção contra instauração de procedimentos investigatórios e processos criminais sem que estejam respaldados em um mínimo suporte probatório; atribuição do ônus da prova à acusação, sem prejuízo do amplo direito da defesa de produzir provas; vedação de condenação pautada em prova ilícita; direito de permanecer calado e privilégio contra a auto-incriminação; direito de ser processado pelo promotor natural e julgado pelo juiz natural; separação entre as funções de acusar e julgar, a fim de assegurar a neutralidade do juiz, etc.

Já em direito processual civil, a tônica está na isonomia processual (comumente designada de paridade de armas), entendida como garantia de que as partes tenham oportunidades iguais de influenciar a formação da convicção do juiz; no direito ao juiz competente e imparcial; no direito à motivação das decisões. Não se está aqui afirmando que tais garantias não estejam presentes no processo penal. O processo penal está pautado nessas mesmas garantias e em outras, específicas, já delineadas.

Examinemos alguns julgados que aplicaram o princípio estudado em processos criminais e cíveis.

O Supremo Tribunal Federal negou pedido de extradição formulado pela China, ao argumento de que as normas que regem a investigação e processo criminal naquele país não assegurariam o devido processo legal e, por conseguinte, julgamento justo ao acusado (Extradição 633-9 República Popular da China - Rel. Celso de Mello – Pleno - j. 28.8.96 - DJ 6.4.01 - unânime). No voto condutor, as seguintes características do sistema processual chinês foram consideradas incompatíveis com o devido processo legal: 1. o imputado, na fase investigatória, pode ficar preso por período indeterminado sem que lhe seja assegurada assistência de advogado; 2. a constituição do advogado se dá sete dias antes do julgamento, quando toda a instrução já foi feita em "tribunais preparatórios", sem participação do acusado ou do defensor; 3. na maioria dos casos, as decisões condenatórias espelham as acusações, sem considerar as teses de defesa. 4. não há independência dos juízes, tendo em vista a pressão exercida em alguns casos pelos Comitês político-legais do Partido Comunista; 5. não há vedação de prova ilícita e consagração do princípio da presunção de inocência. Aduziu então o Ministro Relator em seu voto: "O direito ao fair trial – que constitui projeção concretizadora do postulado concernente ao devido processo legal – qualifica-se como fator de legítima restrição à cooperação internacional em matéria penal, justificando, em conseqüência, a própria recusa do pedido de extradição, sempre que se evidenciar, como neste caso ora em exame, que o extraditando pode ser privado da garantia do julgamento regular e justo, fundado na igualdade processual entre os litigantes e na observância do princípio do contraditório".

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No HC 79812-8-SP (Rel. Celso de Mello – Pleno – j. 8.11.00 – DJ 16.2.01 – unânime), foi assegurado o direito do paciente, convocado para depor perante a CPI do narcotráfico, de não responder as perguntas que pudessem incriminá-lo. Apesar do direito de permanecer calado estar previsto no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, o voto do Ministro Relator explicita o entendimento de que tal privilégio é "uma das mais expressivas conseqüências derivadas da cláusula do due process of law".

No HC 82941-4-RJ (Rel. Sepúlveda Pertence – Primeira Turma – j. 16.3.03 – DJ 27.6.03 – unânime), foi determinado o trancamento de ação penal instaurada para apuração de crime de denunciação caluniosa, pelo fato de "repugna(r) à racionalidade subjacente à garantia do devido processo legal admitir-se possa o aparelho repressivo estatal simultaneamente estar a investigar a veracidade de uma delação e a processar o autor dela por denunciação caluniosa". O princípio foi aplicado nesse caso para obstar persecução criminal que se apresentava incoerente, insubsistente e injusta.

No julgamento do HC 80379/SP (Rel. Celso de Mello – Segunda Turma – j. 18.12.00 – DJ 25.5.01 – unânime) extraiu-se do devido processo legal o direito ao julgamento em prazo razoável: "O direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do due process of law. O réu – especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação de sua liberdade – tem o direito público subjetivo de ser julgado pelo Poder Público, dentro de prazo razoável, sem demora excessiva e nem dilações indevidas".

O HC 80263-0 (Rel. Ilmar Galvão – Pleno – j. 20.2.03 – DJ 27.6.03 – maioria) cuidou de hipótese em que a possibilidade de reconhecimento de nulidade absoluta por órgão judicial cedeu ao favor rei. Cuidou-se de restrição imposta aos Tribunais de 2º grau no julgamento de apelações criminais pela súmula 160 do STF. Nulidade, ainda que absoluta, não argüida no recurso da acusação, não pode ser declara pelo Tribunal. No caso, sentença absolutória fora anulada pelo fato de o Órgão ad quem ter reconhecido sua incompetência absoluta. No entanto, como tal incompetência jamais fora cogitada pelo Juiz a quo e não fora suscitada na apelação do Ministério Público, decidiu o Supremo Tribunal Federal que o Tribunal de Justiça deveria abster-se de se declarar incompetente, e apreciar no mérito o recurso interposto. Em seu voto, o Relator ressaltou que a prevalência do direito à liberdade em detrimento do dever de acusar impõe que princípios como o do devido processo legal e o do juízo natural somente possam ser invocados em favor do réu e nunca em seu prejuízo. O que se quis foi ressaltar a singularidade do direito processual penal em permitir a extração de conseqüências processuais de atos nulos mesmo quando a nulidade é absoluta, mas somente em benefício do réu, nunca da acusação. No caso julgado o Supremo afirmou que sentença proferida por juiz absolutamente incompetente, ainda que declarada nula, em algumas hipóteses pode limitar a que vier a ser proferida por juiz competente, de modo a não ser piorada a situação do réu. Lamentavelmente, a idéia lançada pelo relator, de que o devido processo legal só poderia ser invocado em favor do réu e nunca em seu prejuízo, não foi objeto de consideração pelos demais ministros, ou seja, a menção ao princípio se deu apenas no voto condutor, o que reduz sua relevância para os objetivos deste estudo.

O direito ao duplo grau de jurisdição como corolário do devido processo legal foi objeto de exame pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus RHC 79785-7-RJ (Rel. Sepúlveda Pertence – Pleno – j. 29.3.00 – DJ 22.11.02 – maioria). O caso envolvia advogada condenada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por crime de estelionato contra o INSS, que pretendia fosse admitido recurso inominado contra a sentença para propiciar o reexame da matéria de forma ampla pelo Superior Tribunal de Justiça. Um dos co-réus na ação penal era juiz de direito, motivo pelo qual a advogada fora julgada em única instância pelo Tribunal de 2º grau. Sustentava que o duplo grau de jurisdição integrava a garantia do devido processo legal. E ainda que seu direito a ter a sentença reexaminada por órgão judicial diverso do que a prolatou decorria do art. 8, 2, h, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, aplicável por força do art. 5º, § 2º da Constituição. Tais alegações foram refutadas pelo Relator, ao argumento de que o duplo grau de jurisdição não possuía estatura constitucional, podendo inclusive ser restringido por lei infraconstitucional (ainda que eventualmente tal lei pudesse ser examinada sob o prisma da razoabilidade). Explicitou ainda que a norma da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, a qual consagrava indiscutivelmente a garantia de duplo grau em matéria criminal, não poderia ser aplicada no Brasil, pois isso acarretaria ab-rogação de normas constitucionais que instituíam taxativamente a competência dos Tribunais para julgar ações penais originárias. Os Ministros Marco Aurélio e Carlos Velloso divergiram do Relator, sustentando a necessária compatibilização da norma internacional com a Constituição, através de aplicação analógica do recurso ordinário cabível nos Tribunais Superiores.

No julgamento da ADI-MC 1753-2-DF (Rel. Sepúlveda Pertence – pleno – j. 16.4.98 - DJ 12.6.98 – unânime) o Supremo Tribunal Federal suspendeu dispositivo da medida provisória 1577-6, de 1997, que estendia de dois para cinco anos o prazo para ajuizamento da ação rescisória em benefício da fazenda pública. Está explicitado que a " igualdade das partes é imanente ao procedural due process of law". Tal igualdade só pode ser excepcionada com motivo razoável e não de forma arbitrária. No caso, a ampliação do prazo para ajuizamento de ação rescisória foi tida como "favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo".

Na ADI 2144-3-DF (Rel. Ilmar Galvão – Pleno- j. 11.5.00 – DJ 14.11.03 – maioria) o Supremo Tribunal Federal examinou eventual violação ao devido processo legal por dispositivo do código de processo penal que determina a intimação dos advogados constituídos pelo diário oficial. Também nesse julgado, o que estava em discussão era a isonomia processual, já que o Ministério Público, advogados dativos e defensores públicos gozam de intimação pessoal. Prevaleceu contudo o entendimento de que "a natureza das atribuições do MP e dos defensores nomeados justificaria o tratamento diferenciado relativo às intimações ... Não há na intimação por órgão oficial de publicidade dos atos judiciais qualquer ofensa aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, uma vez que não caracteriza ela obstáculo ao desenvolvimento das atividades dos advogados no cumprimento de suas funções".

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade (ADI 1055-7-DF - Rel. Sydney Sanches – pleno - j. 16.6.94, DJ 13.6.97, maioria) suspendeu os §§ 2º e 3º do art. 4º da lei 8866/1994, por entender que tais dispositivos legais violavam o princípio do devido processo legal. Os dispositivos impugnados determinavam a não apreciação de contestação e imediata prisão do réu, tido como depositário infiel de tributos recolhidos e não repassados à Fazenda Pública, se não fosse efetivado o depósito judicial ou recolhimento do tributo em dez dias. Segundo o relator, as dificuldades impostas ao réu para que pudesse veicular sua defesa (prévio recolhimento do tributo exigido ou prisão) tornariam impossível ou extremamente difícil a observância do princípio constitucional do devido processo legal. Nesse julgado também se extraiu do devido processo legal o princípio da livre convicção do juiz, cerceado pela imposição de que fosse decretada a prisão automática do réu no caso de não proceder ao recolhimento ou depósito do tributo.

No HC 68609-DF (Rel. Sepúlveda Pertence - Pleno - j. 01.7.91 - DJ 30.8.91 - unânime)decidiu-se que, embora dispensável o ajuizamento de ação de depósito para apuração de responsabilidade do depositário infiel, a necessidade de conciliar a prisão civil nesse caso com "os imperativos do devido processo legal e seus consectários explícitos na Constituição" determinam que se confira a tal prisão função coercitiva e não penal. Na hipótese, foi concedido habeas corpus para que se instaurasse instrução sumária visando a localização da coisa e sua apreensão, só se legitimando a prisão do depositário como ultima ratio.

Merece registro ainda o exame feito pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da constitucionalidade da execução extrajudicial, prevista no decreto lei 70/66, que se presta à retomada pelo agente financeiro de imóvel residencial adquirido mediante contrato de mútuo no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação. Tal decreto lei prevê a perda da propriedade do imóvel sem prévio procedimento cognitivo. O mutuário inadimplente é instado a quitar sua dívida no prazo de 48 horas, e se não o fizer seu imóvel é submetido à leilão.

O leading case, invocado por todas as instâncias do Poder Judiciário, é o RE 223075-1-DF (Rel. Ilmar Galvão – Primeira Turma – j. 23.6.98 – DJ 6.11.98 – unânime). Sustenta o Relator que a execução extrajudicial não viola o princípio do devido processo legal e o princípio da inafastabilidade do Judiciário de lesão ou ameaça a direito pelo fato de que há sempre possibilidade de o mutuário ajuizar ação objetivando suspender a execução ou anular o leilão. Ademais, há uma fase de controle judicial, embora posterior à alienação forçada, prevista no decreto lei (necessidade de ajuizamento de ação possessória para despejar o ex-proprietário). Encerra o Ministro fazendo considerações a respeito da necessidade de se assegurar o indispensável fluxo circulatório dos recursos destinados à execução do programa da casa própria, já que provenientes do FGTS.

Quanto à aplicação do devido processo legal em matéria administrativa, o art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988 impõe a necessidade de se observar o direito de defesa e contraditório em procedimentos administrativos que interfiram com direitos de particulares. Especialmente no que tange aos processos disciplinares, por possuírem objeto assemelhado ao dos processos criminais (apuração de fato ilícito imputado ao servidor e aplicação da pena adequada), não remanesce controvérsia relevante a respeito de estarem sujeitos ao devido processo legal. A ausência de previsão legal de ritos, ou a insuficiência dos ritos para assegurar efetivamente a realização dos fins, propicia a incidência direta do princípio para invalidar punições disciplinares aplicadas sem prévio procedimento adequado.

Há inúmeros julgados do Supremo anulando atos de desligamento de policiais militares não estáveis, por razões disciplinares, pelo fato de não ter sido observado o devido processo legal, mais especificamente, os direitos de defesa e de contraditório [8]. No julgamento do MS 23343-5 (Rel. Octavio Gallotti – Pleno – j. 24.2.00 – DJ 18.8.00 – unânime), foi anulada demissão de servidores da Fundação Nacional de Saúde, por ter sido constatado o impedimento do servidor que presidiu a comissão sindicante, ele próprio também investigado, e ainda em razão da não explicitação dos fatos ilícitos supostamente cometidos pelos sindicados na portaria que instaurou o inquérito administrativo, tendo servido o princípio do devido processo legal de fundamento para a decisão.

O Supremo Tribunal Federal anulou inscrição de empresa em cadastro de órgão de defesa do consumidor (feita com fundamento no art. 44 do Código de Defesa do Consumidor) pelo fato de não ter sido precedida de procedimento administrativo conduzido sob a garantia do devido processo legal. Extrai-se da ementa do julgado: "O Estado, em tema de punições disciplinares ou de restrição a direitos, qualquer que seja o destinatário de tais medidas, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida estatal - que importe em punição disciplinar ou em limitação de direitos - exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF, art. 5º, LV), a fiel observância do princípio do devido processo legal. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina" (AI 241201-AGR-SC – Rel. Celso de Mello – Segunda Turma – j. 27.8.02 – DJ 20.9.02 – j. unânime).

Na ADI 1049-MC (Rel. Carlos Velloso – Rel. para acórdão Sepúlveda Pertence – Pleno – j. 18.5.95 – DJ 25.8.95 – maioria), foi considerado constitucional o art. 93 da lei 8870/94, que condicionava a apreciação de recurso administrativo contra a decisão do INSS de aplicar multa por infração à legislação previdenciária ao depósito da multa. Carlos Velloso suspendia o dispositivo ao argumento de que "condicionar o seguimento do recurso administrativo ao depósito do quantum discutido... é estabelecer óbice ao direito de defesa, o que é repelido pelo due process of law consagrado na Constituição, assegurador do direito de defesa com os meios e recursos a ela inerentes". Prevaleceu, entretanto, o entendimento expressado por Sepúlveda Pertence, segundo o qual "o devido processo legal não impõe sequer o direito à existência do recurso administrativo, não vejo de que maneira o condicionamento de seu exercício ao depósito poderia afetar a garantia do devido processo legal".

No julgamento do MS 23919-1 (Rel. Carlos Velloso – Pleno – j. 24.10.02 – DJ 20.6.03 – unânime), foi corroborada decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União em procedimento instaurado para apurar malversação de verbas públicas. O STF considerou o rito adotado conforme ao devido processo legal por estarem presentes os seguintes elementos: citação pessoal, constituição de advogado e apresentação de defesa pelo interessado, apreciação das alegações de defesa, notificação pessoal da decisão que julgou irregulares as contas, interposição de recurso, julgamento do recurso e nova comunicação pessoal a respeito da decisão que apreciou o recurso interposto.

Em contrapartida, foi anulada decisão do mesmo Tribunal de Contas da União de instar autarquia federal a anular contrato administrativo firmado com particular, por terem sido constatadas irregularidades na licitação. Ao argumento de que a lei orgânica do TCU não exigia tal providência, todo o processo de aferição da legalidade da concorrência pública fora conduzido sem que se procedesse à notificação do particular atingido. O voto do Ministro Sepúlveda Pertence extrai das garantias do due process, da defesa e do contraditório, o direito do interessado a ser cientificado da instauração do processo e a postular produção de provas, consignando ainda que a possibilidade de interpor recurso não supre a necessidade de se assegurar a intervenção do interessado em momento anterior ao da prolação da decisão (MS 23550-1-DF – Rel. Marco Aurélio – Rel. para acórdão Sepúlveda Pertence – Pleno – j. 4.4.01 – DJ. 31.10.01 – maioria).

Nesse último julgado, apesar de pautar a decisão nas normas constitucionais citadas, as quais dispensariam previsão legal expressa de audiência dos interessados, O STF aventou a possibilidade de aplicação subsidiária aos procedimentos do TCU da lei 9784/99. De fato, com a edição da lei 9784/99, cujo objeto é regular os procedimentos no âmbito da Administração Pública Federal, e que não se aplica exclusivamente na apuração de faltas disciplinares, houve um salto de qualidade na realização do devido processo legal em processos administrativos [9].

Não obstante, ainda há dúvidas a respeito de quais decisões administrativas dependem da prévia instauração de processo administrativo para serem tomadas. Em alguns casos o Supremo Tribunal Federal afirma que o poder de autotutela autoriza a revisão de atos pela administração pública sem que se faça necessário processo administrativo, ainda que tais atos restrinjam direitos anteriormente reconhecidos a particulares [10].

Uma vez concedida determinada vantagem remuneratória a servidores, poderá a Administração revogar ou anular o ato sem instaurar procedimento no qual se assegure o contraditório e a defesa? A questão foi discutida no julgamento do RE 158.543-9 (Rel. Marco Aurélio – Segunda Turma – j 30.8.94 – DJ 6.10.95 – maioria). Prevaleceu o entendimento de que a presunção de legitimidade do ato administrativo milita não só em favor da pessoa jurídica de direito público, mas também do cidadão que se mostre de alguma forma por ele alcançado. Em vista disso, o desfazimento do ato, mesmo que se trate de anulação, deve ocorrer em cumprimento ao devido processo legal. Algumas teses divergentes merecem ser registradas: só se faz necessária a instauração do devido procedimento se o ato envolver apreciação de matéria fática. Se a discussão for apenas jurídica, não há prejuízo para o particular atingido, pois pode submeter a questão ao Judiciário em toda sua amplitude (Carlos Velloso); não é compatível com o princípio de que a Administração pode rever seus atos a suposta obrigação de instaurar procedimento administrativo para que possa tomar medidas muitas vezes urgentes, inadiáveis e saneadoras. Os particulares eventualmente atingidos podem recorrer ao Poder Judiciário (Paulo Brossard); se a vantagem recebida está consolidada pelo passar dos anos, não se pode suprimi-la administrativamente, devendo o Poder Público ajuizar ação para tanto. Ao contrário, se está sendo recebida há poucos meses, pode revê-la independentemente de assegurar aos beneficiários direito de defesa e contraditório (Néri da Silveira).

Em ocasião recente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal manifestou-se novamente sobre o tema, ao julgar o MS 24268/MG (Rel. Ellen Gracie – Rel. para acórdão Gilmar Mendes – j. 5.2.04 – DJ. 17.9.04 – maioria). Examinava-se a legalidade do cancelamento unilateral de pagamento de pensão dezoito anos após a implantação do benefício, ao argumento de que havia sido ilegalmente concedido. O voto condutor do Ministro Gilmar Mendes sustenta algumas teses relevantes para a fixação do conteúdo da norma do devido processo legal. Em primeiro lugar, refuta as seguintes razões invocadas pela Ministra Ellen Gracie para denegar a ordem: impor ao TCU o dever de instaurar o devido processo legal sempre que for examinar a legalidade de ato administrativo importará enfraquecimento do órgão; se ato administrativo impugnado não envolve questões de fato, não há prejuízo, pois a parte prejudicada poderá recorrer ao judiciário, sujeitando a este órgão a questão examinada em toda sua extensão.

Tais considerações não são aptas a afastar a exigência da instauração de procedimento em que se assegure ao interessado os direitos de defesa e de contraditório. O direito de defesa não se resume a um simples direito de manifestação no processo, mas envolve: o direito de informação sobre o objeto do processo, que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; o direito de manifestação, que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar, que corresponde, obviamente, ao dever do juiz ou da Administração de a eles conferir atenção ... envolve não só o dever de tomar conhecimento como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas.

Sobre a autora
Simone Schreiber

juíza federal da 5ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), doutoranda em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHREIBER, Simone. A norma do devido processo legal em seu aspecto procedimental e sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 815, 26 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7334. Acesso em: 19 dez. 2024.

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