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Reparação por abandono afetivo paterno-filial: possibilidade ou inviabilidade?

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Agenda 23/04/2019 às 11:16

O texto averiguará se um pai, ao abandonar afetivamente a prole, tem a obrigação de indeniza-la por danos morais advindos da conduta. Para tanto, realizar-se-á, além de exposições conceituais, exame das divergências sobre o tema.

Introdução

 

A família brasileira vivenciou, durante o século XX, principalmente após o início do Estado Social, consideráveis transformações referentes a função, composição e conceituação. Antes da Constituição em vigor, apenas a família patriarcal era juridicamente considerada legítima e merecedora de proteção constitucional. Nesse modelo familiar, só o pai detinha o pátrio poder, em razão do qual a cidadania plena restringia-se a ele, com direitos recusados à mãe e aos filhos.  

Com o ingresso da atual Carta Magna, que inovou no âmbito civil, estendendo a tutela a todo conjunto familiar, a família patriarcal entrou em crise, declinando. Em seu lugar, erigiu-se a noção de família contemporânea, estruturada na solidariedade, na cooperação, na preferência dos vínculos socioafetivos aos consanguíneos. Também, a emancipação feminina e a igualdade, na referida Constituição, entre quaisquer descendentes limitaram o pátrio poder, propiciando a conversão no poder familiar. Esse instituto, diversamente do antecessor, é atribuído a ambos os pais, abrangendo um complexo de direitos-deveres voltados ao interesse da prole e da convivência familiar.

Em regra, o descumprimento  dessas obrigações poderia ocasionar a suspensão do poder familiar, isto é, a proibição temporária de exercê-lo, ou a perda, alusiva à permanente interrupção. Entretanto, desde a década anterior, têm havido, face ao mau exercício desse múnus, condenações judiciais indenizatórias, e a ampliação de demandas com pleitos reparatórios, entre as quais, as de indenização por abandono afetivo paterno-filial.

O objetivo deste trabalho, diante do panorama exposto, é, mediante análise conceitual do abandono paterno-filial; uso de normas jurídicas e argumentos doutrinários ou judiciais, responder se o correlato pedido reparatório merece procedência.

No primeiro item do artigo, com base em reconhecidos juristas no direito familiar, serão expostas definições de abandono afetivo para melhor entendimento dessa conduta omissiva.  Nos segundo e terceiro itens, serão expressas as divergências que rondam a indenização pela referida conduta. Primeiro, as de cunho jurisprudencial, com destaque para a apreciação dos acórdãos do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. Após, as de origem doutrinária, com alusão a defensores e a contestadores da reparação. Encerrar-se-á o trabalho, no quarto item, com um exame crítico das controvérsias expostas.

Dessa maneira, espera-se que o presente artigo possa auxiliar e orientar estudantes ou profissionais do direito, ao se depararem com o tema em comento, mostrando, perante questionamentos sobre a reparação por abandono, qual seria o caminho mais aceitável a trilhar.

 

1. Compreendendo o abandono afetivo

 

Na análise conceitual do abandono afetivo, pode-se recorrer aos doutrinadores que o compreendem como violação de obrigações inerentes à paternidade ou ao poder familiar. Dentre eles, encontram-se Paulo Lôbo, Maria Berenice Dias, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Maria Rita Kehl.

Nessa direção, Paulo Lôbo argumenta que "o abandono afetivo nada mais é que inadimplemento dos deveres jurídicos de paternidade. Seu campo não é exclusivamente o da moral, pois o direito o atraiu para si, conferindo-lhe consequências jurídicas que não podem ser desconsideradas".[1]

Adotando semelhante linha de raciocínio, Maria Berenice Dias[2] afirma que o abandono afetivo consiste na omissão paterna em exercer encargos decorrentes do poder familiar, gerando ao filho danos emocionais. Acrescenta ainda que esse fenômeno traz-lhe desordem, desorientando-o e retirando-lhe a disposição de conduzir um projeto de vida.

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, além de desenvolver pensamento compatível com os juristas retromencionados, ressalta, na concepção de abandono afetivo, a transgressão ao dever de educação. Eis as palavras da doutrinadora:

"O abandono afetivo se configura (...) pela omissão dos pais, ou de um deles, pelo menos relativamente ao dever de educação, entendido este na sua acepção mais ampla, permeada de afeto, carinho, atenção, desvelo. Esta a fundamentação jurídica para que os pedidos sejam levados ao Poder Judiciário, na medida em que a Constituição Federal exige um tratamento primordial à criança e ao adolescente e atribui o correlato dever aos pais, à família, à comunidade e à sociedade".[3]

E Maria Rita Kehl complementa essa visão da maneira abaixo:

"O abandono, e a conseqüente falta de educação das crianças, ocorre quando o adulto responsável não banca sua diferença diante delas. Fora isso, sabemos que todos os “papéis” dos agentes familiares são substituíveis (...). O que é insubstituível é um olhar de adulto sobre a criança, a um só tempo amoroso e responsável, desejante de que esta criança exista e seja feliz na medida do possível – mas não a qualquer preço. Insubstituível é o desejo do adulto que confere um lugar a este pequeno ser, concomitante com a responsabilidade que impõe os limites deste lugar. Isto é que é necessário para que a família contemporânea, com todos os seus tentáculos esquisitos, possa transmitir parâmetros éticos para as novas gerações".[4]

As obrigações descumpridas em casos de abandono afetivo, referidas nas concepções acima, são, principalmente, as delineadas no art. 1634 do Código Civil, dentre as quais, educação, criação e guarda dos filhos.

Oportuno mencionar, também, o dever de sustento, de predominante aspecto patrimonial e contido expressamente no art. 1566, IV, do Código Civil. Concretiza-se pela disponibilização, por parte dos pais, aos filhos de meios compatíveis com as respectivas necessidades. Registre-se que esse dever não tem conexão direta com a possibilidade dos devedores, nem com o nível de necessidade dos credores. Destarte, ainda que o genitor guardião possa, exclusivamente, sustentar os filhos, o outro apresentará a obrigação em análise, devendo exercê-la, a priori, na meação das despesas.

Realizadas essas explanações conceituais, cumpre averiguar se o abandono afetivo perpetrado por um pai gera, em relação à vítima, obrigação reparatória. Essa questão é complexa, suscitando variadas dissonâncias de entendimento, tanto jurisprudenciais quanto doutrinárias. E, para melhor respondê-la, faz-se oportuno apresentar e explicar tais dissonâncias.  

 

2. Controvérsias sobre a reparação no âmbito jurisprudencial

 

No exame de como têm sido apreciadas as demandas indenizatórias por abandono afetivo, convém mencionar acórdãos do Superior Tribunal de Justiça. O recurso pioneiro, sobre o tema, a tramitar nesse juízo foi o REsp 757.411/MG (julgado em 29/11/2005), da relatoria do Min. Fernando Gonçalves.

O contexto da lide envolvia um indivíduo, nascido em março de 1981, que alegava haver o pai dele se distanciado após o divórcio (em 1987), negando-lhe qualquer forma de aproximação, apesar de satisfazer o dever alimentar. Também, asseverava que o genitor, além da postura displicente e da omissão no dever de assistência psicomoral, não compareceu a eventos importantes, provocando-lhe sofrimento e constrangimento. Perante o arguido abandono e pretendendo reparação por danos morais, propôs, contra o pai, ação ordinária, distribuída na 19ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte - MG.

O ascendente, por sua vez, entre os argumentos, sustentava ter visitado regularmente o demandante até maio de 1989 (acompanhando-o nos finais de semana), momento a partir do qual as condutas da mãe, com telefonemas desrespeitosos e instruções ao filho para violentar a meio-irmã (oriundo de novo relacionamento do ascendente), tornaram insuportável o ambiente doméstico durante as visitas.

O magistrado titular da vara julgou improcedente a ação. Baseou-se, para tanto, em laudo pericial, que não constatava exata conexão entre o distanciamento paterno e os sintomas apresentados pelo filho, nem alterações, no mesmo, ocasionadas pelo afastamento. Associou ainda a origem dos sofrimentos suportados pelo descendente à desgastante separação judicial dos pais, entendendo equivocada a responsabilização exclusiva do pai.

Inconformado, o filho interpôs apelação face ao TJMG. Diversamente do julgador a quo, o Tribunal deu provimento ao recurso e impôs ao recorrido adimplemento de indenização por danos morais no valor de R$ 44.000,00, considerando presentes o dano contra a dignidade do recorrente e a transgressão paterna ao dever de convívio com a prole. Objetivando o reestabelecimento da decisão de 1º grau, o pai interpôs, perante o STJ, o recurso especial em apreço.

O relator Min. Fernando Gonçalves, cuja tese prevaleceu no julgamento, votou pelo provimento recursal, afastando a obrigação reparatória. Argumentou que, desobedecidos os deveres de sustento, guarda e educação do filho em caso de abandono, já existiria a previsão legal de perda do poder familiar, ao invés de ressarcimento, a qual satisfaria os aspectos punitivo e dissuasório. Ademais, aventou a possível dificuldade de reaproximação paterno-filial após imposta a sanção indenizatória. E concluiu com o pensamento de não caber ao Judiciário exigir, de outrem, amor ou a permanência de um relacionamento afetivo, considerando impossível indenização por abandono. O aresto ficou assim ementado:

"RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido".

Rodrigo da Cunha Pereira e Cláudia Maria Silva fizeram críticas à decisão supra, com esses dizeres:

"A razão denegatória do STJ ao pedido do filho se apóia na afirmação de que não se pode coagir um pai a amar seu filho. Entendemos que a desatenção, a rejeição, o desafeto devem sofrer sanções, sob o risco de o filho vir a ser titular de direitos reconhecidos, mas vazios e inexigíveis. Além disso, se um pai ou uma mãe não quiser cuidar, dar atenção, carinho e afeto àqueles que trouxeram ao mundo, essa recusa e essa negligência implicam danos à personalidade, os quais devem ser ressarcidos para provocar reflexões e coibir práticas semelhantes".[5]

O segundo recurso a adentrar o STJ, abrangendo o tema em comento, foi o REsp 514.350/SP (julgado em 28/04/2009), da relatoria do Min. Aldir Passarinho Junior. Foi interposto por um filho, irresignado com a decisão do TJSP que, embora declarando-lhe o estado de filiação, desobrigou o pai da reparação por danos morais, determinada em 1ª instância por alegado afastamento paterno. Entretanto, o sobredito relator, seguido pelos demais no julgamento, resolveu manter a decisão do Tribunal, arrimando-se no voto condutor do REsp 757.411/MG (mencionado acima), e, inclusive, transcrevendo-o entre os argumentos. O acórdão apresentou essa ementa:

"CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO. DANOS MORAIS REJEITADOS. ATO ILÍCITO NÃO CONFIGURADO. I. Firmou o Superior Tribunal de Justiça que "A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária" (Resp n. 757.411/MG, 4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU de 29.11.2005). II. Recurso especial não conhecido".

Assim, o STJ, através da 4ª Turma, aparentava prosseguir firme na recusa da possibilidade reparatória por abandono. Mas, em 2012, um julgado alterou o quadro. Tratou-se do REsp 1.159.242/SP (apreciado em 24/04/2012), distribuído na 3ª Turma e da relatoria da Min.(a) Nancy Andrighi.

O caso em litígio abarcava uma filha, oriunda de um envolvimento entre os pais que perdurou até a gravidez da mãe. Após, o ascendente afastou-se, enriqueceu, constituiu matrimônio e teve três filhos com outra mulher. A descendente, que precisou das vias judiciais para o reconhecimento da paternidade, aduzia nunca ter recebido carinho, sustento e cuidado do pai, direcionados aos demais filhos, sentindo-se desprezada moral e materialmente. Por conseguinte, ajuizou, contra ele, na Comarca de Sorocaba, ação de indenização por danos morais e materiais.

Porém, o magistrado titular julgou improcedente a demanda, com o entendimento de que o afastamento paterno-filial resultou, primariamente, da postura agressiva da mãe quanto ao genitor, nos momentos de contato entre ambos, após findo o relacionamento. Diante da decisão, a filha interpôs apelação ao TJSP, visando à reforma sentencial.

E o Tribunal acolheu o apelo, condenando o pai ao pagamento de R$ 415.000,00, a título de reparação por danos morais. Para tanto, considerou-se que a atuação agressiva da mãe e a dúvida do apelado quanto à condição paterna (até o reconhecimento judicial) não justificavam a respectiva recusa em exercer a paternidade perante a filha. Argumentaram-se, também, a violação pelo ascendente dos princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia (devido ao tratamento divergente entre os filhos) e de deveres quanto à descendente, entre os quais, de educação e companhia.

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Opondo-se a esse julgado, o pai apresentou recurso especial ao STJ. E, contrariamente à posição dominante nos dois recursos especiais já visualizados, a emissora do voto condutor, Min.(a) Nancy Andrighi, manteve a condenação pecuniária, embora reduzindo-a para R$ 200.000,00.     

A ministra principiou o voto defendendo a incidência das regras de responsabilidade civil no direito familiar por ausência de impedimentos legais. Adiante, considerou que, mesmo legalmente expressa para a transgressão de deveres paternos, a perda do poder familiar não obsta a pretensão reparatória, tendo o fim primordial de tutelar a integridade do menor e, não, compensar alguma perda. Regina Beatriz Tavares da Silva propugna e elogia essa compreensão:

"O acórdão corretamente consignou que a destituição do poder familiar não exclui a possibilidade de indenização, pois os objetivos de cada instituto são diversos. A perda do poder familiar visa à proteção da integridade do menor, enquanto a indenização tem em vista a reparação dos danos decorrentes do ato ilícito praticado. Na hipótese de dano moral, a indenização objetiva uma compensação à pessoa lesada e um desestímulo à prática de novas agressões pelo ofensor. Pode-se entender que a perda do poder familiar abrange somente um destes aspectos, o da punição ao agressor, ou, quiçá, nem mesmo importe em qualquer punição, já que o pai não desejava conviver com a filha, tanto que a abandonou".[6]

Mas o argumento-chave da relatora relacionou-se à noção de cuidado.

Nancy Andrighi observou, inicialmente, que o desvelo e a atenção do pai quanto ao filho, inerentes à referida noção, não podem mais ser vistos como secundários no processo criacional, sendo indispensáveis à formação e desenvolvimento do ser. Nessa direção, para a ministra, nas hipóteses de abandono afetivo, não se está a discutir o amar (faculdade; de natureza subjetiva; de complexa averiguação), mas a exigência legal de cuidar (dever jurídico; de caráter objetivo; constatável). E, ao compreender, pelo exame dos autos, que o recorrente omitiu-se nesse dever, concluiu que ele praticou uma conduta ilícita e, afirmando prejuízos consequentes in re ipsa, pugnou pela sanção indenizatória. O aresto teve a ementa abaixo:

"CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. (...) 7. Recurso especial parcialmente provido".

Regina Beatriz Tavares da Silva, concordando com a tese de Nancy Andrighi, desenvolveu esse pensamento:

"(...) efetivamente, amar não é dever ou direito. Amar é sentimento intangível pelo Direito. A falta de amor, como sentimento, portanto, não pode gerar indenização. Mas o dever do pai e da mãe de ter o filho em sua companhia e educá-lo, de natureza objetiva, está previsto no art. 1.634, I e II do Código Civil. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê também deveres para os pais, como o dever de assegurar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social do filho menor, em condições de dignidade (ECA, arts. 3º, 4º e 5º). Esses, sim, são deveres de natureza jurídica, cujo descumprimento, ao gerar danos, pode acarretar a condenação do inadimplente em pagamento de indenização".[7]

Mas o ascendente, pretendendo reverter a condenação e arguindo divergência de apreciação entre o recurso especial em apreço e os recursos antes expostos (remetidos à 4ª Turma), opôs embargos de divergência. Seria a oportunidade do STJ consolidar a admissibilidade de indenização por abandono ou ao menos reforçar essa vertente. O relator dos embargos, Min. Marco Buzzi, além de votar a favor da indenização, até havia preparado, no voto, a ementa, talvez esperando pela prevalência de sua tese (elaborada  em consonância com o parecer ministerial). Porém, cinco dos nove julgadores, argumentando que a decisão da 3ª Turma decorreu de especificidades do caso concreto e que isso afastava a aduzida divergência quanto à 4ª Turma, não conheceram dos embargos, restando não analisado o mérito recursal. O julgado (EREsp 1.159.242/SP), de 09/04/2014, terminou assim ementado:

"PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. DECISÃO PROFERIDA COM BASE NAS PECULIARIDADES DO CASO. EXCEÇÃO. INEXISTÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICO-JURÍDICA ENTRE OS ARESTOS CONFRONTADOS. RECURSO NÃO CONHECIDO. 1. Nas hipóteses em que ficar evidenciada a divergência entre turmas da mesma seção ou entre turma e seção, cabem embargos de divergência mediante o cotejo analítico dos arestos, demonstrando-se as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados (arts. 541, parágrafo único, e 546, parágrafo único, do CPC, c⁄c os arts. 266, § 1º, e 255, § 2º, do RISTJ). 2. Não se conhece de embargos de divergência, por absoluta inexistência de similitude fático-jurídica entre os arestos confrontados, quando a solução dada ao caso concreto baseou-se, de forma expressa, em situação de excepcionalidade. 3. Embargos de divergência não conhecidos".

Posteriormente, sobre a matéria em questão no Tribunal, surgiram dois acórdãos da 3ª turma, de 2015[8] e 2016[9], e dois da 4ª Turma, de 2017[10] e 2018[11]. Os arestos da 3ª Turma, embora considerando excepcional, admitiram a possibilidade de indenização por abandono afetivo. Em linha com a visão de Nancy Andrighi, compreenderam a existência, no ordenamento brasileiro, do dever, para os pais, de cuidado, o qual abarca um conjunto mínimo de obrigações parentais (entre as quais, convivência) para assegurar à prole inserção social e adequado desenvolvimento psicológico. E, em contextos de abandono, comprovada a transgressão do sobredito dever, caberia a reparação.

Por sua vez, os arestos da 4ª Turma criticaram duramente o entendimento de afeto como dever jurídico e propugnaram ausência de uma obrigação de cuidado afetuoso. Com base nesses argumentos, recusaram a indenização por abandono exclusivamente afetivo e quando atendidos os mandamentos de guarda, educação e sustento dos filhos.

Embora intensa, a discussão não se restringe ao contexto jurisprudencial, sendo perceptível ainda no plano doutrinário, tema do próximo item.

 

3. Controvérsias sobre a reparação no âmbito doutrinário

 

Observando o panorama doutrinário e as discordâncias que o cercam, pode-se citar, ao menos, quatro juristas que   refutam a   possibilidade   de   reparação   por   abandono afetivo: Danielle Alheiros Diniz[12], Francisco Alejandro Horne[13], Murilo Sechieri Costa Neves[14] e Leonardo Castro[15].

Danielle Alheiros expõe a compreensão de que indenizar o filho abandonado significaria exigir, do pai, amor ou afeto, sentimentos que, entretanto, aparecem espontaneamente, não decorrendo de acordos entre pessoas nem podendo ser objeto de cobrança.  Esse pensamento é visível nos seguintes dizeres da doutrinadora:

"Essa tentativa de impor a afetividade entre pais e filhos ou entre quaisquer membros da família destoa do sentido atual de entidade familiar, pois se é o afeto o princípio norteador das relações de famílias, não há que se falar em imposição desse sentimento apenas porque existe um vínculo biológico que liga pais e filhos ou outros parentes consanguíneos. (...) Há até uma contradição em admitir que famílias se constituam a partir do afeto, sem que exista nenhum vínculo biológico e, depois querer que aqueles ligados biologicamente sejam obrigados a manter relações de afetividade, sob pena de ressarcimento pecuniário".[16]

Ao defender a posição assumida, Danielle Alheiros aprecia ainda cada um dos requisitos para a configuração do dever reparatório.

Assim, no contexto de abandono, mesmo que se considere, como ato danoso, a violação do dever de convivência familiar ao invés da ausência de afeto, a autora afirma que o ordenamento não preceitua, nesse caso, a indenização, mas outras sanções, entre as quais, a perda do poder familiar. Quanto ao requisito "dano", considera que só seria reparável se certo e injusto. Porém, para si, o prejuízo pelo abandono seria psicológico e oriundo da insuficiência de sentimento, não sendo injusto, pois inevitável e não ocasionado voluntariamente. Ademais, assevera que nem mesmo uma lide indenizatória poderá eliminar ou compensar o prejuízo, o qual, portanto, é incerto. E alerta, inclusive, para a  possibilidade de uma lide ampliar o dano em virtude dos consequentes desgastes às partes.

No tocante ao nexo de causalidade, Danielle Alheiros reputa-o como de difícil constatação ou comprovação. Segundo a jurista, é raro um dano psicológico resultar exclusivamente de um único evento. Nessa direção, conclui que não é uma circunstância lógica e inquestionável o filho sem afeto paternal ter necessariamente um dano.

E, sobre o requisito "culpa", a doutrinadora propugna, também, que não se configuraria em ocasiões de abandono, através desses argumentos:

"Age com culpa quem poderia agir de maneira diversa, tendo em vista um dever preexistente. Na subjetividade do que seja afeto, concluir-se-á pela impossibilidade de condenar alguém por não ter afeto por outrem, visto que poderá ocorrer do agente ter a consciência plena que deu afeto e o ofendido achar exatamente o inverso, ou achar que o afeto dado não foi o suficiente. (...) não há lógica em culpar alguém por não amar, pois não existem um dever geral de amar como um dever geral de cautela".[17]

Alinhando-se à compreensão acima, Francisco Alejandro Horne visualiza, nas relações paterno-filiais, a existência dos princípios da solidariedade familiar (em prol, principalmente, do filho) e da liberdade (do ascendente). E, conforme o autor, um dos ramos deste postulado seria a liberdade afetiva, de natureza subjetiva, vinculada ao desejo inconsciente e independente da vontade do titular, sendo predominante em relação a qualquer outro princípio para a realização da dignidade. Por conseguinte, o afeto seria imensurável e o pai não estaria obrigado a fornecer-lhe, fatores que, para o doutrinador, inviabilizariam as reparações por abandono afetivo.

Francisco Alejandro reitera esse entendimento nos dizeres abaixo:

"Ao quantificar o afeto, outras situações poderiam ensejar a reparação civil. Haveria dano moral decorrente de maior ou menor grau de afeto; um pai, que possui dois filhos, entretanto, gosta mais de um do que do outro, poderia ser obrigado a ressarcir o filho prejudicado. Enfim, inúmeras situações surgiriam no dia-a-dia com base na quantificação do afeto. A liberdade afetiva está acima de qualquer princípio componente da dignidade da pessoa humana, sob pena de gerar um dano ainda maior para ambos. Seria muito mais danoso obrigar um pai, sob o temor de uma futura ação de reparação de danos, a cumprir burocraticamente o dever de visitar o filho".[18]  

Com pensamento similar, Murilo Sechieri argumenta que, para haver uma obrigação reparatória, seria imprescindível a transgressão de um dever jurídico. E requerer indenização por abandono afetivo implicaria considerar, como o dever violado, a destinação de afeto ao filho, sentimento, porém, incondicional, incoercível. Prosseguindo, o jurista reputa irrazoada a condenação do pai a reparar o descendente quando o distanciamento afetivo, entre ambos, não teria sido consciente ou proposital. Tais argumentos são visualizáveis nessa passagem:

"Não se pode acreditar que o ordenamento jurídico seja capaz de regular as intrincadas relações afetivas entre as pessoas, como se houvesse um modo correto de agir nesse campo, ou como se houvesse algum tipo de padrão de comportamento afetivo considerado adequado. (...) A verdade é que nem todos têm capacidade de amar, ou nem sempre estão disponíveis para doar afeto a outrem. (...) Assim, não parece razoável que a indenização seja fixada com a finalidade de punir o pai ausente, porque não se pode dizer que o distanciamento afetivo tenha sido intencional, consciente".[19]

Assim como Danielle Alheiros, Murilo Sechieri reafirma sua posição com a ideia de que conceder indenização por abandono não afastaria as marcas decorrentes, suportadas pelo filho. Contrariamente, na visão do autor, qualquer disputa judicial entre ascendente e descendente apenas expandiria o abismo afetivo que os envolve. Por fim, o doutrinador acredita que a referida indenização não cumpriria suficientemente o fim dissuasório. Assim, assevera:

"(...) resta saber se a indenização por abandono afetivo desempenharia satisfatoriamente a função pedagógica ou dissuasória. Parece que não. Se já havia uma relação deteriorada - ou até mesmo falta de relação - entre os sujeitos, após o pleito indenizatório, acolhido ou rejeitado o pedido, é praticamente impossível que sejam estabelecidos laços que gerem uma convivência saudável entre as pessoas. A simples existência de litígio judicial a esse respeito, na qual são verbalizadas mágoas tão intensas e profundas, é suficiente para sepultar, em definitivo, qualquer esperança de que a relação entre tais pessoas pudesse vir a ser transformada positivamente".[20]

Por sua vez, Leonardo Castro, além de considerar a pretensão indenizatória um meio de imposição do afeto (como os juristas acima) e entender que a transgressão de deveres parentais já seria punível com a perda do poder familiar, critica a tese de cabimento da reparação por violação do dever de companhia. Segundo ele:

"(...) a tese não merece êxito. O Código Civil, em seu artigo 1.589, prevê a companhia de forma facultativa, sempre observados os interesses da criança. É um retrocesso a consideração da companhia indispensável do pai, pois remete-nos ao retorno do extinto pátrio poder. Uma criança pode viver de forma saudável, em família, sob a guarda de apenas um dos pais, sem qualquer prejuízo ao seu desenvolvimento".[21]

E acrescenta que, havendo a determinação conjunta, perante o abandono, de perda do poder familiar e indenização, existiria o risco de uma situação mais grave. Diversos pais, não por afeto, mas por temer uma condenação, passariam a reclamar o direito de acompanhar ativamente a vida do filho. Mesmo não sendo bons ascendentes, exigiriam a convivência, e a mãe, atenciosa, precisaria partilhar a guarda com uma pessoa com pouco ou nenhum amor pelo descendente. Surgiria, na visão do jurista, uma forma de abandono do pai presente, visto que a ausência de interesse afetivo não se dá apenas com o distanciamento físico.

Em direção oposta, são perceptíveis, pelo menos, cinco doutrinadores que admitem a reparação por abandono afetivo: Paulo Lôbo[22], Maria Berenice Dias[23], Giselda Hironaka[24], Rodrigo da Cunha Pereira[25] e Rolf Madaleno[26]

Paulo Lôbo, ao compreender o abandono como transgressão de deveres legais de paternidade, relacionados ao exercício do poder familiar, assevera que o postulado da paternidade responsável (previsto na Constituição) não se restringe à satisfação do dever de auxílio material. Engloba ainda a assistência moral, obrigação jurídica cuja violação, constatável no abandono afetivo, pode ensejar indenização. O jurista menciona, também, outros deveres (dispostos nos arts. 227 da Constituição e 1.634 do Código Civil) que, descumpridos, respaldariam, em sua visão, a pretensão indenizatória. Assim, diz o autor:

"O art. 227 da Constituição confere à criança e ao adolescente os direitos "com absoluta prioridade", oponíveis à família - inclusive ao pai separado -, à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, que são direitos de conteúdo moral, integrantes da personalidade, cuja rejeição provoca dano moral. O poder familiar do pai separado não se esgota com a separação, salvo no que concerne à guarda, permanecendo os deveres de criação, educação e companhia (art. 1.634 do Código Civil) (...). Portanto, o "abandono afetivo" nada mais é que inadimplemento de deveres jurídicos de paternidade. (...). Por isso, seria possível considerar a possibilidade da responsabilidade civil, para quem descumpre o múnus inerente ao poder familiar".[27]

Fazendo, também, referência à paternidade responsável, Maria Berenice argumenta que a convivência paterno-filial não é direito, é uma obrigação. Destarte, o pai não tem o direito, por exemplo, de visitar o filho, mas o dever. E o afastamento entre ambos, com a violação dessas obrigações, gera, no descendente, sequelas emocionais e prejuízos ao desenvolvimento, passíveis, portanto, de reparação. Para a jurista, em situações de abandono, a indenização seria justificada, ademais, pela desobediência à obrigação de cuidado da prole, com lesão à respectiva integridade psicofísica e ao princípio da solidariedade familiar.

Prosseguindo, Maria Berenice considera que, mesmo sancionável o abandono com a perda do poder familiar (art. 1638, II, do Código Civil), a punição não é suficiente. Discorda, nesse ponto, de Danielle Alheiros e Leonardo Castro, que se embasam nessa circunstância para contestar a pretensão indenizatória. Nota-se a consideração de Maria Berenice na passagem adiante:

"Comprovado que a falta de convívio pode gerar danos, a ponto de comprometer o desenvolvimento pleno e saudável do filho, a omissão do pai gera dano afetivo suscetível de ser indenizado. A omissão justifica, inclusive, a perda do poder familiar, por configurar abandono (CC, 1.638, II). Porém, esta penalização não basta. Aliás, a decretação da perda do poder familiar, isoladamente, pode constituir-se não em uma pena, mas bonificação pelo abandono".[28]

A doutrinadora afirma, também, que, mesmo não sendo o melhor meio de se consolidar uma relação afetiva, é preferível o ascendente apenas visitar o filho por medo da condenação reparatória a incutir, nele, o sentimento de abandono. Diverge aí de Leonardo Castro, que observa, com preocupação, esse efeito da possibilidade condenatória. 

Maria Berenice encerra a defesa à reparação com a visão de que conseguiria satisfazer as funções punitiva e dissuasória. Eis o referido pensamento:

"Dessa forma, o dano à dignidade humana do filho em estágio de formação deve ser passível de reparação material, não apenas para que os deveres parentais deliberadamente omitidos não fiquem impunes, mas, principalmente, para que, no futuro, qualquer inclinação ao irresponsável abandono possa ser dissuadida pela firme posição do Judiciário, ao mostrar que o afeto tem um preço muito alto na nova configuração familiar".[29]

A seu turno, Giselda Hironaka entende configurados todos os requisitos para a indenização por abandono. Afirma que, nesse contexto, a conduta ilícita (do pai) é a infração às obrigações legais de assistência imaterial, educação e proteção, provenientes do poder familiar. Ao abordar o nexo causal, comenta que o afeto não pode se inserir no patrimônio moral de alguém, ou seja, não é da sua deterioração que decorre o dever reparatório. Para a autora, o que gera o vínculo causal é o efeito prejudicial, do abandono paterno, na esfera íntima, moral e subjetiva da prole, afetando a correspondente ordem psíquica.  E o dano representa, em princípio, um prejuízo culposamente ocasionado à personalidade do filho, com lesão a direitos correlatos, como a honra, a dignidade, a reputação social.

Coadunando-se com o pensamento de Maria Berenice, Giselda Hironaka observa ainda, como sustentáculos da pretensão indenizatória, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar.

Adiante, embora perceba o risco de a reparação por abandono alavancar uma "indústria indenizatória do afeto", Giselda Hironaka considera o evento evitável pelo Poder Judiciário, desde que, em cada ocasião, aconteça o necessário exame ético dos fatores envolvidos, buscando, assim, constatar se efetivamente existe algum dano oriundo do abandono. Afinal, conforme a doutrinadora:

"(...) o perigo de banalizar-se a indenização reside em não se compreender, exatamente, na exposição concreta de cada pretensão, o verdadeiro significado da noção de abandono afetivo, o verdadeiro substrato do pedido judicial em questão. É por isso que as corajosas e inovadoras decisões analisadas (...) bem podem, infelizmente, abrir um precedente nefasto, se os seus fundamentos forem utilizados em casos dessemelhantes e mal intencionados, o que pode gerar odiosa avalanche a desencadear uma verdadeira indústria indenizatória do afeto".[30]

Por fim, a mesma jurista critica os que compreendem a pretensão indenizatória como um instrumento de valoração ou monetarização do afeto. Aduz, nesse sentido, que a indenização não objetiva reparar a insuficiência de amor ou o desamor, nem a opção de um pai por um descendente em desfavor do outro. Visa, na verdade, além do fim pedagógico, penalizar a transgressão dos deveres morais inerentes aos direitos personalíssimos do abandonado. Fazendo alusão a um caso jurisprudencial, a doutrinadora imprime esse raciocínio na seguinte passagem:

"(...) aqueles 200 salários mínimos a que o pai de Alexandre foi condenado a pagar-lhe não devolverão o que este não teve, exatamente porque o afeto não tem preço! (...) Não significa nada, a não ser o fato de ter sido o assunto colocado na pauta da sociedade, de modo a fazer que todos prestássemos atenção de alguma forma. Este é o fato principal que pode conter em si, intrinsecamente, aquilo que mais se almeja: a disseminação do valor pedagógico e do caráter dissuasório da condenação. Isso pode ser um significativo fator de reforma de valorações sociais e de alteração de paradigmas jurídicos".[31]

Reforçando os argumentos acima, de crítica à ideia de monetarização do afeto e de embasamento da indenização no descumprimento de obrigações legais, Rodrigo da Cunha Pereira expressa sua posição nessas palavras:

"A lei é muito clara ao impor aos pais a companhia, a guarda, a direção de sua educação. E, se tais deveres são descumpridos em razão da ausência e/ou recusa paterna, estamos diante de nítidos atos ilícitos, gerando o dever de indenizar diante dos sérios danos que causam. (...) Se os pais que desrespeitarem direitos do filho devem responder por isso, a reparação monetarizaria o afeto? De maneira alguma. O valor da indenização é simbólico e tem apenas função punitiva e educativa. Afinal, não há dinheiro que pague o dano e a violação dos deveres morais à formação da personalidade de um filho abandonado ou rejeitado pelo pai".[32]

Também na linha dos doutrinadores supra, Rolf Madaleno afirma que o abandono, ao implicar carências, traumas e agravos morais, com sérias interferências no desenvolvimento metal e físico-social do filho, deve acarretar o dever indenizatório. Segundo o autor, justificaria a obrigação a recusa paterna aos direitos de convivência e referência parental, nos termos do art. 227 da Constituição.

Continuando o raciocínio, o jurista assevera que o descendente possui a necessidade e o direito, e o ascendente, a obrigação de acolhê-lo sócio-afetivamente, obrigação intrínseca à respectiva formação moral e psíquica. E complementa que, negada essa conduta, atua o pai em ilicitude civil, tendo o consequente dever reparatório.

Por fim, Rolf Madaleno faz uma exposição sobre os objetivos da indenização por abandono, em consonância com Giselda Hironaka e Rodrigo da Cunha Pereira. Assim, argumenta:

"(...) o ressarcimento pecuniário não terá a função de compensar, mas cuidará apenas de certificar no tempo a nefasta existência desse imoral e covarde abandono do pai, e muito provavelmente, servirá de exemplo e alerta para os próximos abandonos, bem ao sabor da moderna doutrina que trata dos danos punitivos que são concedidos com uma finalidade dissuasória, preventiva e desincentivadora".[33]

Minuciosamente retratados os embates jurisprudenciais e doutrinários, fica melhor agora responder se a reparação por abandono paterno-filial mostra-se cabível.

 

 

4. Apreciação crítica de controvérsias discorridas

 

Analisando algumas controvérsias expostas, pode-se adiantar que a corrente mais acertada seria a de cabimento da indenização por abandono afetivo (não, porém, em qualquer caso ou em termos absolutos). Para a explicação, oportuno recorrer ao ensinamento de Caio Mário da Silva Pereira, que elenca os fundamentos da obrigação reparatória:

"O fundamento primário da reparação está, como visto, no erro de conduta do agente, no seu procedimento contrário à predeterminação da norma, que condiz com a própria noção de culpa ou dolo. (...) O segundo momento (...) é a ofensa a um bem jurídico. É frequente a referência a este requisito como sendo a verificação de um "dano ao patrimônio". Não nos parece bem posta a expressão, porque a referência ao valor patrimonial pode insinuar a exclusão do dever de reparar o atentado a outros valores jurídicos, de cunho não patrimonial. Daí sustentamos a apuração do segundo requisito com esta fórmula mais genérica, e mais elástica. Em terceiro lugar, cumpre estabelecer uma relação de causalidade entre a antijuridicidade da ação e o dano causado".[34]

No primeiro argumento oposto à referida corrente, dentre os apresentados no item "3" deste texto, considerou-se a indenização como meio de obrigar o pai a destinar amor ou afeto ao filho. A tese foi compartilhada por todos os críticos da reparação, mencionados no sobredito item, e encontra-se em vários julgados que não a concedem.

A tese, entretanto, é falha, pois parece se originar de uma visão reducionista, restrita, ou seja, de enxergar, no abandono afetivo, apenas a insuficiência dos sobreditos sentimentos. Portanto, como se esta fosse a única circunstância inerente ao fenômeno.

Na verdade, o fenômeno é mais amplo, abrangendo, em regra, outras implicações. Há casos de abandono nos quais o ascendente, ao se distanciar da prole, deixa, também, de acompanhá-la diariamente no exercício dos atos, no suprimento de necessidades, e de fornecer-lhe a instrução primária, decisiva para as formações comportamental, moral e intelectual. Destarte, o pai efetua insatisfatoriamente ou não exercita, perante o menor, a convivência, criação e a educação, expressamente previstas nos arts. 227 da Constituição; 1566, IV, e 1634, I, ambos do Código Civil; e 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A consequência é o desrespeito a deveres legais e a consolidação do primeiro fundamento, segundo Caio Mário, da obrigação reparatória.

Nesses contextos, como bem expôs Giselda Hironaka, poderão ser afetadas as integridades psíquica e moral, a honra e a dignidade do abandonado. Embora sem natureza patrimonial, tais bens são intrínsecos a direitos personalíssimos e, pelo raciocínio de Caio Mário, a ofensa a eles é indenizável. Observa-se aí o segundo fundamento, enunciado pelo autor, do dever reparatório. E, configuradas a ofensa e a violação de obrigações legais pelo pai, o nexo de causalidade aparece como um consectário lógico. Portanto, nas situações em apreço, restam preenchidos os três requisitos listados por Caio Mário, ensejando o cabimento da indenização.

Foi exatamente essa a visão consignada no julgamento[35] do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema (dentre aqueles em que houve exame do mérito), já citado neste texto e de relatoria da Min.(a) Nancy Andrighi.

Outro argumento contrário à reparação por abandono (utilizado, como visto, por Danielle Alheiros e Leonardo Castro) foi que, nesse caso, o ordenamento já estabeleceria, como sanção, a perda do poder familiar. De fato, existe o preceito nos arts. 1638, II, do Código Civil e 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Porém, nas duas normas, não há qualquer termo impeditivo ou limitador que defina a exclusividade da sanção ou vede a cumulação com a ordem indenizatória. Ou seja, as regras não obstaculizam o estabelecimento dessa punição. Isso denota a fragilidade do argumento em exame.

Também, em desfavor da pretensão indenizatória, afirmou-se (entendimento de Danielle Alheiros e Francisco Alejandro Horne) que acatá-la significaria monetarizar o amor ou afeto, elementos, por sua vez, íntimos, imateriais e imensuráveis. Trata-se, entretanto, de mais um pensamento ineficiente para obstar a pretensão.

Não é equivocado dizer que amor ou afeto são inquantificáveis. Ambos traduzem sentimentos, fatos psicológicos, sendo abstratos e incorpóreos. Portanto, jamais contendo um valor. Porém, no abandono afetivo, os danos, como asseverado, atingem bens correlatos a direitos de personalidade. Consequentemente, esses danos, ao invés de materiais, são morais, e o fim de indenizá-los não será recompor o patrimônio do lesado ou compensar as perdas financeiramente.

Em reforço às compreensões acima, esta lição de Caio Mário da Silva Pereira:

"Uma vez assentada a regra de que o dano moral é indenizável, esbarra-se no problema da reparação em si mesma. Aqui, encontravam alguns adversários um argumento concreto a dizer que não deveria ser admitida, em razão de não ser a dor conversível em dinheiro. A questão, porém, não devia ser posta nestes termos, (...) como se fosse possível dizer que a uma tal ofensa corresponde um qual padrão pecuniário. (...) Não é assente na noção de contrapartida, pois que o prejuízo moral não é suscetível de avaliação em sentido estrito. (...) Conseguintemente, hão de distinguir-se as duas figuras, da indenização por prejuízo material e da reparação do dano moral: a primeira é reintegração pecuniária (...) ao passo que a segunda é sanção civil direta ao ofensor ou reparação da ofensa (...)".[36]

As finalidades da indenização por abandono serão outras, acertadamente mostradas, por exemplo, por Maria Berenice e Rolf Madaleno: punitiva, pois consistirá em sancionar alguém por uma ação (a transgressão de deveres) que agrediu seriamente o sentimento ético-jurídico predominante em uma comunidade;  e dissuasória, visto que servirá de exemplo e ensinamento à sociedade, alertando os cidadãos a evitar condutas similares à punida, por serem reprováveis em termos ético-jurídicos. Assim, aceitar o pleito reparatório não resultará na quantificação de sentimentos.

Sustentou-se ainda, para impugnar o pleito, que o nexo causal, entre a conduta e os danos, seria de difícil comprovação (tese de Danielle Alheiros). Mesmo considerada a complexidade, esse argumento não afastará, em caráter definitivo e absoluto, a possibilidade indenizatória, pois, nos casos em que se consiga constatar o liame causal através, por exemplo, de perícia ou estudo psicossocial (com entrevistas do pai e do filho), será cabível o pedido de reparação.

Refutados os argumentos adversos, objeto da presente análise, e dadas as explanações construídas, constata-se admissível a indenização por abandono afetivo paterno-filial.

 

Conclusão

 

Cotejando o presente momento com a época prévia à Constituição em vigor, sobretudo até os primórdios do século XX, foram visíveis as transformações nos agrupamentos familiares. De períodos marcados pela tutela constitucional exclusiva às famílias oriundas do casamento; supremacia da modalidade patriarcal; pela desigualdade entre filhos matrimoniais e não matrimoniais, passou-se a um momento de proteção constitucional às diversas espécies familiares; de isonomia, entre os cônjuges, quantos aos direitos e deveres pertinentes à sociedade conjugal; de igualdade entre os descendentes de qualquer origem.

Foi em meio a esse ambiente, resultante das mudanças na estrutura familiar brasileira, que apareceram e se ampliaram, nos últimos anos, os pedidos de indenização por  abandono afetivo paterno-filial. Ou seja, pleitos promovidos por um filho para que o pai pague-lhe uma quantia pecuniária por alegados danos, especialmente morais, decorrentes de um distanciamento entre ambos.  

Entretanto, a indenização por abandono afetivo não tem se mostrado um requerimento de simples apreço, verificando-se diversos embates jurisprudenciais e doutrinários. O Superior Tribunal de Justiça, nos Recursos Especiais nº 757.411/MG e 514.350/SP, afastou a reparação sob o entendimento de o abandono não representar ato ilícito. Já a decisão de mérito, do Tribunal, proferida no REsp nº 1.159.242/SP, determinou a indenização, com o argumento, dentre os utilizados, de afronta pelo pai ao dever (objetivo; averiguável) de cuidado face ao filho. E, no plano doutrinário, a divergência persiste, por exemplo, com Paulo Lôbo, Maria Berenice Dias, Giselda Hironaka, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, como defensores do pleito, e os opositores Danielle Alheiros Diniz, Francisco Alejandro Horne, Murilo Sechieri Costa Neves e Leonardo Castro.

Todavia, examinando os embates travados e regras do ordenamento jurídico, pode-se aceitar a indenização por abandono afetivo.

A maioria dos críticos da indenização, especialmente os opositores sobreditos, parecem desenvolver uma compreensão restrita, simplista, associando o abandono apenas à ausência ou insuficiência de amor, afeto. No mesmo contexto, porém, são observáveis a violação a deveres legais, como a educação, cuidado e criação, e a prática de conduta ilícita. E poderão ser prejudicadas as integridades psíquica e moral, a honra e a dignidade do abandonado, implicando danos à respectiva personalidade. O nexo de causalidade, em tal panorama, será um consectário lógico. Estarão, assim, satisfeitos os requisitos para a determinação da reparação.

Como os prejuízos advindos do abandono afetam a personalidade da vítima, eles são morais e, ao indenizá-los, não se buscará recompor um patrimônio ou compensar, pecuniariamente, as perdas. A indenização terá os objetivos punitivo, para sancionar o pai pela transgressão de obrigações, e dissuasório, como exemplo de ensinamento à sociedade, alertando os cidadãos a evitar atos similares ao sancionado, por serem reprováveis em termos ético-jurídicos. Destarte, essa reparação não significará quantificar ou monetarizar o afeto, argumento, por exemplo, de Danielle Alheiros e Francisco Alejandro Horne. 

Embora os arts. 1638, II, do Código Civil, e 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevejam a perda do poder familiar como punição por abandono, não há, nas normas, qualquer termo limitador que estabeleça a exclusividade da sanção ou impeça a aplicação combinada de indenização. Percebe-se, assim, que a tese de previsão da perda do poder familiar, adotada, dentre outros, por Danielle Alheiros e Leonardo Castro, é falha em afastar a pretensão reparatória.

 E, ainda que, em ocasiões de abandono, o liame causal, entre a conduta e os danos, possa ser de complexa comprovação, essa circunstância não obstará, de maneira definitiva e absoluta, a possibilidade indenizatória. Isso porque, nos casos onde se consiga visualizar o nexo causal através, por exemplo, de perícia ou estudo psicossocial (com entrevistas do pai e do filho), será aceitável o pedido de reparação.

Portanto, pelas considerações acima e pelas exposições traçadas ao longo deste artigo, pode-se reputar cabível a indenização por abandono afetivo paterno-filial. 

 

Sobre o autor
Alan Vinícius Vicente

OAB/PE nº 49435, bacharel pela UFPE e pós-graduando em D. Civil e D. Processual Civil pela Escola Superior de Advocacia-OAB/PE.

Informações sobre o texto

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