As organizações internacionais (OIs) podem ser analisadas conforme diferentes perspectivas teóricas. Em sentido estritamente jurídico, no qual predominam aspectos formais de construção e de funcionamento, as OIs constituem sujeitos de direito internacional, dotadas, portanto, de personalidade jurídica e de direito de contratar (jus contrahendi). Sua origem legal é geralmente um tratado internacional, que recebe a denominação de Carta constitutiva. Essa definição, como é usual na dogmática jurídica, é demasiadamente formalista e restritiva, uma vez que é inadequada ao estudo mais abrangente e profundo das OIs, principalmente no tocante aos impactos reais da organização sobre a realidade internacional e sobre a conduta dos estados. Um exemplo dessas deficiências pode ser observado no caso do sistema multilateral de comercio, no qual o GATT, a despeito de seu funcionamento efetivo por meio século e de sua relevância como principal foro de discussão comercial, não era considerado OI no sentido jurídico, o que acarretava uma discrepância entre sua situação de facto e de jure.
Robert Keohane (1988), sem descurar de aspectos normativos, aprofunda, de forma mais qualificada, a discussão sobre as OIs. O autor, inicialmente, preocupa-se em analisar o fenômeno da OIs com base na ideia mais ampla das instituições internacionais. Em seu texto, Keohane, a despeito de admitir a existência de, pelo menos, duas definições distintas para instituições internacionais, adota aquela que mais se aproxima da ideia de OI: construção social humana, dotada de grau de formalização variável e de objetivos iniciais determinados pelos Estados na Carta constitutiva da organização. Na perspectiva que o autor denomina de racionalista, essa construção humana específica seria regida por regras (ainda que, em muitos casos, não escritas) e teriam por finalidade ampla a facilitação da cooperação internacional.
Com base nessas considerações Keohane, analisar-se-ão dois conjuntos de OIs, dedicados a dois temas distintos: economia e segurança. No primeiro conjunto serão analisados o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial do Comércio (OMC); no segundo, será analisada a Organização das Nações Unidas (ONU), com ênfase especial na atuação do Conselho de Segurança e das operações de manutenção da paz. Ainda que as concepções teóricas usadas na análise sejam diversificadas e variem conforme a OI e o aspecto analisado, pode-se afirmar que a teoria da delegação será predominantemente no estudo das OIs econômicas, e a teoria da ação coletiva mais adequada ao tema da segurança.
O FMI e o BM são as duas principais organizações financeiras internacionais. A origem de ambas, durante a Conferência de Bretton Woods (1944), indica a preocupação dos Estados Aliados, principalmente de Estados Unidos e de Reino Unido[1], com problemas econômicos internacionais: oferta de divisas, balanço de pagamentos, reconstrução de países vitimados pela guerra. Embora tenham essas semelhanças de origem, as duas OIs apresentam diferenças relevantes em seus objetivos e, com o passar do tempo, no grau de autonomia de seu corpo burocrático. Esse último aspecto, em específico, deve ser destacado, pois diz respeito à possibilidade de ação independente da OI, sem controle ou comando direto dos Estados que a constituíram.
O BM, conforme tese de Guimarães (2010), adquiriu, com o tempo, relevante autonomia burocrática em relação aos Estados, diferentemente do que ocorreu com o FMI. Baseado nos conceitos da teoria da delegação, pode-se afirmar que, na conduta do banco (agente), os Estados (principal) têm pouca influência. Em suas ações típicas (concessão de credito, avaliação de projetos e de garantias de pagamento, captação de recursos, fornecimento de assessoria técnica)[2] o BM atua com poucas limitações impostas pelos Estados, ainda que subsistam, em teoria, instrumentos institucionais de retomada de controle mais rígido pelos Estados.
O FMI, por sua vez, apresenta o mesmo grau de autonomia. Como a finalidade do Fundo é prevenir problemas no balanço de pagamentos dos países, e evitar danos sistêmicos à ordem financeira internaciona[3]l, os Estados (denominados de principal, na teoria da delegação), aparentemente, impossibilitaram desenvolvimento maior de autonomia por parte da instituição (que desempenha o papel de agente). Embora compreensível e racionalmente esperado, esse entendimento não é plenamente compartilhado por Lisa Martin (2006). Para essa autora, o Fundo, em certas circunstâncias, atua com grau relevante de discricionariedade, observando, de maneira estrita, seu mandato e seu objetivo sistêmico. Esse exemplo de conduta autônoma ocorreu, por exemplo, no caso de empréstimos concedidos ao Reino Unido. Como este figurava como importante ator do sistema econômico internacional, o Fundo concedeu empréstimos com condições de austeridade atenuadas.
Se essas duas OIs econômicas apresentam autonomia burocrática efetiva (BM) ou potencial (FMI, no entendimento de alguns autores), a terceira organização econômica é exemplo de delegação fraca ou inexistente. A OMC, originária do final da Rodada Uruguai do GATT (1994), e formalizada no Acordo de Marraqueche, é instituição dirigida diretamente pelos Estados (member-driven organization). Além de apresentar orçamento e corpo burocrático limitados, a OMC é dominada, nas suas mais diversas funções (negociação de acordos, direção de comitês, solução de controvérsias, com exceção do órgão de apelação), pelos representantes dos Estados membros, os quais atuam em benefício dos interesses nacionais, em detrimento do interesse e dos valores da própria organização.
Acerca da irrelevância política de muitos aspectos normativos do arcabouço institucional da OMC, deve-se mencionar as considerações de Steinberg (2002), autor que explica a discrepância entre as regras expressamente previstas nos acordos e as práticas decisórias realmente adotadas na condução da OI. Steinberg explica que, de fato, o Acordo constitutivo da OMC garantiu a igualdade soberana dos Estados, expressa, por exemplo, na prática do consenso. Desde os tempos do GATT, entretanto, enquanto o lançamento da Rodada de negociação abarca todos os membros e contempla formalmente seus interesses, no decorrer das tratativas e, principalmente, no desfecho destas, participam apenas as grandes economias, com destaque para EUA, EU e Japão (trilateral), grupo acrescido, em certos casos, do Canadá (formando o quad). Em reuniões informais, paralelas às reuniões oficiais e privativas para convidados, as grandes potências avençavam, de antemão, o acordo que deveria ser aprovado multilateralmente. Nesses acordos formulados na sala verde (Jones, 2004), os pequenos países eram alijados do processo negociador e, posteriormente, tinham sua resistência (organizada em coalizões), desfeita por meio de barganhas, ameaças e ofertas individuais dos grandes países. Os acordos de Blair House, firmados entre EUA e EU para agricultura, são exemplo de atuação baseada no poder (power-based, em vez de rule-based) no âmbito do sistema multilateral do comercio.
O padrão segundo o qual a OI apresenta limitada autonomia burocrática pode ser verificado também nas instituições que tratam da segurança internacional. A Organização das Nações Unidas, a despeito de sua vocação universal e de seu amplo escopo (materializado nos seus diversos órgãos especializados), surgiu com o objetivo principal de manutenção da paz e da segurança internacionais[4]. O órgão essencial para realização desse objetivo, por sua vez, é o Conselho de Segurança (CS), competente para determinar a existência de ruptura ou de ameaça da paz, bem como para escolher as medidas coercitivas cabíveis para eliminação do perigo ou restauração da situação anterior (status quo ante). O CS, em razão de sua composição restritiva e da admissibilidade do veto pelos membros permanentes, constitui garantia institucionalizada de que os preceitos de segurança coletiva da ONU não serão usados contra as cinco potencias permanentes (não coincidentemente, as potencias vencedoras da Segunda Guerra)[5].
A contradição, formal e material, entre o princípio da igualdade soberana dos Estados (expressamente previsto na Carta de São Francisco)[6] e o funcionamento do órgão principal da organização tem sido objeto recorrente de críticas. Conforme explica Daniele Archibugi (1993), a necessidade de reforma na organização tornou-se mais evidente após o fim da guerra fria. A maior parte das propostas de reforma fundamentava-se no déficit democrático da OI e na falta de legitimidade e anacronismo de alguns de seus órgãos, com destaque para o CS. A proposta de criação de uma Assembleia dos Povos (provavelmente subsidiária à Assembleia Geral, em termos funcionais) baseava-se nas palavras do Preâmbulo da Carta de 1945[7] e na contestação do Estado como instância adequada à representação dos indivíduos. No que concerne à Corte Internacional de Justiça (CIJ), as propostas defendiam a automaticidade e obrigatoriedade da jurisdição da Corte e a possibilidade de acesso dos indivíduos ao organismo adjudicatório, propostas que repetem, em outros termos, as sugestões formuladas por Hans Kelsen décadas atrás.
No atinente ao CS, Archibugi enumera várias propostas de reforma. Essas propostas, em linhas gerais, sugerem o alargamento do CS e a alteração das regras sobre o uso do veto. Deve-se ponderar que, a despeito da racionalidade e da legitimidade democrática de muitas das propostas, qualquer reforma da Carta que modifique o funcionamento do CS tem pouca probabilidade de aprovação. Acreditar no contrário implica, esperar, idealisticamente, que as grandes potências renunciariam, voluntariamente, uma prerrogativa que lhes garante prestigio, segurança e exclusividade na determinação dos temas relacionados à guerra e à paz.
O tema das operações de paz está diretamente relacionado à forma como foi construído o CS e o sistema de segurança coletiva. Como, em razão de sua composição e da existência do poder de veto, o CS tende à paralisia decisória nas situações que envolvem o interesse dos membros permanentes, a ONU, em sua prática de mediação constante de diferenças, desenvolveu uma forma menos intrusiva de solucionar conflitos internacionais. Como destacado pelo Secretário-Geral da ONU, o mecanismo das operações de paz está implícito na Carta, mesmo que sua situação documental exata o aloque entre as medidas pacíficas do Capítulo VI e as medidas de força do Capítulo VII da Carta[8].
Marrack Goulding (1993), além de elaborar uma taxonomia detalhada sobre os vários tipos de missão, explica que a grande alteração nas características das PKOs ocorreu após o término da guerra fria. Na década de 1990, por causa do crescimento das demandas por esse tipo de intervenção ao redor do mundo, o número de operações aumentou consideravelmente, as missões tornaram-se mais complexas e mais custosas para os Estados participantes. O aumento vertiginoso de operações de paz evidenciou problemas relacionados à amplitude do mandato, aos abusos cometidos pelas tropas e à incapacidade de controle do agente pelo principal. Esse último problema foi observado, por exemplo, nos casos de Somália e Ruanda, situações nas quais a assimetria de informações entre agente e principal impossibilitou a adoção da conduta mais adequada das tropas.
A disseminação de conflitos localizados e o excesso de demandas por operações de paz refletiu-se também sobre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), principal aliança militar do mundo contemporâneo. A OTAN, em suas atuações, passou a extrapolar âmbito de seu compromisso institucional. Como explicado por Lepgold, as operações da OTAN constituem, conforme a teoria dos bens públicos, bens rivais (exauríveis) e não exclusivos (caso a organização atue em Estados não membros). Essa característica acarreta a perda de interesse dos membros em custear e em participar diretamente das operações militares, desinteresse que gera um risco para própria existência da aliança.
Nesses dois casos concernentes a organizações de segurança internacional, verifica-se um problema persistente de ação coletiva, no qual a racionalidade individual acaba predominando sobre a racionalidade coletiva, comprometendo iniciativas que dependem da colaboração de todos os atores. Em termos de segurança internacional, um CS mais amplo e operações militares multilaterais trariam ganhos sistêmicos para todos os atores diretamente envolvidos e para terceiros (free riders). No entanto, como a reforma institucional do CS e reforço material jurídico das operações pressupõem sacrifícios de curto prazo, os atores encontram dificuldades de se mobilizar na consecução desse objetivo comum. A existência inevitável de free riders também desestimula cooperação entre os atores, o que se verifica, por exemplo, no caso dos problemas decorrentes da utilização excessiva da estrutura militar da OTAN.
Como é possível notar da análise desses dois grupos de OIs, estas não podem ser restritas à perspectiva jurídica. Em suas múltiplas dimensões, as OIs contribuem para o que Keohane definiu como cooperação internacional. É importante notar, entretanto, como destacado pelo próprio Keohane, que a cooperação não implica resultados necessariamente bons ou corretos, a despeito de beneficiar os atores envolvidos. No caso de instituições como o CS, o benefício é claro para seus membros permanentes; em OIs como a OMC, entretanto, como existe uma aparência fantasiosa de igualdade e de legalidade (rule-based) entre os membros, os benefícios de participação são menos claros e, em certos casos, até inexistentes. As diversas teorias, ao extrapolarem uma análise dogmática, oferecem um instrumental analítico inexistente na apreciação meramente jurídica, que se caracteriza pelo formalismo e pelo apego aos documetos legais. A compreensão adequada de um fenômeno complexo como as OIS, bem como uma avaliação adequada de suas dificuldades e dos benefícios gerados para os Estados, demanda a utilização mais frequente e sistemática dessas teorias pelos analistas de fenômenos internacionais. Limitar-se à letra da lei, que, no caso, são os acordos internacionais e documentos oficiais das OIs, implica acreditar, como Pangloss, de Voltaire, que vivemos no melhor dos mundos possíveis, sem atentar para os problemas persistentes de governança internacional e sem compreender o sentido verdadeiro das limitações e das possibilidades dos organismos internacionais.
REFERÊNCIAS
ARCHIBUGI, Daniele. “The Reform of the UN and Cosmopolitan Democracy: A Critical Review.” Journal of Peace Research 30, no. 3 (August 1993): 301–15.
Robert O. Keohane, International Institutions: Two Approaches, International Studies Quarterly, Volume 32, Issue 4, December 1988, Pages 379–396.
GOULDING, Marrack. (1993). The Evolution of United Nations Peacekeeping. International Affairs (Royal Institute of International Affairs 1944-). 69. 451. 10.2307/2622309.
GUIMARÃES, Feliciano de Sá. A autonomia burocrática das organizações financeiras internacionais: um estudo comparado entre o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. 2010. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. doi:10.11606/T.8.2010.tde-20102010-110725. Acesso em: 2019-04-21.
MARTIN, Lisa. (2006) Distribution, Information, and Delegation to International Organizations: The Case of IMF Conditionality. In Delegation and Agency in International Organizations, edited by Darren Hawkins, David Lake, Daniel Nielson and Michael Tierney, pp. 140-64. Cambridge: Cambridge University Press.
STEINBERG, Richard H., In the Shadow of Law or Power? Consensus-Based Bargaining and Outcomes in the Gatt/Wto. International Organization, Vol. 56, No. 2, Spring 2002. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=317500
[1] Essa preocupação estava presente na Carta do Atlântico, que foi firmada entre EUA e Reino Unido.
[2] Os objetivos iniciais estão previstos no art. 1 do Articles of Agreement do International Bank For Reconstruction and Development.
[3] Também, no art. 1 do Articles of Agreement do Fundo Monetário Internacional, estão contidos os objetivos do fundo.
[4] Ver, inter alia, Preâmbulo, art. 1 (2), art. 4 (1), art. 11 (1), art. 23 (1).
[5] A composição do Conselho de Segurança da ONU está disposta no Artigo 23. 1 da Carta da ONU: “O Conselho de Segurança será composto de quinze Membros das Nações Unidas. A República da China, a França, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e os Estados unidos da América serão membros permanentes do Conselho de Segurança. A Assembleia Geral elegerá dez outros Membros das Nações Unidas para Membros não permanentes do Conselho de Segurança, tendo especialmente em vista, em primeiro lugar, a contribuição dos Membros das Nações Unidas para a manutenção da paz e da segurança internacionais e para os outros propósitos da Organização e também a distribuição geográfica equitativa. Deve-se notar que, após o fim da guerra fria, a URSS foi substituída pela Rússia”.
[6] Ver art. 1 (2) da Carta da ONU.
[7] O texto do Preâmbulo da Carta da ONU começa da seguinte forma: “nós, os povos das nações unidas”.
[8] Os Capítulos VI e VII denominam-se, respectivamente, “Solução Pacífica de Controvérsias” e “Ação Relativa a Ameaças a Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão”.