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Reforma do Poder Judiciário e do Ministério Público.

O ingresso nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público

Agenda 04/10/2005 às 00:00

As normas constitucionais inscritas nos arts. 93, I, e 129, § 3.º, da CF, com a redação dada pela EC n. 45/2004, podem ser classificadas como normas de eficácia contida.

            A Emenda Constitucional (EC) n. 45/2004, que se convencionou nominar Reforma do Poder Judiciário e do Ministério Público, erigiu à condição de requisito para o ingresso nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público a comprovação de que o bacharel em Direito, aprovado em concurso de provas e títulos, ostente, no mínimo, três anos de atividade jurídica. Eis o disposto no art. 129, § 3.º, já com a sua nova redação:

            "Art. 129. [...]

            § 3.º O ingresso na carreira do Ministério Público far-se-á mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em sua realização, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação" [1].

            A norma constitucional mantém a exigência de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em sua realização e a vinculação da nomeação à ordem de classificação, mas passa a exigir para o ingresso na carreira novo requisito: do bacharel em Direito exigir-se-á o exercício, no mínimo, de três anos de atividade jurídica.

            A disposição constitucional está vazada em conceito jurídico indeterminado, "plurissignificativo", demandando, dessa forma, do intérprete o trabalho de completude daquela exigência. Assim, é intuitivo que se deva definir o que se pode compreender por atividade jurídica, sem retirar o sentido mínimo decorrente dessa expressão, não é apenas o exercício da advocacia, mas também não pode ser confundido com o próprio bacharelado.

            A interpretação sistemática da Constituição Federal (CF) permite asseverar que apenas ao legislador será dado regulamentar a norma constitucional, porque assim decorre do disposto nos arts. 37, I e II, e 39, § 3.º (parte final) ou mesmo do art. 5.º, XIII, todos da CF. Segundo o sistema constitucional, apenas a lei poderá instituir restrições para a admissão em cargos e empregos públicos ou limitar o exercício de trabalho, ofício ou profissão, é também da CF que decorre a necessidade de lei complementar dispor sobre o Estatuto da Magistratura (art. 93 da CF) e do Ministério Público (art. 128, § 5.º, da CF).

            É, ainda, da interpretação sistemática que pode decorrer a compreensão de que a sobredita norma constitucional detém eficácia contida, porque ao legislador resta a necessidade de ditar o seu conteúdo, reduzindo a discricionariedade do seu intérprete ou aplicador. A exigência constitucional será, assim, objeto de eventual redução de conteúdo, ou seja, a lei poderá (e deverá mesmo) estabelecer o que se pode compreender por atividade jurídica para os fins exigidos pela CF (o ingresso nas carreiras do Ministério Público e da Magistratura). Já existe a exigência constitucional (é inegável), e ao legislador resulta imposto o dever de conter ou de restringir o seu conteúdo.

            Norma de eficácia contida (redutível ou de integração restringível) é aquela "que traz em seu conteúdo a previsão (cláusula de redutibilidade) de que uma legislação subalterna, inferior, poderá compor o seu significado" [2], mas enquanto não for produzida a norma posterior, a norma constitucional terá aplicabilidade plena e imediata. A restrição de conteúdo, diga-se, pode ainda decorrer de outras normas constitucionais, desde que verificados certos pressupostos fáticos (figuram como exemplos as restrições a direitos em períodos de instabilidade e conturbação – arts. 136, § 1.º, e 139 da CF).

            Da técnica de interpretação sistemática, por outro lado, é que se pode retirar conteúdo coordenado da CF, buscando conferir-lhe unidade de sentido em razão de todas as suas disposições, princípios e regras, ainda que seja inviável a eleição de apenas uma solução adequada ou correta para cada hipótese de aplicação de dada norma constitucional. A interpretação sistemática "desempenha importante missão, porquanto é indubitável que uma Constituição não constitui um conglomerado aleatório de artigos, incisos, alíneas e parágrafos, desconectados entre si. Ao invés, apresenta-se de modo coordenado, em feixes orgânicos, procurando formar unidade de sentido" [3].

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            Assim, compreendida como norma de eficácia contida, a exigência comentada já detém aplicabilidade imediata, eficácia plena, a demandar do legislador (e a reserva legal, no caso, é absoluta) a redução ou não do seu campo de incidência, mesmo porque não há, como advertiu MEIRELLES TEIXEIRA, "nenhum preceito constitucional de eficácia jurídica nula, ou de aplicabilidade nula, na Constituição. Por isso mesmo, falamos sempre em aplicabilidade plena ou aplicabilidade limitada, ou reduzida, jamais, porém, de aplicabilidade nula ou inaplicabilidade de preceitos constitucionais" [4].

            Até que sobrevenha a lei (complementar, como visto), deve, entretanto, a Administração Pública (leiam-se o Ministério Público e o Poder Judiciário) recusar a investidura do candidato aprovado o qual não preencha os requisitos indicados na nova norma constitucional, ou seja, somente terá acesso ao cargo de Juiz ou Promotor Substituto os que já ostentarem aquela condição mínima (três anos de atividade jurídica).

            Reconhecida a eficácia mínima da norma constitucional, resta instrumentalizar a sua aplicação imediata, ainda que inexistente a lei de regulamentação.

            Condicionar o ingresso de novos Juízes e Promotores à lei futura é impensável, seja porque afugentaria a razoabilidade ou porque tornaria inútil o princípio da continuidade inerente em todas as atividades, notadamente as próprias de Poder do Estado ou de instituição essencial à Justiça e ao Estado Democrático de Direito. Do mesmo modo, negar aplicabilidade para a exigência constitucional corresponderia a tornar inócua a inovação desejada pelo constituinte, preceito constitucional supostamente inútil.

            Conspira contra a segurança jurídica a definição casuística do que se pode compreender por atividade jurídica (o que ocorreria se o exame do atendimento do requisito fosse delegado à banca de concurso?), e também não homenageia o princípio da razoabilidade a tese de que novo ingresso nas carreiras somente será viável após a edição de norma infraconstitucional.

            Assim, resta a adoção de outra solução advinda do trabalho de hermenêutica que privilegie o sistema e a unidade da CF, favorecendo, ao mesmo tempo, os princípios de isonomia, de impessoalidade, de continuidade das atividades administrativas e de razoabilidade.

            Resulta para a própria Administração (do Ministério Público e do Poder Judiciário) o desvendamento da solução capaz de viabilizar a aplicação da norma constitucional, ofertando critérios impessoais que homenageiem aqueles princípios constitucionais. Solução que não ignore a já existente força cogente da norma constitucional e, ao mesmo tempo, preveja soluções aplicáveis indistintamente ou a partir de critérios impessoais.

            A solução que pode ser concebida (também emergente do sistema constitucional) decorre da possibilidade de a Administração editar decretos ou regulamentos autônomos, seja a ordenar a extinção de cargos públicos, quando vagos, seja para definir o seu próprio perfil organizatório (confira art. 84, VI, da CF).

            Ainda que se possa estabelecer limites e críticas à atuação independente da Administração Pública, por seu aparente contraste com o princípio da legalidade estrita (arts. 37, caput, e 5.º, II, da CF), parece-nos acertado supor que, para uniformização de critérios, devem o Poder Judiciário e o Ministério Público, até que sobrevenha norma infraconstitucional, editar norma independente ou autônoma a qual regulamente a exigência constitucional, empregando, para tanto, e em razão do princípio da simetria, o permissivo citado e deferido para a Chefia do Executivo, ainda que não sejam todas as atribuições elencadas na regra do art. 84 da CF aplicáveis a outros Poderes do Estado ou de instituições públicas.

            É inegável, entretanto, que o Ministério Público e o Poder Judiciário (notadamente) reúnem autonomia administrativa e podem ditar atos administrativos normativos orientados para a sua organização e seu funcionamento, desde que não sejam contrastantes com princípios e regras constitucionais ou mesmo legais. A vigência da norma regulamentar, por essa razão, não poderá superar o que vier a ser estabelecido na necessária regulamentação legal nem com ela contrastar.

            Assim, para a regulação primária da exigência constitucional, pode o Ministério Público estabelecer em ato próprio, de elaboração privativa do órgão colegiado a quem a lei atribui competência para tanto (por exemplo, o Colégio de Procuradores), regulamento capaz de permitir a aplicação da norma constitucional a qual já detém eficácia plena (e assim terá até que sobrevenha a lei necessária à regulação definitiva).

            A solução dada permitirá a continuidade da atividade administrativa, que há de ser ininterrupta e não pode ficar condicionada à atividade legiferante incerta, e não ignora a eficácia decorrente da norma constitucional citada.

            Na regulação interna, a comprovação da atividade jurídica (para aqueles fins) poderá ser anterior ao bacharelado (como ocorre em relação aos serventuários da Justiça ou servidores do Ministério Público e da Polícia Judiciária), ser contemporânea ao curso de Direito (por exemplo, estagiário oficial em instituições ou órgãos públicos) ou posterior (advocacia, exercício da carreira de Delegado de Polícia, de Procurador do Estado ou do Município, da Advocacia-Geral da União etc.). Somente não poderão ser aproveitados os estágios realizados como condição para o bacharelado ou o obrigatório para a conclusão do curso de Direito (hora-atividade, prática jurídica ou escritório experimental), porque se confundem com o primeiro dos requisitos (ser bacharel em Direito).

            Atividade jurídica pode ser compreendida como sendo o desempenho material, sistemático, perene ou transitório de funções relacionadas diretamente à temática jurídica, capazes de significar aprendizado e experiência pessoal nas lides forenses ou jurídicas. Não é própria ou privativa da advocacia, como não é realizável apenas pelos bacharéis em Direito. Disso resulta que não se poderá exigir o cômputo do período mínimo posterior ao bacharelado ou daqueles que ostentem necessária inscrição nos quadros da OAB.

            A exigência agora incorporada ao texto constitucional é claramente redutora da liberdade de atuação profissional, relacionada inegavelmente a direito fundamental e, por isso, merece sempre interpretação restritiva.

            Por fim, os requisitos devem ser satisfeitos para o ingresso na carreira, ou seja, deverão ficar demonstrados ao tempo da nomeação ou como condição para a investidura ou provimento do cargo. Ainda que a inscrição possa ser efetuada sem estarem presentes os dois requisitos (bacharelado em Direito e três anos de atividade jurídica), a aprovação e a nomeação dos aprovados ficarão sujeitas à prévia comprovação de que o candidato satisfaz os requisitos para a investidura ou provimento do cargo, atendendo a nomeação, obrigatoriamente, ao resultado divulgado (a ordem de classificação). Nada impede, assim, que a satisfação dos três anos exigidos ocorra no decorrer do concurso de ingresso, mas deverá anteceder à divulgação do resultado (a qual vincula a nomeação dos aprovados).

            Solução que se nos apresenta adequada é a que estabelece duas fases distintas de inscrição – preliminar e definitiva –, reservada a última apenas aos que estiverem habilitados para a submissão da última fase das provas de conhecimento (a de provas orais), não se podendo negar, porém, inscrição definitiva ao candidato que demonstrar a possibilidade de vir a preencher o requisito até o término do concurso e a divulgação do resultado. O termo final de cômputo do prazo será, entretanto, sempre o da proclamação dos resultados e da lista de aprovados (atos que vinculam a nomeação, como visto).

            Dessa forma, podemos alinhavar as seguintes conclusões:

            a) as normas constitucionais inscritas nos arts. 93, I, e 129, § 3.º, da CF, com a redação dada pela EC n. 45/2004, podem ser classificadas como normas de eficácia contida;

            b) assim consideradas, dependerão de posterior complementação que lhes afirme o conteúdo e a abrangência, dado que a organização do Poder Judiciário e do Ministério Público deverá ser obtida por lei complementar (arts. 93, caput, e 128, § 5.º, da CF);

            c) normas de eficácia contida, no entanto, reúnem eficácia plena e aplicabilidade imediata, ainda que possam receber restrição posterior;

            d) o Poder Judiciário e o Ministério Público, em respeito ao princípio da continuidade das atividades administrativas, devem providenciar a edição de atos administrativos capazes de viabilizar a aplicação da exigência constitucional;

            e) a aplicação da exigência constitucional deve respeitar os princípios de isonomia, impessoalidade e razoabilidade, exigindo-se a edição de atos administrativos normativos capazes de inibir a eleição de critérios pessoais ou subjetivos para a determinação de seu conteúdo;

            f) o Poder Judiciário e o Ministério Público, quando indispensável e visando à definição de sua organização administrativa, deverão exercitar função normativa ou regulamentar que poderá ser extraída do permissivo contido no art. 84, VI, da CF;

            g) na definição da abrangência do conceito jurídico indeterminado (atividade jurídica), a interpretação deverá ser restritiva, porque é associada à de direito fundamental (liberdade de atuação profissional);

            h) atividade jurídica não corresponde ao exercício de ofício profissional privativo da advocacia, e as normas constitucionais não vinculam o cômputo do prazo a período posterior ao bacharelado;

            i) atividade jurídica pode ser tida como o exercício de funções capazes de conferir experiência profissional, aprendizado ou eficiência relacionados às lides forenses ou mesmo jurídicas;

            j) a exigência somente poderá ser dirigida para o ingresso nas carreiras, e a sua satisfação poderá ocorrer até a proclamação do resultado ou o término do concurso.


Notas

             [1] A regra é idêntica para o ingresso na Magistratura (art. 93, I).

             [2] CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ELIAS ROSA, Márcio Fernando; SANTOS, Marisa Ferreira dos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 29.

             [3] BULOS, Uadi Lammêgo. Manual de Interpretação Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 35.

             [4] MEIRELLES TEIXEIRA, J. H. Curso de Direito Constitucional. Organizado e atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 291.

Sobre o autor
Márcio Fernando Elias Rosa

promotor de Justiça em São Paulo, professor da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo e do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSA, Márcio Fernando Elias. Reforma do Poder Judiciário e do Ministério Público.: O ingresso nas carreiras da Magistratura e do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 823, 4 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7363. Acesso em: 5 nov. 2024.

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