O conteúdo jurídico do principio da vedação a decisão surpresa
O artigo 10 do CPC estabelece que o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
E uma das grandes novidades do vigente código de processo civil, de modo a aprimorar e a qualificar o contraditório nas demandas judiciais, em face do caráter cooperativo consagrado no novel diploma.
Trata-se de proibição da chamada decisão surpresa também conhecida como decisão de terceira via, contra julgado que rompe com o modelo de processo cooperativo instituído pelo Código de 2015 para trazer questão aventada pelo juízo e não ventilada nem pelo autor nem pelo réu.
No que tange a sua amplitude, a cooperação aqui contemplada impõe ao tribunal ou Juízo conceder às partes a oportunidade de manifestação sobre qualquer questão de fato ou de direito.
Conforme a mens legis do referido dispositivo mostra-se vedada decisão que inova o litígio e adota fundamento de fato ou de direito sem anterior oportunização de contraditório prévio, mesmo nas matérias de ordem pública que dispensam provocação das partes.
Deste modo, somente argumentos e fundamentos submetidos à manifestação precedente das partes podem ser aplicados pelo julgador, devendo este intimar os interessados para que se pronunciem previamente sobre questão não debatida que pode eventualmente ser objeto de deliberação judicial.
Tolhe-se, portanto a visão maniqueísta, porquanto o processo contemporâneo não se faz com protagonismos e protagonistas, mas com equilíbrio na atuação das partes e do juiz.
Sob este novo panorama, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região terá que julgar novamente uma ação extinta sem julgamento de mérito por insuficiência de provas, sem que o fundamento adotado tenha sido previamente debatido pelas partes ou objeto de contraditório preventivo, por força da decisão proferida pela E. 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça [11].
É uma exceção ao princípio do iura novit curia, de modo a consagrar um contraditório qualificado, como forma de regatar a credibilidade e a tão almejada segurança jurídica nas decisões judiciais, conforme pondera a doutrina contemporânea [12]:
“É certo que a liberdade outorgada ao tribunal, no que se refere à eleição da norma a ser aplicada, independentemente de ser ela invocada pelos litigantes, decorrente do aforismo iura novit curia, não dispensa a prévia manifestação das partes acerca da questão alvitrada pelo juiz, em inafastável homenagem ao princípio do contraditório. Assevere-se, com prestigiosa doutrina, que este cuidado do legislador não concerne apenas ao interesse das partes, mas se encontra também voltado ao próprio interesse público, na medida em que a qualquer surpresa, qualquer ocorrência inesperada, torna-se mais distante a credibilidade da sociedade na administração da justiça”
Vale ressaltar que o artigo 10 é um desdobramento do caput artigo 9º, também do CPC, que ordena ao Estado-juiz o seguinte: “não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”.
Prestigia-se, portanto, o contraditório em sua plenitude, porquanto o ato decisório estabelecido em sede de sentença ou acórdão é derivado da participação concreta no iter de formação, dos jurisdicionados, por meio de seus advogados, cujos direitos tutelados o estado-juiz deve zelar, por meio de uma prestação jurisdicional satisfatória, lógica e previsível.
Conclusão
O caráter cooperativo do novo CPC rompe com o binômio informação-reação do contraditório original das contendas.
Antes, bastava ao jurisdicionado saber sobre o motivo de ter sido demandado e de reagir, nos termos da defesa e recursos, e da ampla defesa garantida por lei.
Contudo, com o decorrer dos tempos, verifica-se que na verdade a ampla defesa e o contraditório era apenas um direito formal e não substancial, no que tange a satisfação das demandas.
As contendas judiciais são verdadeiros enredos de filmes e de peças de teatro cuja participação de todos os envolvidos é de fundamental importância para o desfecho, coeso, equilibrado e lógico de sua trama.
Conforme frisamos acima, o processo contemporâneo não se faz com protagonismos e protagonistas, mas com equilíbrio na atuação das partes e do juiz, que também é destinatário do contraditório.
Assim sendo, as partes do processo – autor, réu e juiz, devem ter todas as possibilidades de influir no resultado final do processo, com participação ativa, por meio da dialética técnica e com a utilização das provas admitidas no ordenamento jurídico.
A dialética aqui aventada dar-se-á por meio de um maior dialogo do juiz, sendo imprescindível que o mesmo, conduza o “enredo” judicial, e, peça esclarecimento as partes quando necessários e declare quais as questões de fato e de direito que ele entende serem imprescindíveis para a resolução do litígio que lhe foi apresentado.
A qualificação do contraditório aqui defendido e consagrado almeja uma cognição exauriente no ato de julgar, representada pelo trinômio informação-reação-participação, cuja decisão final, lógico e congruente, seria fruto do trabalho de todos os participantes do certame judicial.
Reprisa-se: o processo judicial contemporâneo não se faz com protagonismos e protagonistas, mas com equilíbrio na atuação das partes e do juiz, de forma que o feito seja conduzido cooperativamente pelos sujeitos processuais.
A cooperação processual e o dever de consulta são traços característicos do novel diploma processual cível, refletido em diversos de seus dispositivos (artigos 5º, 6º, e 9º) cuja inobservância violaria não só um garantia constitucional (LV do art. 5º da CF) como a própria sistemática do processo cível, que consagra o cooperativismo processual.
A segurança jurídica, nesta nova concepção, é representada pela legítima confiança de que o resultado do processo será alcançado mediante fundamento previamente conhecido e debatido pelas partes no processo.
Caso contrário, conforme bem acentua o Professor Marinoni [13]:
“Haverá afronta a colaboração e ao necessário diálogo no processo, com violação ao dever judicial de consulta e contraditório, se omitida as partes a possibilidade de se pronunciarem anteriormente “sobre tudo que pode servir de ponto de apoio para a decisão da causa, inclusive quanto aquelas questões que o juiz pode apreciar de oficio”
E, Cassio Scarpinella Bueno [14]:
“(…) não há espaço para duvidar que a realização de um pleno contraditório, de uma ampla defesa, de um devido processo legal, em que se assegure ampla possibilidade de participação, de diálogo, de cooperação entre o magistrado, as partes e quiçá eventuais outros sujeitos processuais, todos voltados, em última análise, para o proferimento de melhor decisão jurisdicional, impõe, adotando-se as premissas doutrinárias que abriram o presente item, a realização de uma cognição exauriente”
Não se ignora que a aplicação desse novo paradigma decisório enfrenta resistências e causa desconforto nos operadores acostumados à sistemática anterior.
Contudo, o Direito, como qualquer ciência, encontra-se em constante evolução e aprimoramento, não podendo ser confundido com leis e burocracias ali intrínsecas.
Nenhuma dúvida, portanto, quanto à responsabilidade do estado-juiz em assegurar a efetividade do contraditório, não só como mecanismo de aperfeiçoamento da jurisdição, mas também como de democratização do processo e de legitimação decisória.
Afinal de contas, transpondo um pensamento de Carl Sagan [15] para a esfera do contraditório judicial e sua dialética, “a cura para um argumento falacioso é um argumento melhor, e não a supressão de ideias”.
Referências bibliográficas
[1] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 15ª edição. P. 639. Editora Forense.
[2] [3] [4] JUNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª edição. Editora RT, P. 172, 217 e 218.
[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 5ª. Edição, Malheiros editores. Volume II, P. 127-128.
[6] CAVALCANTI, Marcos de Araújo e Natali Peppi. Conceito processual de sentença no novo Código de Processo Civil. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-out-22/opiniao-conceito-processual-sentenca-cpc. Capturado em 18/11/18.
[7] COELHO, Glaucia Mara. Código de Processo Civil Anotado. AASP. Digital. 2015. P. 364.
[8] [9] CONCEIÇÃO, Maria Lucia Lins. Código de Processo Civil Anotado. AASP. Digital. 2015. P. 788.
[10] NEGRÃO, Theotônio e GOUVEA, José Roberto F. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, 40ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008, pág. 577
[11] STJ. RECURSO ESPECIAL: REsp n. 1.676.027 – PR (2017/0131484-0). Relator. Ministro Herman Benjamim. DJe: 11/10/2017.
[12] TUCCI, José Rogerio Cruz e. Código de Processo Civil Anotado. AASP. Digital. 2015. P. 21.
[13] MARIONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 209.
[14] BUENO, Cassio Scarpinella Bueno. Amicus curiae e processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 92.
[15] SAGAN, Carl Edward. O Mundo Assombrado Pelos Demônios, A ciência vista como uma vela no escuro. The Demon-haunted World, título original em inglês. São Paulo: Companhia de Bolso, 1996.