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“TEORIA DEMOCRÁTICA DA ILEGALIDADE NÃO VIOLENTA”

Agenda 07/05/2019 às 15:57

Nos últimos anos, o aumento da violência no mundo tem sido visível. Porém, não se pode confundir violência com criminalidade - organizada ou não -, e mesmo criminalidade com ilegalidade. São conceitos distintos de uma mesma realidade: o desacerto social.

INTRODUÇÃO

            O jornal Folha de São Paulo, edição de 30-07-2001, página A3, publicou artigo do renomado professor BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugual), tratando dos aspectos da globalização econômica e dos movimentos populares a ela contrários, justificando, ainda, a criação de uma “teoria democrática da ilegalidade não violenta”, e defendendo que “Todos os grandes movimentos democráticos começaram com ações ilegais (manifestações e greves não autorizadas, ação direta e desobediência civil)”.

            Conforme o entendimento esposado pelo citado autor, seria razoável supor que os meios empregados pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), em sua luta pela reforma agrária no Brasil, com a ocupação de prédios públicos, acampamentos defronte ao Congresso Nacional, bloqueios de rodovias, saques a empresas privadas, seriam perfeitamente justificáveis ante a “teoria democrática da ilegalidade não violenta”.

1. Violência, criminalidade e ilegalidade 

            Nos últimos anos, o aumento da violência no mundo tem sido visível. Porém, não se pode confundir violência com criminalidade - organizada ou não -, e mesmo criminalidade com ilegalidade. São conceitos distintos de uma mesma realidade: o desacerto social.

            A violência pode ser traduzida como a violação de uma convenção humana de comportamento, ou seja, a contrariedade de uma condição de inviolabilidade física ou moral aceita pela maioria e, as vezes, positivada no ordenamento jurídico, visando à proteção do ser humano ou do ambiente onde vive, incluindo-se os animais, plantas etc.

            Já a criminalidade é a ocorrência de condutas contrárias aos preceitos legais inibidores da violência, sendo a desobediência direta ou indireta aos ditames legislativos materializados nas leis penais.

            Quanto à ilegalidade, ela tanto pode ser verificada sob o prisma da violência quanto da criminalidade, dependendo do espectro analítico do ato contrário à condição humana ou à convenção social ou à regra legal enfocada.

            Violência, criminalidade e ilegalidade são vertentes do mesmo tronco - como já afirmado -, do desacerto social, do descompasso entre as perspectivas sociais e a realidade plausível, nada obstante a crença de que o homem é o senhor do seu próprio destino.

            Assim, verifica-se que o maior impasse hoje é saber se o combate à criminalidade pode ser realizado sem se ferir a liberdade política do indivíduo. Para a corrente que defende penas mais duras e prisão até para pequenos delitos, “(...) as pessoas trancafiadas nas prisões não estão em condições de cometer crimes (...)”, o que acarreta a ausência de prejuízos à sociedade e à economia, conforme opinião do prêmio Nobel de economia em 1992, GARY S. BECKER, professor da Universidade de Chicago (EUA) e pesquisador do Hoover Institution, em artigo publicado originalmente na Business Week e reproduzido pelo jornal Gazeta Mercantil[1]

2. Democracia e controle jurisdicional dos movimentos populares

            Primeiramente, cabe a indagação: Qual o significado de democracia?

            Buscar o significado da palavra democracia é reviver importante lição de Hans Kelsen[2], remontando às raízes históricas e epistemológicas do termo:

                        “O significado original do termo ‘democracia’, cunhado pela teoria política da     Grécia antiga, era o de ‘governo do povo’ (demos = povo, kratein = governo). A          essência do fenômeno político designado pelo termo era a participação dos governados      no governo, o princípio de liberdade no sentido de autodeterminação política; e foi   com esse significado que o termo foi adotado pela teoria política da civilização    ocidental.”

            Atente-se para o fato de que democracia não significa, faticamente,  uma vontade do povo voltada para a realização do que se entende por bem comum, mas sim um governo no qual o povo participa direta ou indiretamente das decisões de uma assembléia popular, uma câmara parlamentar, um conselho, fato aceito nos regimes democráticos de direito.

            Já Marcelo Navarro Ribeiro Dantas[3], em obra profícua ainda dos tempos de universitário, demonstrando uma precoce cultura jurídica, asseverou:

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                        “A luta pela proteção aos direitos individuais, desde a antiguidade, tem   provocado, por meios e instrumentos diversos, nos ordenamentos jurídicos de quase          todos os Estados, uma evolução. Uma caminhada na direção do acatamento cada vez   maior àqueles direitos. Um processo em que a autoridade, antes despótica e suprema,         foi sendo, progressivamente, impedida de malferi-los e obrigada a respeitá-los.”

           

            Essa luta pelo respeito aos direitos é inerente à democracia, originando “meios e instrumentos” de garantia às conquistas verdadeiramente valiosas na caminhada em busca do Estado Democrático de Direito.

            Sobre o Estado Democrático de Direito, UADI LAMMÊGO BULOS[4] afirma que:

                        “É nesse sentido que se invoca o primado do Estado Democrático de Direito,      como bandeira de defesa das liberdades públicas, para que nenhum dos Poderes do Estado desconheça direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente   asseguradas.” 

            Sobressai, dentre elas, a “garantia das garantias constitucionais”, o princípio do controle jurisdicional ou princípio da proteção judiciária que assegura que, num Estado Democrático de Direito, a tirania e os atos arbitrários sejam solapados. Não se admite Estado Democrático de Direito sem a existência de controle jurisdicional sobre os atos dos outros poderes, órgãos ou agentes.

            Nesse aspecto, JOSÉ DE ALBUQUERQUE ROCHA[5], com a pertinácia de sempre, afirma categoricamente:

                        “Com efeito, o Legislativo está limitado pela Constituição, pelo povo e,   principalmente, pelo Poder Judiciário como veremos a seguir.”

           

            O controle jurisdicional deve ser visto como garantia da democracia. É controle para assegurar a existência da norma democrática, não para possibilitar o nascimento de uma “ditadura dos juízes”.

           

            O confronto entre essa necessidade do controle jurídico ser exercido pelo Judiciário, incidindo sobre os demais poderes e sobre todas as pessoas físicas e jurídicas, e a existência duradoura de uma veia democrática alimentadora do Estado Democrático de Direito é o problema maior da própria democracia.

            O mesmo paradoxo pode ser utilizado na versão conflituosa do exercício do controle dos outros poderes, pelo Judiciário, e a permanência do ideal democrático, com a harmônica tripartição de funções concebida pela doutrina liberal.   

            Entretanto, não se pode solapar a primazia do Direito com ações de cunho ilegal, mesmo que não violentas. A regra geral é a do respeito à lei, inclusive pelo contexto democrático em que ela é produzida.

            Contudo, o que pesa nas atitudes dos movimentos populares e suas ações ilegais, violentas ou não, é a contestação ao fato da lei ser produzida no seio de uma sociedade predominantemente elitista, com seus legisladores retirados de um meio social contaminado pelos preconceitos.

            Diante disso, compete ao Judiciário demonstrar que é o fiel da balança entre os poderes constituídos e, mesmo tendo em seu arcabouço funcional membros da chamada elite, que a contaminação elitista não tem predominância em face dos mecanismos de controle interno sobre eles exercidos.

            O difícil, novamente, é tornar plausível essa confiança.

3. Legitimidade democrática dos movimentos populares           

            Não se poderia negar que os movimentos populares possuem legitimidade para reivindicar, em nome das “massas”, as alterações sociais que lhes parecem mais benéficas.

            Contudo, interpretando o papel das massas nos movimentos sociais, PETER DRUCKER[6], guru da Administração mundialmente reconhecido e autodenominado “ecologista social”, afirma que:

                        “(...) As massas são completamente incapazes de qualquer participação social       ativa que pressuponha valores sociais e uma organização da sociedade. O perigo das           massas reside precisamente em sua incapacidade de participar, em sua apatia,    indiferença cínica e completo desespero. Como não dispõem de posição e função          sociais, sociedade para elas nada é além de uma ameaça demoníaca, irracional e   incompreensível. Como não têm crenças básicas que poderiam servir de base a um   poder legítimo, qualquer autoridade legítima lhes parece tirânica e arbitrária. As           massas, portanto, estão sempre dispostas a seguir um apelo irracional ou a submeter-se     a um tirano arbitrário, bastando que este prometa uma mudança. Como párias da             sociedade, as massas nada têm a perder – nem mesmo seus grilhões. Sendo amorfas,      não possuem estrutura própria que possa resistir a uma tentativa tirânica arbitrária de moldá-las.”

            A acuidade do texto é merecedora de elogios. Realmente, a História tem demonstrado que as massas são utilizadas, quase sempre, como meras “massas de manobra” ou “bucha de canhão” pelos detentores de Poder. No Brasil, o MST tem sido instrumentalizado por facções políticas do Partido dos Trabalhadores, muitas vezes atrapalhando com suas nefastas ações guerrilheiras as próprias prioridades do partido.

            Dentro deste contexto, não se deve negar que o MST é uma alavanca social, porém não será descumprindo a lei positivada que será levada a bom termo uma reforma social abrangedora da ampla base dos economicamente carentes existente no país.

CONCLUSÕES

            A teoria da ilegalidade não violenta pressupõe a existência de leis injustas e, portanto, eticamente reprováveis, sendo passíveis de desobediência pelos movimentos populares.

            A democracia plena não impede o exercício do controle jurisdicional previsto no ordenamento constitucional brasileiro.

            A violência, a criminalidade e a ilegalidade são conceitos distintos de uma mesma realidade: o desacerto social.

            O MST é uma alavanca social, porém também está obrigado ao cumprimento da lei positivada.

            Uma reforma social abarcadora da vasta multidão de carentes somente será viável com o respeito à lei e aos princípios democráticos insculpidos na Carta Constitucional.


[1]              Linha dura contra a criminalidade é eficaz. São Paulo: Gazeta Mercantil, 11.01.99, p. A-3.

[2]              A Democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 140.

[3]              Apontamentos sobre Mandado de Segurança. Natal: CERN, 1984, p. 15.

[4]              Comissão Parlamentar de Inquérito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 52.

[5]              Estudos sobre o Poder Judiciário, São Paulo: Malheiros, 1995, p. 63.

[6]              A sociedade. São Paulo: Nobel, 2001, p. 22.

Sobre o autor
R. Carlyle

MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas – Escola de Direito Rio (2009). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará - UFCE, obtendo o título de Master in Science com a dissertação Controle Jurisdicional das Comissões Parlamentares de Inquérito (2002). Participou II Curso de Especialização em Direito Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (1989). Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais - DIREITO pelo Instituto de Ciências Humanas de Mossoró da atual Fundação Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – FUERN (1986). Livros publicados A “Reinvenção” do Judiciário. Scortecci editora, SP, 2014. Desafios ao Direito no Século XXI. Scortecci editora, SP, 2011. Temas de Direito. Scortecci editora, SP, 2011. Juiz Presidente da Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis, Criminais e da Fazenda Pública do Rio Grande do Norte (2017-2020). Juiz de Direito titular da 3ª Vara Criminal da Comarca de Natal (Capital), desde 1997. Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (biênio 2013-2014). Juiz suplente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (biênio 2005-2006). Juiz Auxiliar do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte nas Eleições de 2006. Professor, orientador e examinador no Curso de Preparação à Magistratura (especialização lato sensu) da Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte - ESMARN./TJRN. Juiz Preceptor nos Cursos de Formação Inicial de Magistrados na ESMARN/TJRN. Lecionou “Sentença Penal” na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte – FESMP; “Direito Penal” no curso de Direito da Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte – FARN (2001); e “Processo Penal” no curso de Direito da Universidade Potiguar – UNP (1999-2000). Ministrou aulas de “Direito Eleitoral” na Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Norte e de “Direito Processual Penal” na Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Norte.

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