SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1.0.O MINISTÉRIO PÚBLICO E O SEU PAPEL CONSTITUCIONAL.CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTADO DE DIREITO E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO; 2.0. O Ministério Público e o Controle Externo das Atividades Policiais. 3.0. A FUNDAMENTAÇÃO LEGAL-CONSTITUCIONAL DAS ATIVIDADES POLICIAIS, E OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA PROPORCIONALIDADE; 3.1.. As Atividades Policiais e o Poder de Polícia. Identificação de violações a Direitos, em Operações e Abordagens Policiais; 4.0.O ABUSO DE AUTORIDADE NAS OPERAÇÕES E ATIVIDADES POLICIAS E O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NESTA HIPÓTESE; 4.1 Responsabilidade Civil e Administrativa e o Abuso de Autoridade;5.0.CONCLUSÕES; 6.0.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
Visa este trabalho a realizar um enfoque jurídico a respeito das prerrogativas e finalidades institucionais, conferidas, legal e constitucionalmente, ao Ministério Público, principalmente, em face dos Princípios e Preceitos do Estado Democrático de Direito, de modo a deslocar a discussão no sentido de se estabelecer a abrangência e forma de se exercer o denominado controle externo das atividades policiais, enquanto prerrogativa institucional do Ministério Público.
Hodiernamente, o cidadão vem sendo, diária e quotidianamente, submetido a averiguações e abordagens policiais, e as estatísticas indicam a produção, por vezes, de resultados danosos para a sua integridade física e moral, e até mesmo, para sua própria vida.
Procurarei estabelecer, como tema central desta discussão, o modo e a forma pelos quais o Ministério Público, por meio de seus membros, deverá exercer o denominado controle externo da atividade policial, principalmente, em face do conhecido Princípio do Promotor Natural; intentando fixar a abrangência de atuação (atribuições) do Ministério Público.
Ressaltarei, como núcleo de discussão, a proteção aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, conforme previsão e fundamentação constitucionais, pelo Ministério Público, na fiscalização e controle externo das atividades policiais, mormente, quanto à legalidade e licitude da atuação policial.
Efetivarei uma breve incursão sobre as modalidades de decretação de estado de exceção, conforme preconiza a Carta Magna, analisando os aspectos referentes às conseqüências advindas para os direitos e garantias fundamentais.
Ademais, e além de buscar estabelecer a abrangência de atuação do Ministério Público, precipuamente, em razão dos ditames constitucionais, e em face do Estado Democrático de Direito, pretendo enfocar a fundamentação legal-constitucional da atuação policial, frente o denominado "Poder de Polícia" e o Princípio da Legalidade, conceituando e classificando a instituição "Polícia", inclusive quanto às suas características e espécies; buscando identificar as espécies de violações a direitos, quando da realização de operações e abordagens policiais. Intencionarei ainda, portanto, buscar colaborar com o aprimoramento da atuação da polícia e do sistema de justiça criminal, em face do Ministério Público.
Na seqüência, analisarei os aspectos, efeitos e conseqüências civis para o Estado e para o serventuário público, responsável pelo ilícito, além dos efeitos administrativos e penais na prática de ato caracterizador de abuso de autoridade, em correlação com o papel a ser exercido pelo Ministério Público, mormente, considerando-se o Princípio do Promotor Natural.
Será realizado um enfoque jurídico, distingüindo-se as diferentes modalidades de responsabilidade (civil, administrativa e criminal), em face do preconizado pela Constituição da República, a Lei nº 4.898/65, e o Código Civil (inclusive o novo Código Civil), resultantes para o Estado e o serventuário público civil, ou, militar.
Esta problemática apresenta vultosa relevância social e jurídica, pois, interessa não só ao cidadão, à população, e à Sociedade, como um todo, mas, também, ao Estado, enquanto considerado como "ente ético-político".
Ademais, o Estado de Direito, no Brasil, ainda se apresenta, penso, não totalmente assimilado pelos órgãos policiais incumbidos da repressão ostensiva, no que tange, precipuamente, ao Princípio Constitucional da Legalidade, nota essencial daquele (Estado de Direito).
Outrossim, em se configurando o controle externo da atividade policial como tarefa institucional do Parquet, cabe-lhe interesse direto nesta questão; bem como, ao cidadão, que por obra e construção da jurisprudência e da doutrina nos últimos anos, tem expressado sua revolta e indignação, ante os prejuízos causados pelos excessos e desvios de agentes públicos, com respostas positivas de reparação de danos e indenizações monetárias, por parte da justiça e das decisões judiciais.
Ao final, estabelecerei, em conclusão, alguns tópicos, em síntese ao exposto durante o desenvolvimento destes trabalhos.
1.0 - O Ministério Público e o seu papel constitucional. Considerações sobre o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito.
Com o advento da Carta Política promulgada em 05 de outubro de 1.988, reservou-se a seção I, do capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça), do seu Título IV – Da Organização dos Poderes – para a definição das linhas gerais, das garantias primordiais da instituição ministerial e de seus membros, e também da conceituação e exposição das finalidades do Parquet. Logo no caput, do primeiro artigo referente ao Ministério Público, ou seja, no seu artigo 127, preconizou-se: "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.".
Além de definir o Ministério Público como instituição1 perene e essencial à função jurisdicional, eis que fiscaliza a atuação dos órgãos jurisdicionais, incumbiu-se-lhe da defesa do regime democrático. Ou seja, cabe, destarte, aos membros do Ministério Público desempenhar as suas funções, visando, além das demais finalidades institucionais, a defesa do Estado Democrático de Direito, entendendo-se este como exteriorização de regime democrático.
Outrossim, penso que cabe ao Ministério Público buscar a efetivação dos objetivos da democracia, subentendendo-se aí a igualdade de oportunidades, na busca de diminuir ou extirpar as desigualdades, para todos e independentemente de origem, condição social, econômica etc.; consecução da justiça social; a efetiva fiscalização e controle dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, assim como, das demais forças estatais, e que atuam com igual, ou, maior coercibilidade (no sentido de coerção) social do que estes poderes, como a máquina policial; efetiva e real participação popular nos poderes constituídos2; além de procurar materializar um Estado de Direito real, efetivo, garantidor de uma sociedade mais justa, menos desigual, mais segura, sem a influência proeminente e, eventualmente, nociva do Poder Econômico, e, hodiernamente, que se faz sentir com mais coerção, do próprio crime organizado.
Aliás, refiro-me aqui não só à criminalidade organizada, propriamente dita, mas também, àquela criminalidade incrustada no Estado, responsável pelo desvio e sonegação de tributos e outras modalidades de crimes lesivos ao erário público, à Nação e ao Estado brasileiro, eternizadora do tráfico de influência, da advocacia administrativa, e perpetuadora das "castas" políticas e dos grupos de pressão, nocivos à democracia e ao País. O Ministério Público, suponho, deve estar situado em posição, diametralmente, oposta a estes "grupos", especialmente, considerando-se a sua missão institucional, preconizada pela Constituição da República.
Abordando esta questão, Hugo Nigro Mazzilli, expoente do Ministério Público brasileiro, no artigo Ministério Público e a Defesa do Regime Democrático, anotou:
Supõe-se, naturalmente, a necessidade de um sistema constitucional legítimo, que assegure: a) a divisão do poder (quem faz a lei não é quem julga nem a aplica; quem a aplica não a faz nem julga; quem julga não é quem a faz nem a aplica administrativamente); b) o controle da separação do poder (não basta a Constituição dizer que o poder é repartido; é necessário que existam mecanismos de freios e contrapesos, e que estes mecanismos funcionem efetivamente); c) o reconhecimento de direitos e garantias individuais e coletivos; d) o respeito à liberdade e à igualdade das pessoas, bem como à dignidade da pessoa humana; e) a existência de decisões tomadas direta ou indiretamente pela maioria, respeitados sempre os direitos da minoria; f) a total liberdade na tomada de decisões pelo povo (decisões tomadas em ‘seu entender livre’, como dizia Ataliba Nogueira, e não decisões conduzidas pelos governantes, nem fruto de manifestação de uma opinião pública forjada pelos meios de comunicação; g) um sistema eleitoral livre e apto para recolher a vontade expressa pelos cidadãos; h) o efetivo acesso à alimentação, saúde, educação, trabalho, Justiça e demais condições básicas de vida por parte de todos.3
Sob outro aspecto, concebo o Estado de Direito como a situação jurídica de um País, em que deve predominar o respeito e a observância à lei, sobretudo a supremacia desta, em todos os níveis e segmentos sociais e econômicos, ou seja, representa a supremacia e prevalência da legalidade e legitimidade (entendida num sentido abstraído de considerações ideológica-partidárias), enquanto condicionante da atuação social-estatal.
Dentro desta ótica de análise, concebo também o Estado Democrático de Direito como uma espécie de Estado de Direito, voltada para a realização das finalidades e objetivos da democracia, como já se fez frisar alhures, ou, como o Estado de Direito vocacionado e direcionado para a realização de valores democráticos.
A própria Constituição da República, no caput do art. 1º, preconizou: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:[...]" Este dispositivo constitucional, como se verifica, consagrou o denominado Princípio do Estado de Direito, no ordenamento positivo nacional.
O doutrinador José Afonso da Silva, citando J. J. Gomes Canotilho, deduz os princípios do Estado Democrático de Direito, a saber:
a)principio da constitucionalidade, que exprime, em primeiro lugar, que o Estado Democrático de Direito se funda na legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, com as garantias de atuação livre de regras da jurisdição constitucional; b) princípio democrático, que, nos termos da Constituição, há de constituir uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º); c) sistema de direitos fundamentais, que compreende os individuais, coletivos, sociais e culturais (títs. II, VII e VIII); d) princípio da justiça social, referido no art. 170, caput, e no art. 193, como princípio da ordem econômica e da ordem social; como dissemos, a Constituição não prometeu a transição para o socialismo mediante a realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa, como o faz a Constituição portuguesa, mas com certeza ela se abre também, timidamente, para a realização da democracia social e cultural, sem avançar significativamente rumo à democracia econômica; e) princípio da igualdade (art. 5º, caput, e I); f) princípio da divisão de poderes (art. 2º) e da independência do juiz (art. 95); g) princípio da legalidade (art. 5º, II); h) princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII).
A tarefa fundamental do Estado Democrático de Direito consiste em superar as desigualdades sociais e regionais e instaurar um regime democrático que realize a justiça social.45
Sob estas considerações, constata-se a relevância do papel desempenhado pelo Ministério Público, no contexto atual, mormente, levando-se em conta a função precípua de fiscalização que o Parquet deve exercer sobre toda a estrutura administrativa do Estado, inclusive, sobre o atuar dos Poderes da República.
Com efeito, o Ministério Público não é mais um dos órgãos, componentes da estrutura estatal, mas sim, o órgão, munido de atribuições, garantias e prerrogativas equiparáveis aos demais poderes, inclusive, com independência funcional, que vai fiscalizar toda aquela estrutura estatal e o seu funcionamento. Insere-se, portanto, o Ministério Público no continente Estado, embora, esteja posicionado de forma desvinculada e autônoma em relação aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, como indicam os parágrafos 1º e 2º, do artigo 127, da Constituição da República, ao disporem:
Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
§ 1º São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
§ 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento.
§ 3º O Ministério Público elaborará sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.
O Ministério Público apresenta-se, destarte, funcional e estruturalmente organizado como Poder, embora, não tenha esta designação constitucional, a qual o conceitua como instituição, como já se fez frisar alhures.
Basta voltar a atenção para a legislação complementar e ordinária, para se verificar o campo de atuação do Ministério Público nas questões da improbidade, administrativa, consumidor, proteção dos direitos e garantias fundamentais, segurança pública etc., e que comprovam o logo acima referido, além da atuação na persecução a delitos, e que corresponde à postura tradicional e já centenária do Ministério Público no Brasil.
Diz-se, ademais, que os membros do Ministério Público figuram como agentes políticos, atuando com autonomia funcional para desempenharem seu mister, deliberando, tomando iniciativas, oficiando perante o juízo, a administração pública em geral, e demais pessoas físicas e jurídicas, instaurando inquéritos civis públicos, notificando, requisitando a instauração de inquéritos policiais etc..
A respeito da independência funcional, alhures aventada, Hely Lopes Meirelles6, doutrina:
Órgãos independentes são os originários da Constituição e representativos dos Poderes de Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário -, colocados no ápice da pirâmide governamental, sem qualquer subordinação hierárquica ou funcional, e só sujeitos aos controles constitucionais de um Poder pelo outro. Por isso, são também chamados órgãos primários do Estado. Esses órgãos detêm e exercem precipuamente as funções políticas, judiciais e quase-judiciais outorgadas diretamente pela Constituição, para serem desempenhadas pessoalmente por seus membros (agentes políticos, distintos de seus servidores, que são agentes administrativos), segundo normas especiais e regimentais.
Nessa categoria encontram-se as Corporações Legislativas (Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, Senado Federal, Assembléias Legislativas, Câmaras de Vereadores), as Chefias de Executivo (Presidência da República, Governadorias dos Estados e do Distrito Federal, Prefeituras Municipais), os Tribunais Judiciários e os Juizes singulares (Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores Federais, Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça e de Alçada dos Estados-membros, Tribunais do Júri e Varas das Justiças Comum e Especial). De se incluir, ainda, nesta classe o Ministério Público federal e estadual e os Tribunais de Contas da União, dos Estados-membros e Municípios, os quais são órgãos funcionalmente independentes e seus membros integram a categoria dos agentes políticos, inconfundíveis com os servidores das respectivas instituições. (Sem grifo no original).
Ainda na seção I, do Capítulo IV, do Título IV, da Magna Carta, mais precisamente, no artigo 129, elencam-se oito hipóteses tituladas como funções institucionais do Ministério Público, como: promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outro interesses difusos e coletivos; e exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada respectiva.
Destarte, e no inciso IX, deste aludido artigo, o constituinte - Poder Constituinte Originário -, possibilitou o exercício de outras funções, por parte do Ministério Público, desde que compatíveis com sua finalidade, ressalvando a vedação da representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. Com este inciso, a Constituição abre a possibilidade para que o legislador ordinário, ou/e, complementar, dentro de novas realidades sócio-econômicas e a partir de outras situações jurídicas, preconize outras hipóteses legais de atuação do Ministério Público, respeitando-se sempre as ressalvas e reservas feitas pela Constituição.
Esta delegação legislativa ensejou a elaboração da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público [Lei nº 8.625, de 12/02/1993], e diversas normas estaduais, de mesmo caráter, como a Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Mato Grosso [Lei Complementar nº 27, de 19/11/1993]7.
Penso que, sem sendo, a Lei Orgânica Nacional alhures referida, lei federal de aplicação nacional, deva ter proeminência de aplicabilidade sobre as demais normas de âmbito estadual e municipal. Nesta linha de raciocínio, e como fundamento, aplicam-se os ditames constitucionais específicos e as disposições pertinentes da Lei de Introdução ao Código Civil. A própria Lei Orgânica Nacional do Ministério Público estabeleceu a sua superioridade jurídica hierárquica sobre as leis orgânicas de órbita estadual, quando preconizou no seu artigo 81, do capítulo X (Das Disposições Finais e Transitórias): "[...]Os Estados adaptarão a organização de seu Ministério Público aos preceitos desta Lei, no prazo de cento e vinte dias a contar de sua publicação.[...]".
2.0 - O Ministério Público e o Controle Externo das Atividades Policiais.
A Lei Fundamental de 1.988 preconizou, como função institucional do Ministério Público, no inciso VII, do seu artigo 1298, o controle externo das atividades policiais; norma constitucional esta que remeteu à legislação complementar específica do Ministério Público, ou seja, às leis orgânicas federal, ou, estadual, a tarefa de discriminar e especificar a sua forma de efetivação e realização.
Este dispositivo estabeleceu uma regra de competência "residual", visto que, no que tange a normas processuais penais, ou não, deve ser observada a disposição preconizada pela Constituição da República, ao dispor no inciso I, do seu artigo 22: "Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I-direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;[...]".
Ou seja, quanto à vicissitude das atuais regras e normas processuais, referentes, especificamente, à persecução criminal, como formalidades aplicáveis ao rito processual, modificação de regras pertinentes ao inquérito policial e à investigação criminal, etc., cabe, via de regra, ao Congresso Nacional (União), legislar.
Portanto, no que tange ao efetivo controle externo das atividades policiais, no sentido de visar a uma maior celeridade de investigações, eficiência das apurações, etc., cabe à União, por meio do Poder Legislativo (Congresso Nacional), legislar, especificando e detalhando as regras e normas a serem aplicáveis.
Em decorrência do mandamento constitucional alhures mencionado, instituiu-se a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, norma federal de aplicabilidade nacional, ou seja, de aplicabilidade a todos os entes municipais, estaduais e federais do País, e que apesar de não especificar diretamente as hipóteses de forma de controle externo da atividade policial, no inciso IV, do seu artigo 26, previu a possibilidade da requisição de diligências investigatórias e a instauração de inquéritos policiais e de inquéritos policiais militares, nos termos do disposto pelo inciso VIII, do artigo 129, da Constituição da República, podendo acompanhá-los, e no inciso II, do seu artigo 27, preconizou que cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de lhe garantir o respeito pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta, ou, indireta.
De plano, constata-se que esta norma complementar nacional foi lacônica a respeito do controle externo das atividades policiais, quando poderia ter sido mais detalhista e específica a este respeito.
Esta norma poderia ter discriminado e estabelecido regras mais específicas e detalhadas, a serem obedecidas pelo Parquet da União, em seus diversos segmentos, e dos Estados, independentemente, de outras normas e regras dispostas nas leis orgânicas da União e dos Estados.
Aliás, vale ressaltar a observação realizada por Luiz Henrique Manoel da Costa9, em excelente artigo, neste particular:
"A Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) que dispõe sobre as normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados, teve vetados os incs. X e XI do art. 25, justamente aqueles que dispunham quanto aos meios de controle externo da atividade policial; já a LC 75/93, que dispõe sobre a organização do Ministério Público da União, permaneceu íntegra no tocante aos dispositivos concernentes ao controle externo (art. 9º) até mesmo porque não cuidou da vexata quaestio relativa à remessa direta do inquérito policial ao Ministério Público, exatamente o ponto de discórdia, portanto vetado, na Lei 8.625/93; no obstante, considerando que a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei 8.625/93, art. 80) adotou com normas subsidiárias aquelas constantes da LC 75/93, temos que no nível de normas gerais relativas ao controle externo, vige o que dispõe a Lei do Ministério Público da União. Em Minas Gerais, a LC 34/94 estabeleceu sabiamente que o controle externo da atividade policial será exercido observado o disposto no inc. II do art. 125 da Constituição Estadual (art. Art. 67, IV), assim posto que a Constituição do Estado de Minas Gerais detalhou de forma arrojada o controle externo, inclusive dispondo quanto à remessa do inquérito policial diretamente ao Ministério Público, atribuindo a este, inclusive, fixar prazo para sua conclusão. Entretanto, subsistem as razões do veto presidencial à Lei Orgânica Nacional, sob entender que a matéria relativa à remessa do inquérito policial e sua tramitação é de natureza processual, não sendo pertinente portanto sua inserção na lei que cuida da organização do Ministério Público, daí certamente porque, embora constando da Constituição Estadual, tais formas de controle permanecem como letras mortas e sem aplicabilidade prática. Pelo que se verifica por conseguinte, a questão do controle externo ainda se encontra longe de ser equacionada e acredito, especialmente em virtude de disputas corporativas: de um lado o Poder Judiciário, defendendo sua permanência no inquérito policial, aliás com evidente quebra do modelo acusatório, e de outro a instituição policial civil, que vê o controle exercido pelo Ministério Público como indevida ingerência em tema que julga ser de sua atribuição exclusiva.[...]Colocando ao lado eventuais vaidades feridas, certo é que o mecanismo de controle instituído pela Constituição Federal pode e deve ser operado com o instrumento legal mínimo existente e que, diga-se, não esgota o âmbito de atuação do Ministério Público, até mesmo porque a LC/75 (Ministério Público da União) e, no Estado de Minas Gerais, a LC/34 não estabeleceram nos dispositivos específicos numerus clausus, senão dispondo de forma aberta e portanto exemplificativa, daí que a discussão doutrinária além de atual é absolutamente necessária à solidificação do instrumento constitucional, especialmente por se tratar de enorme conquista destinada à preservação dos direitos humanos.[...}"
Por sua vez, no âmbito dos Estados da Federação esta questão tem tido a atenção da Sociedade e do Ministério Público, apesar de inexistirem informações quanto a grandes avanços práticos.
No Estado de Mato Grosso, a norma estadual que rege o Ministério Público - Lei Complementar nº 27, de 19 de novembro de 1993 -, reproduz o expressado pela Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, com a diferença de que no seu artigo 24, dispõe que o Ministério Público exercerá, na forma da lei, o controle externo da atividade policial, velando, em especial, pela indisponibilidade, moralidade e legalidade da persecução criminal; em clara alusão ao Princípio da Obrigatoriedade e Indisponibilidade da Ação e Persecução Criminal, e ao Princípio da Legalidade, pedra de toque da Administração Pública brasileira.
Além deste dispositivo, incidível à espécie, o seu artigo 25, no seu inciso II, prescreve o dever de defender os direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, em relação aos órgãos da Administração Pública Estadual e Municipal, direta ou indireta, e no seu parágrafo único, nos três primeiros incisos, elenca diversas hipóteses de atuação aplicáveis ao controle externo das atividades policiais, tais como: receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis e dar-lhes as soluções adequadas, zelar pela celeridade e racionalização dos procedimentos administrativos e policiais, e dar andamento, no prazo de trinta dias, a notícias de irregularidades, petições ou reclamações referidas no primeiro inciso.
Por oportuno, vale frisar que uma das unidades da Federação que tem desenvolvido uma legislação moderna a respeito do controle externo das atividades policiais, inclusive, detalhista, é o Estado do Ceará, onde se normatizou este assunto, na seara do Ministério Público daquele Estado, por meio da Lei Complementar Estadual nº 9, de 23 de julho de 1998.
Este dispositivo legal estadual, preconiza, dentre outras hipóteses, que o Ministério Público do Estado do Ceará exercerá o controle externo da atividade policial, tendo em vista o respeito aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, aos princípios, direitos e garantias individuais, assegurados na Constituição da República Federativa do Brasil, Constituição Estadual do Ceará e nas leis vigentes; a prevenção e a correção de ilegalidade ou de abuso de poder; e a competência dos Órgãos incumbidos da Segurança Pública.
Adiante, esta norma estadual preconiza que o controle externo da atividade policial, pelo Ministério Público, será efetivado por meio de medidas judiciais e extrajudiciais, podendo, seus órgãos, dentre outras situações, representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou, para prevenir, ou, corrigir ilegalidade, ou, abuso de poder; assim como, fiscalizar a legalidade da prisão de qualquer pessoa.
De seu turno, a Lei Orgânica do Ministério Público da União – a Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993 – tem também redação mais detalhista, inclusive, reservando ao controle externo da atividade policial o seu capítulo terceiro, onde preconiza que este controle será efetuado por meio de medidas judiciais e extrajudiciais, podendo ter livre ingresso em estabelecimentos policiais e prisionais, ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim policial, representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder, requisitar à autoridade competente para instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da atividade policial, e promover a ação penal por abuso de poder.
Ademais, este diploma federal também prevê que a prisão de qualquer pessoa, por parte de autoridade federal ou do Distrito Federal e Territórios, deverá ser comunicada imediatamente ao Ministério Público competente, com indicação do lugar onde se encontra o preso e cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão.
Do texto constitucional alhures referido também depreende-se que a natureza jurídica desta função institucional corresponde a um dever jurídico, e não a simples atribuição, de aplicação facultativa. Isto implica em se dizer que toda vez que os direitos e interesses da Sociedade, difusos, coletivos e individuais indisponíveis, e do cidadão, principalmente, os direitos e garantias fundamentais, forem objeto de violação, supressão, ou, ameaça plausível, por parte da máquina policial, ou, de qualquer órgão estatal, tem o Ministério Público o dever de atuar, quer seja de ofício, ou, mediante requerimento de qualquer cidadão.10
Não pode ser olvidado que o controle externo das atividades policiais espelha, em última análise, o sistema constitucional adotado pelo legislador constituinte originário, de freios e contrapesos (arts. 2º, caput do art. 18, e caput do art. 127, da Const0ituição da República), e de independência dos poderes.
Estabelece, expressamente, o artigo 2º, da Constituição da República: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.".
Outrossim, se vigora, no hodierno sistema constitucional, a aplicação das regras principiológicas acima ventiladas, aos Poderes da República, com muita mais razão, há de se aplicá-las aos demais órgãos e instituições componentes da estrutura estatal, como a polícia.
Tecendo considerações acerca da independência e harmonia entre os poderes, José Afonso da Silva, idem, ibidem, assevera:
A independência dos poderes significa: a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais;[...]
A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam ao estabelecimento de um sistema de freio e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.
Aspecto que deve ser ressaltado, corresponde ao fato de que o controle externo das atividades policiais deve ser exercido sobre a instauração, o desenvolvimento, e/ou, o resultado dos trabalhos persecutórios da polícia judiciária, bem como, sobre as atividades repressivas-preventivas exercidas pela polícia ostensiva, e toda função atinente ao trato com o cidadão e a população em geral, mas, nunca sobre a estrutura hierárquica, ou, os assuntos referentes ao âmbito administrativo da polícia.
Na situação em que o membro do Ministério Público tiver por dever e obrigação requisitar a instauração de um procedimento administrativo qualquer contra uma autoridade policial, agente policial, ou, membro da polícia militar, cabe-lhe acompanhar o andamento do feito respectivo, no máximo pugnando pelo afastamento, ou, desligamento do representado, mas jamais, interferir nos assuntos interna corporis da administração pública "polícia".
Vale citar o posicionamento de Francisco Taumaturgo de Araújo Júnior, quando assevera no seu artigo "Controle Externo da Atividade Policial, O Outro Lado da Face", publicado no Boletim IBCCRIM, ano 8, nº 89, abril/2000, à f. 15: "Como expresso no ordenamento constitucional, o Ministério Público exercerá o controle externo da atividade policial e não dos policiais, pois estes estão sujeitos a um controle interno, desenvolvido pelos órgãos hierarquicamente superiores. Controla-se, assim, a atividade-fim da polícia, onde há interesse do Ministério Público."
Ademais, indubitavelmente, o bom policial não se preocupa com o controle externo das atividades policiais, por parte do Ministério Público, ou, de quem quer que seja, mas, ao contrário, iniludivelmente, aplaude este mister do Ministério Público, porque tem conhecimento de que o policial relapso, corrupto, ficará sujeito a sofrer as devidas conseqüências penais, em benefício da imagem da própria Instituição "Polícia".
Outrossim, o próprio Ministério Público também se submete ao controle externo de suas atividades, pois, a teor do disposto pelo artigo 29, do Código de Processo Penal, e pela Constituição da República, como garantia e direito fundamental, pelo contido no inciso LIX, do seu artigo 5º, não havendo o ajuizamento da pertinente ação penal pública, no prazo legal, cabe aos legitimidados a apresentação de ação privada subsidiária, ou, suplementar, por meio de uma denúncia substitutiva.
Em consonância com o expressado logo acima, verifica-se que a mesma razão que faz com que o Ministério Público detenha o controle externo das atividades policiais, e que corresponde ao interesse em acompanhar o andamento das investigações e os seus resultados, e ainda por ser destinatário destas apurações, mormente, em face de sua condição de dominus litis da ação penal pública, também fundamenta (esta razão), em última análise, a propositura de denúncia-crime, lastreada em representação, devidamente, instruída, ou/e, peças de informação, desacompanhadas de inquérito policial.
Em outros termos, por ser destinatário, via de regra, das informações colhidas e buscadas durante as investigações policiais, assim como, de todo o material cognotivo apurado e produzido na seara indiciária, os quais servirão de lastro probatório e formador da opinio delicti, nada mais justo e legítimo do que capacitar e municiar o Ministério Público de meios e instrumentos para exercer o controle externo das atividades policiais, facilitando o acesso aos inquéritos policiais e investigações.
Destarte, na maioria das investigações, e ainda na fase policial, serão produzidas e colhidas as provas e informações lastreadoras da eventual condenação criminal do autor do delito, e pertinentes aos respectivos fatos típicos imputados aos acusados; e que se constituirão em ônus ao Ministério Público provar, como se verifica do preconizado pelo artigo 156, do Código de Processo Penal: "A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante."
Claramente indicando o asseverado, o Código de Processo Penal dispensa o inquérito policial se as peças de informação, e/ou, representação apresentadas, não deixam margem de dúvidas, quanto à materialidade (se for o caso) e a autoria, à luz do disposto por diversos dispositivos processuais, mas, principalmente, pelo preconizado no parágrafo 5º, do artigo 39, e no parágrafo 1º, do artigo 46.
A jurisprudência também acena neste sentido:
"Criminal. HC. Estelionato. Trancamento da ação penal. Inépcia da denúncia. Falhas não-vislumbradas. Possibilidade de denúncia genérica. Inquérito policial. Prescindibilidade. Inexistência de provas da morte do segurado. Impropriedade do meio eleito. Ausência de justa causa não-evidenciada de plano. Ordem denegada.
Eventual inépcia da denúncia só pode ser acolhida quando demonstrada inequívoca deficiência a impedir a compreensão da acusação, em flagrante prejuízo à defesa dos acusados, ou na ocorrência de qualquer das falhas apontadas no art. 43 do CPP – o que não se vislumbra in casu.
Tratando-se de crimes societários, de difícil individualização da conduta de cada participante, admite-se a denúncia de forma mais ou menos genérica, por interpretação pretoriana do art. 41 do CPP.
Precedentes.
O inquérito policial não é imprescindível para o início da ação penal por denúncia ou queixa, se tais peças vierem embasadas em outros elementos que demonstrem a materialidade e indiquem a autoria.
O habeas corpus constitui-se em meio impróprio para a análise de alegações que exijam o reexame do conjunto fático-probatório – como a apontada ausência de elementos que comprovem a morte do segurado, se não demonstrada, de pronto, qualquer ilegalidade nos fundamentos da exordial acusatória.
A falta de justa causa para a ação penal só pode ser reconhecida quando, de pronto, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, evidenciar-se a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade, hipóteses não verificadas in casu.
Ordem denegada. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus. Quinta turma. HC 19558/RJ, j. 04.06.2002, publicado no DJ na data de 01.07.2002, p. 363, rel. Ministro Gílson Dipp. Convergentemente: STF in RTJ 76/741.
Feitas as observações logo acima expressadas, deve-se estabelecer o âmbito de atribuições do Ministério Público, no exercício do controle externo das atividades policiais.
Dessarte, não só a proteção aos direitos e garantias fundamentais do cidadão, como preconizados pela Constituição da República, devem ser objeto da atenção do Ministério Público, no controle externo das atividades policiais, mas também, o respeito da legalidade e licitude dos trabalhos investigativos-probatórios desenvolvidos pela polícia judiciária, e a celeridade da prestação dos resultados destes trabalhos investigativos.
Especial atenção, penso eu, deva haver na licitude e legalidade das provas produzidas no trato do cidadão, quase sempre mais fraco diante do aparato policial. Isto não significa que a polícia deva afrouxar a repressão e o combate à criminalidade, deixando de realizar as chamadas batidas policiais e operações ostensivas, ou, omitindo-se frente ao crescimento das ocorrências criminosas; mas sim, atentar para a quase sagrada preservação dos direitos fundamentais do cidadão e da população em geral, e atuar sempre escudado em motivação legal justificadora, dentro dos parâmetros legais-constitucionais.
Qualquer intervenção, abordagem, ou, operação policial, acredito, realizada ao arrepio de direitos e garantias fundamentais do cidadão, ou, colidente com a licitude e legalidade de meios de produção de provas, deve ser considerada inconstitucional e ilegal, para não dizer-se ilícita.11
Ocorre que, em havendo a colisão entre o direito e o interesse da Sociedade e da Justiça de se buscar a verdade e a ordem e paz públicas (Princípio da Ordem Pública), e os direitos e as garantias fundamentais, assegurados e tutelados, constitucionalmente, em favor do cidadão, devem prevalecer estes sobre aqueles, em face da sua supremacia axiológica, supremacia esta operada pelos Princípios Constitucionais da Proporcionalidade e da Supremacia da Constituição. Trata-se, portanto, de se preservar o núcleo essencial e intangível correspondente aos direitos e garantias fundamentais, conquista indiscutível da humanidade e da civilização, após uma história milenar de lutas e sacrifícios de várias gerações de povos diferentes de diversos países e continentes.
Sob outro aspecto, em se tratando de aplicação, hipoteticamente, colidente de dois ou mais direitos fundamentais, as regras a serem aplicadas correspondem, da mesma forma, àquelas definidas e dispostas pelo Princípio da Proporcionalidade. Ocorre que, embora o sistema normativo seja uno e disposto de forma, ficticiamente, harmônica, a realidade fática faz surgir a possibilidade, em múltiplas ocasiões, do operador do direito se deparar com a situação de ter que nomear uma norma, e/ou, princípio, em detrimento de outro, ou, outros, sem que com isto quebre a harmonia alhures expressada, ainda que o princípio, ou, norma a ser sacrificada e colocada em segundo plano, seja também um direito fundamental, pois, no sistema jurídico atual não há direitos absolutos.
Com este posicionamento, transcrevo, parcialmente, a ementa do seguinte julgado da excelsa suprema corte nacional:
[...]OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercida em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.[...] (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança. MS 23452/RJ. Tribunal Pleno, rel. min. Celso de Mello, j. 16.09.99, DJU 12.05.00, p. 20).
Em outras palavras, acredito que toda e qualquer atuação estatal, quer se trate do aparelho de segurança pública (polícias), ou, não, deve gravitar em torno de um núcleo central e essencial, correspondente à preservação da dignidade humana e dos direitos e garantias fundamentais.
Esta esfera fictícia de direitos e garantias intangíveis, representa o limite, estabelecido pela vontade da soberania popular, à atuação não só do aparelho policial, em todas os seus segmentos, mas também, dos Poderes Públicos; imprimindo uma espécie de gatilho de segurança jurídica ao indivíduo e à Sociedade, em face de uma esporádica atuação opressiva estatal.
O próprio poder constituinte originário, ou, de primeiro grau, procurou, por meio das cláusulas pétreas insculpidas nos incisos do parágrafo 4º, do artigo 60, da Constituição da República, vedar e impossibilitar a abolição e supressão do núcleo central e essencial alhures expressado, e correspondente aos direitos e garantias fundamentais, mesmo em sede de uma eventual reforma e revisão constitucionais, via proposta de emenda, pelo poder constituinte derivado.
Neste aspecto, estabeleceu o parágrafo 4º, do artigo 60, da C. da República: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I-a forma federativa de Estado; II-o voto direto, secreto, universal e periódico; III-a separação de poderes; IV-os direitos e garantias individuais." (Sem grifo no original).
Noutro passo, o sistema jurídico nacional detém outro mecanismo de proteção ao núcleo essencial correspondente aos direitos e garantias fundamentais, assim como, viabilizador de seu pleno e incondicional exercício, conforme extrai-se do disposto pelo parágrafo 1º, do artigo 5º, da Constituição da República, o qual preconiza: "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata."
Estes dispositivos garantidores da aplicabilidade imediata e incondicional de um núcleo essencial constitucional, representante, em última análise, da segurança jurídica do cidadão frente o Estado, tem incidência internacional, senão vejamos o lecionado pelo preclaro doutrinador Márcio Iorio Aranha [12]
A aplicação direta desses direitos somente pôde ser justificada mediante a aceitação de seu conteúdo objetivo. Assim, na Lei Fundamental de Bonn de 1949, introduziu-se o art. 1º, § 3º, que determina sejam os direitos fundamentais auto-aplicáveis. A Lei Fundamental de Bonn ainda deixou expressa a determinação em se deixar intacta a substância dos direitos fundamentais, isto é, a proteção especial dada, no art. 19, a seu conteúdo essencial (Wesensgehalt). A preocupação dos alemães com a proteção objetiva da essência dos direitos fundamentais os fez declarar expressamente a intangibilidade dos núcleos essenciais, entretanto, a ausência de tal referência não é obstáculo a consideração séria do tema em sistemas jurídicos que não detenham um dispositivo explícito a respeito. A presença, na Constituição alemã, de uma proteção especial aos direitos fundamentais do art. 79 da Lei Fundamental de Bonn é entendida como suficiente à cogitação dos núcleos essenciais. Tal dispositivo encontra seu correspondente na inclusão dos direitos fundamentais, pela Constituição brasileira de 1988, entre as chamadas cláusulas pétreas.
De sua parte, o festejado doutrinador e ministro do Colendo Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes [132], refere-se à proteção do núcleo essencial acima expressado, nos seguintes termos:
Alguns ordenamentos constitucionais consagram a expressa proteção do núcleo essencial, como se lê no art. 19, II da Lei Fundamental alemã de 1949 e na Constituição Portuguesa de 1976 (art. 18, III). Cuida-se, talvez, de preocupação exagerada do constituinte, pois, é fácil ver que a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais deriva da supremacia da Constituição e do significado dos direitos fundamentais na estrutura constitucional dos países dotados de Constituições rígidas. Se se admitisse que a lei poderia restringir ilimitadamente direitos fundamentais, ter-se-ia a completa supressão do efeito vinculante desses direitos em relação ao legislador.
De ressaltar, porém, que, enquanto princípio expressamente consagrado na Constituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial (Wesensgehaltsgarantie) destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental mediante estabelecimento de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais.
Os direitos fundamentais constituem-se, por consegüinte, num núcleo essencial e intangível, em que é titular o indivíduo, um ente, e/ou, a sociedade, oponível aos poderes e atuação estatais, em face de limitação imposta e preconizada pela soberania popular. Têm fundamento, destarte, no Princípio da Soberania Popular e no Princípio da Supremacia da Constituição.
A melhor doutrina, capitaneada pelo magnífico mestre Paulo Bonavides14, trata da Teoria dos Direitos Fundamentais, entabulando quatro gerações de direitos fundamentais, em genial construção, ao lecionar:
Enfim, se nos deparam direitos da primeira, da Segunda e da terceira geração, a saber, direitos da liberdade, da igualdade e da fraternidade, conforme tem sido largamente assinalado, com inteira propriedade, por abalizados juristas. Haja vista a esse respeito a lição de Karal Vasak na aula inaugural de 1979 dos Cursos do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estrasburgo.[...]
Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural dos constitucionalismo do Ocidente.[...]
Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.[...]
Os direitos da segunda geração merecem um exame mais amplo. Dominam o século XX do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado. São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal deste século.[...]
A teoria, com Vasak e outros, já identificou cinco direitos da fraternidade, ou seja, da terceira geração: o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito e comunicação.[...]
São direitos da quarta geração o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência.[...]
Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infra-estruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia; coroamento daquela globalização política para a qual, como no provérbio chinês da grande muralha, a Humanidade parece caminhar a todo vapor, depois de haver dado o seu primeiro e largo passo.
Mesmo em situações de extrema excepcionalidade, como aquelas reguladas pelo capítulo I, do Título V, da Constituição da República, e que eqüivalem à decretação de estado de defesa e de sítio, não há de se admitir a supressão dos direitos e garantias fundamentais.
Quando muito, cabe, conforme previsão constitucional, a decretação de legalidade extraordinária, com a conseqüente suspensão de determinados direitos e garantias fundamentais. Estas medidas excepcionais correspondem àquelas preconizadas pelas letras "a" a "c", do inciso I, do parágrafo 1º, do artigo 136, e pelos incisos do caput do artigo 139, da Constituição da República.
Vale anotar que o parágrafo 1º, acima ventilado, e o caput do artigo 138, da C. R., referem-se, respectivamente, às expressões "restrições aos direitos", e "garantias constitucionais que ficarão suspensas"(sic), mas nunca à supressão, ou, extinção de tais direitos e garantias.
Especificamente, no que tange a eventuais operações ostensivas do aparelho repressivo policial, vale ressaltar que, conforme disciplina o inciso V, do artigo 139, da C. R., e, portanto, especificamente, quanto à decretação do estado de sítio, torna-se, plenamente, possível a realização de abordagens, e ações visando à realização de buscas pessoais, quer sejam efetivadas no trânsito, e/ou, em transeuntes na via pública. Aliás, não pode ser olvidado que esta situação extraordinária só teria cabimento na hipótese de: "ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa"(sic).
Portanto, por raciocínio lógico, conclui-se pela inviabilidade e vedação constitucional de realização de buscas e apreensões em domicílio, e/ou, buscas pessoais, durante a vigência de decretação de estado de defesa, sem ordem judicial específica, e/ou, fora das situações preconizadas no ordenamento adjetivo e na Constituição da República (fundada suspeita, flagrante delito, fundada suspeita etc.), mormente, considerando-se ser esta medida menos severa do que aquela.
Verifica-se, por consegüinte, uma escala de patamar de gravidade e abrangência entre o estado de defesa, mais brando, e o estado de sítio, mais severo e com maiores implicações legais e práticas.
Ocorre que, tratando-se a decretação do estado de sítio de medida extrema e excepcional, a efetiva realização das medidas coercitivas elencadas pelos incisos I (obrigação de permanência em localidade determinada), IV (suspensão da liberdade de reunião) e V (busca e apreensão em domicílio), do artigo 139, da C. R., ficariam impossibilitadas e inviabilizadas, se não houvesse a conseqüente restrição ao direito de locomoção, previsto constitucionalmente pelo inciso XV, do artigo 5º, e de inviolabilidade do domicílio, elencada pelo inciso XI, também do artigo 5º.
De outra banda, cabe observar que a própria constituição, no seu bojo, preconiza dois mecanismos de segurança jurídica, quanto a estas situações legais excepcionais.
O primeiro corresponde à previsão de lei, especificadora das medidas coercitivas a vigorarem num eventual decreto de estado de defesa, e os limites destas medidas excepcionais (parágrafo 1º, do artigo 136).
Vê-se a intenção do constituinte em realçar a preocupação em estabelecer limites às medidas coercitivas a serem decretadas durante o estado de defesa, e ainda em remeter à lei, e portanto, ao legislador, representante da vontade popular a priori, a tarefa e incumbência de discriminar e expressar quais medidas coercitivas podem ser tomadas e a esfera e amplitude destas mesmas medidas.
Sob outro aspecto, verifica-se, em segundo lugar, que os executores, ou, agentes do estado de defesa, ou, sítio, ficarão sujeitos a responder civil, administrativa e criminalmente, pelos ilícitos cometidos durante a vigência destas situações emergenciais, cessada sua decretação e seus respectivos efeitos (artigo 141 da C. R.).
Além das medidas penais previstas no Código Penal e leis especiais, incide na espécie o disposto pela Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Conclui-se, portanto, que o poder estatal de limitar e restringir esbarra na órbita de proteção definida pelos direitos e garantias fundamentais, mesmo em situações de exceção.
Tecendo considerações acerca dos procedimentos investigatórios e inquéritos policiais, inclusive, acerca da possibilidade do Ministério Público de realizar investigações, presidindo e conduzindo estas investigações, assim como, sobre o controle externo da atividade policial, a Ilustrada Subprocuradora-Geral da República, Dra. Delza Curvello Rocha, referida por Sua Exa. o Ministro Costa Lima, relator nos autos de Conflito de Atribuições nº 23-RJ, Suscitante: Ministério Público Federal e Suscitado: Juízo Federal da 13ª Vara – RJ, manifestamente, expressou-se:
A instrução criminal, tem o objetivo não só de preparar os elementos mediatos da instrução definitiva, como também o de fixar um juízo de acusação preliminar, quer para a garantia da inocência contra a acusação leviana ou mesmo a calúnia, quer para a proteção do uso indevido do organismo jurisdicional.
Vê-se, pois que a instrução criminal deve ser preservadora (da inocência e da justiça) e preparatória (dos meios de prova). Assim, os atos do inquérito policial possuem dupla função – a primeira, a de formar o corpo de delito – isto é, coligir os elementos corpóreos que dizem respeito ao delito – e a Segunda, através de dados sensíveis captados do corpo de delito, apontar a responsabilidade criminal pelo evento, por uma operação intelectual aferidora da intenção do agente ao infringir o preceito legal. Conclui-se, assim, que a instrução criminal visa à formação do corpo de delito e à formação da culpa.
Por esse motivo, correta a assertiva de que, ‘iniciada uma investigação, através da instauração de inquérito, estabelece-se entre o Estado e o indiciado (ou suspeito) uma situação de litigiosidade’ (J. Frederico Marques). Passa o indivíduo a ser considerado objeto de investigação, detendo a autoridade policial, liberdade discricionária de investigação, sob pena de se mutilar a função da polícia. A liberdade investigatória só encontra limites quando a atividade policial possa representar injusta lesão a direitos individuais.
Assim, como objeto de investigação, o indivíduo sofre, necessariamente, um abalo em sua cidadania, podendo ser submetido a certos constrangimentos que a lei autoriza, ser molestado pela autoridade policial para prestar depoimentos, acompanhar perícias, reconstituições, ver quebrado o sigilo de suas contas bancárias; ser identificado criminalmente (se já não o foi civilmente), ver sua vida privada arrostada para os autos, e para a própria crônica policial.
Por esse motivo, em todas as nações democráticas, a figura do juízo de instrução encontra-se presente já na fase das investigações preliminares, a fim de assegurar, ao indivíduo, que as atividades investigatórias permanecem subordinadas à ordem jurídica.
Esse também o motivo porque a polícia, ao atuar como órgão da persecução penal – coligindo os elementos ‘para a restauração da ordem jurídica violada pelo crime, em função do interesse punitivo do Estado’, passa a ser conceituada como órgão Auxiliar do Poder Judiciário – a polícia judiciária ou repressiva, embora o produto dessa atividade seja dirigido ao Ministério Público, titular da ação penal.[...]
O fato de ter a CF/88 entregue ao Ministério Público o controle externo da atividade policial não faz da Polícia uma instituição subordinada ao parquet, mas apenas explicitou, o Constituinte, o que se encontra inserido nas funções da instituição, pois incumbida de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos Serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias.
O texto constitucional demonstra, na realidade, que a ação policial, acha-se submetida a duplo controle – o externo, pelo Ministério Público, na forma que lei complementar irá definir – e o jurisdicional, que poderá ocorrer a priori (ex: prisão preventiva) ou a posteriori (ex: habeas corpus (inclusive de ofício) e prestação de fiança).15
Deve ter incidência nestas hipóteses de colisão de direitos fundamentais, o Princípio da Proporcionalidade, também conhecido como Princípio da Proibição do Excesso, ou, da Razoabilidade, o qual, tem como principal destinação obstar, impedir, ou/e, tentar impedir, ou, fazer cessar qualquer ação do Estado que venha a ferir, ou, ameaçar de lesionar, agredir, ou, ofender a preservação da dignidade humana.
Este Princípio (Princípio da Proporcionalidade, ou, da Proibição do Excesso, ou, da Razoabilidade) atua de forma a vincular a atuação estatal, ou seja, aos poderes estatais, aos limites estabelecidos pela esfera protetiva dos direitos e garantais fundamentais, especialmente, considerando-se o disposto pelo parágrafo primeiro, incisos LIV (Princípio do Devido Processo Legal), e LVI (inadmissibilidade das provas ilícitas), do artigo 5º, da Constituição da República, em contraposição com o preconizado, a título de cláusula pétrea, pelo inciso IV, do parágrafo 4º, do artigo 60, de nossa Magna Carta.
Com efeito, relaciona-se, intimamente, com os valores consagrados no Título I da Carta Política Nacional, mais precisamente, com aqueles tutelados pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (inciso III, do artigo 1º), e com o Princípio do Estado Democrático de Direito, fundamento maior da estrutura estatal brasileira atual, e um dos pilares básicos do nosso Estado.
Como bem ressaltado por José Laurindo de Souza Netto16, em excelente trabalho, o Princípio da Proporcionalidade, ou, da Razoabilidade, não se encontra, expressa e taxativamente, previsto pela Constituição da República, como faz a Constituição Lusitana no seu artigo 18,2, ao prever que a lei só pode restringir direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo estas restrições limitarem-se ao necessário para salvaguardar outros direitos, ou, interesses, constitucionalmente, protegidos; e tem origem no Direito Administrativo, especificamente, como medida de legitimidade do exercício do poder de polícia e da interferência dos entes públicos na vida privada, de onde alastrou-se e se expandiu para o Direito Público, ou seja, para o Direito Penal, Processual Penal e Constitucional.
Deve ter aplicação para evitar, ou, cercear excessos e abusos do Estado, quanto aos efeitos e conseqüências de sua atuação, e está ligado, umbilicalmente, com os ditames do Estado de Direito, pois, limita a atuação estatal, frente as regras e normas legais-constitucionais, mormente, os princípios e direitos fundamentais. Por isto, pode-se afirmar que o Princípio da Proporcionalidade condiciona os órgãos estatais a se utilizarem dos meios de que dispõem, aos desideratos e fins visados e objetivados, e suas conseqüências, compativelmente, de maneira adequada e moderadamente, ou seja, sem excessos.
Embora este Princípio tenha aplicação quase que total e pacífica pelos tribunais pátrios, principalmente, no que se refere à declaração judicial de inconstitucionalidades de leis que contenham limitações e restrições inadequadas, ou, impertinentes, desnecessárias, ou, desproporcionais (não razoáveis), penso que deva e possa ser aplicável a qualquer providência legislativa que vise restringir direitos fundamentais, ou, a qualquer providência, ou, ato estatal violadores de um espaço vital para o cidadão e o indivíduo, correspondente aos direitos e garantias fundamentais.
A própria Emenda nº 08 da Constituição Norte-Americana prevê este Princípio ao proibir a exigência de fianças excessivas, as penas de multa demasiadamente elevadas e a imposição de penas cruéis e fora do comum, ou, de medida (cruel and unusual punishment).
Desta feita, como se percebe, o Princípio da Proporcionalidade procede à aferição da legitimidade de normas legais, mas também, do atuar do Estado, podando eventuais excessos.
Pode-se verificar a incidência deste Princípio em diversos dispositivos constitucionais, como o estabelecido pelo inciso LIV, do artigo 5º, da Constituição da República (Devido Processo Legal), porém, avulta com mais referência no preconizado pelo parágrafo 2º, do artigo 5º, da Constituição da República.
Na própria legislação constitucional, verifica-se o fundamento deste Princípio. No parágrafo único, do artigo 944, do novo Código Civil (em vigor em 11/01/2003), há a seguinte disposição: "Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização."
À guisa de ilustração, vale transcrever trecho de excelente estudo de Luiz Otávio de Oliveira Rocha17, referente ao Princípio ora analisado:
"Vejamos. Ainda que o princípio da proporcionalidade não integre o texto de muitas das Constituições democráticas, já se fazia referência a ele na Carta Magna de 1215, que nos seus arts. 20 e 21 aludia à necessária proporção entre pena e transgressão: poena debet proportionari delicto. Também Beccaria, ´máximo representante do pensamento ilustrado no âmbito penal’, expressou-se em diversas passagens de sua obra-prima (Dos Delitos e das penas) quanto à exigência da proporcionalidade na aplicação das medidas legais; de forma clara professou que ‘para que uma pena seja justa não deve ter intensidade em grau maior do que o que baste para separar os homens dos delitos’, inclusive fazendo referência a Montesquieu,23 para que ‘é essencial que as penas estejam proporcionadas entre si, porque é mais essencial que se evitem os grandes crimes que os pequenos, o que ataca mais a sociedade que o que a ofende menos".
A emenda oitava à Constituição norte-americana ("não serão exigidas fianças excessivas, nem serão impostas multas excessivas ou se infligirão penas cruéis ou excepcionais"), em vigor desde 1791, que consagrava o princípio da proporcionalidade apenas implicitamente, foi aclarada já no ano de 1892, tendo a Suprema Corte dos Estados Unidos (doravante USSC), no julgamento do caso O`Neil v. Vermont (144 U. S. 323, 339-40, 1892), afirmado que a cláusula contida na emenda implicava também na proibição de ´todas as punições que por sua duração ou severidade são extremamente desproporcionais em relação às ofensas imputadas´ (´all punishments which by their excessive length or severity are greatly disproportionate to the offenses charged´)." (ROCHA, 2.000, p. 467 e 468).
Em decisão também recente, e datada de 30/10/2001, o Supremo Tribunal Federal, por intermédio de sua primeira turma, apreciou e julgou o Habeas Corpus nº 80.949/RJ, tendo como relator o Exmo. Sr. Ministro Sepúlveda Pertence; julgamento este que apresentou decisão unânime, para o deferimento, em parte, do pleito originalmente apresentado pelo paciente e impetrantes, e que promoveu, como premissa de julgamento e apreciação, a incidência do Princípio da Proporcionalidade.
A ementa deste julgado ficou disposta da seguinte maneira:
"EMENTA: I. Habeas Corpus: cabimento: prova ilícita. 1. Admissibilidade, em tese, do habeas corpus para impugnar a inserção de provas ilícitas em procedimento penal e postular o seu desentranhamento: sempre que, da imputação, possa advir condenação a pena privativa de liberdade: precedentes do Supremo Tribunal. II. Provas ilícitas: sua inadmissibilidade no processo (CF, art. 5º, LVI): considerações gerais. 2. Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação. III. Gravação clandestina de ‘conversa informal’ do indiciado com policiais. 3. Ilicitude decorrente – quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação ambiental – de constituir, dita ‘conversa informal’, modalidade de ‘interrogatório’ sub-reptício, o qual – além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (C. Pr. Pen., art. 6º, V) -, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio. 4. O privilégio contra auto-incriminação – nemo tenetur se detegere -, erigido em garantia fundamental pela Constituição – além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C. Pr. Pen. –importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência – e da sua documentação formal – faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em ‘conversa informal’ gravada, clandestinamente ou não. IV. Escuta gravada da comunicação telefônica com terceiro, que conteria evidência de quadrilha que integrariam: ilicitude, nas circunstâncias, com relação a ambos os interlocutores. 5. A hipótese não configura a gravação da conversa telefônica própria por um dos interlocutores – cujo uso como prova o STF, em dadas circunstâncias, tem julgado lícito – mas, sim, escuta e gravação por terceiro de comunicação telefônica alheia, ainda que com a ciência ou mesmo a cooperação de um dos interlocutores: essa última, dada a intervenção de terceiro, se compreende no âmbito da garantia constitucional do sigilo das comunicações telefônicas e o seu registro só se admitirá como prova, se realizada mediante prévia e regular autorização judicial. 6. A prova obtida mediante a escuta gravada por terceiro de conversa telefônica alheia é patentemente ilícita em relação ao interlocutor insciente da intromissão indevida, não importando o conteúdo do diálogo assim captado. 7. A ilicitude da escuta e gravação não autorizadas de conversa alheia não aproveita, em princípio, ao interlocutor que, ciente, haja aquiescido na operação; aproveita-lhe, no entanto, se, ilegalmente preso na ocasião, o seu aparente assentimento na empreitada policial, ainda que existente, não seria válido. 8. A extensão ao interlocutor ciente da exclusão processual do registro da escuta telefônica clandestina – ainda quando livre o seu assentimento nela – em princípio, parece inevitável, se a participação de ambos os interlocutores no fato probando for incindível ou mesmo necessário à composição do tipo criminal cogitado, qual, na espécie, o de quadrilha. V. Prova ilícita e contaminação de provas derivadas (fruits of the poisonous tree). 9. A imprecisão do pedido genérico de exclusão de provas derivadas daquelas cuja ilicitude se declara e o estágio do procedimento (ainda em curso o inquérito policial) levam, no ponto, ao indeferimento do pedido."
Revolvendo-se o corpo deste julgado da constitucional máxima, constata-se a incidência direta de três princípios constitucionais, erigidos à categoria de normas de direitos fundamentais, mas, principalmente, do Princípio da Proporcionalidade.
A primeira norma de direito fundamental, a meu ver, corresponde ao disposto pelo inciso X, do artigo 5º, da Constituição da República, com a seguinte redação: "[...]são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;[...]"
As demais são aquelas normas fundamentais estipuladas pelos incisos XII e LVI, também do artigo 5º, da Constituição da República, a saber:
"[...]é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;[...]"
"[...]são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;[...]"
Trata-se de julgado correspondente a habeas corpus impetrado com a finalidade de buscar o desentranhamento de provas, supostamente, ilícitas, colhidas ao longo e no bojo de procedimento penal, e, por via oblíqua, impugnar a sua inserção.
O Ministério Público Federal, por meio do Ilustre Subprocurador-Geral da República, opinou pelo indeferimento do pedido.
Destarte, a premissa fática atinente ao julgado refere-se à escuta e gravação, por terceiro policial, de comunicação telefônica alheia, estando um dos interlocutores, preso ilegalmente, ciente de tal detalhe, e com a ausência de qualquer autorização judicial.
O ponto central da discussão, posta sob o crivo do Supremo Tribunal Federal, corresponde à admissibilidade, como prova idônea e aplicável ao paciente, e dentro das circunstâncias alhures expressadas, da gravação em fitas K-7, e da escuta telefônica, indicativas da existência de uma quadrilha.
Em voto ilustrado com diversas citações doutrinárias e jurisprudenciais, incursionando pelas diversas correntes, sustentadoras de posicionamentos díspares, e inclusive, referindo-se à doutrina alienígena, o Exmo. Sr. Ministro Sepúlveda Pertence considerou como admissível o cabimento do remédio jurídico habeas corpus, em tese, para impugnar a inserção da prova ilícita em procedimento penal e postular o seu desentranhamento. Ao final, concluiu pelo deferimento parcial do pleito inicial, nos termos da ementa acima transcrita.
Em síntese, este julgado trata da colisão de direitos e princípios constitucionais.
Observa-se, indubitavelmente, a incidência do Princípio da Proporcionalidade, ou, da Razoabilidade, embora, não tenha tido prevalência neste feito, aquilatando-se, de um lado, a aplicabilidade de direitos fundamentais, e de outro lado, em sentido contrário, o direito da sociedade e da coletividade na repressão a crimes graves, ou, de elevado potencial ofensivo, ou, do direito do Estado em fazer prevalecer o interesse público, sobre aqueles direitos fundamentais. Prevaleceu o Princípio da Exclusão da Prova Ilícita, sobre o Princípio da Ordem Pública, preconizado pela Constituição da República como dever do Estado e direito de todos.
Não obstante, entendeu-se, em face da escuta e da gravação telefônica terem sido realizadas pela polícia, e não diretamente pelo paciente, e ainda em razão da inexistência de qualquer autorização judicial neste sentido, serem estas provas, patentemente, ilícitas, em relação ao interlocutor insciente da intromissão indevida, não importando o conteúdo do diálogo assim captado, bem como, ao paciente que, estando, ilegalmente, preso na ocasião da colheita da prova impugnada, assim assentiu, embora de forma viciosa.
Asseverou, o venerando julgado, que o fato apreciado correspondeu a verdadeiro interrogatório, diferenciando-o de situações consideradas lícitas e legítimas pela jurisprudência, como a gravação ambiental e aquela realizada pelo próprio interessado e um dos interlocutores, em defesa de direitos próprios, ou/e em legítima defesa, diferentemente deste, colhido e produzido de forma sub-reptícia, eis que realizado à revelia do procedimento e das formalidades estabelecidas e preconizadas tanto pelo ordenamento adjetivo, quanto, pela própria carta magna, impingindo-a, ainda, de prova ilegítima.
Portanto, observa-se a prevalência e supremacia de entendimento da corte máxima nacional, em rejeitar e refutar, via de regra, em suas apreciações, toda e qualquer prova advinda de operações e procedimentos ilícitos e ilegais, tanto formal quanto materialmente, sem distinções, ou, considerações quanto à natureza do crime, objeto do respectivo processo, ou, da investigação; em clara e iniludível alusão ao Princípio da Proporcionalidade, pois, obstou o excesso, o abuso, e o desvio da atuação do Estado, no caso da Polícia, e seus efeitos, frente os ditames do Estado de Direito, e portanto, aos Preceitos e Princípios fundamentais.
Em situações excepcionais e extraordinárias, e mesmo mediante a caracterização da ocorrência de provas ilícitas, ilegítimas, ou, ilícitas por derivação, entendidas estas como aquelas que embora sejam produzidas, licitamente, ou seja, dentro dos parâmetros estabelecidos tanto material quanto formalmente (processualmente), originaram-se e derivaram-se de um meio de prova, ou, fato, inicialmente, ilícito, poder-se-ia admitir a incidência do Princípio da Proporcionalidade pro societate, na medida em que valores sociais e comunitários também tutelados, constitucionalmente, estivessem considerados e postados num patamar axiológico superior em relação a direitos e garantias fundamentais de um indivíduo.
A hipótese ventilada pela doutrina, como exemplo, corresponde à quebra da inviolabilidade da correspondência de indivíduo reeducando, e/ou, preso que faça uso desta garantia constitucional para disseminar e atuar no crime organizado, ou, no narcotráfico.
Identificam-se situações fáticas que justificariam a incidência do Princípio da Proporcionalidade pro societate, na hipótese de existência de fundada suspeita de ocorrência de infração criminal de natureza permanente e de elevado e graduado potencial ofensivo, como o tráfico de substância entorpecente, ou, o narcotráfico, com a subseqüente, bem exitosa, ação policial, independentemente, da exibição de mandado judicial autorizativo da busca e apreensão, e flagrante delito, propriamente dito.
Autorizativa desta conclusão, os tribunais têm deliberado:
"Processual penal – Tráfico internacional de entorpecente – Crime permanente – Flagrante – Nulidade – Impossibilidade – Lei 6.368/76, art. 12 – Recurso de habeas corpus – Flagrante preparado ou provocado – Pretendida nulidade – Art. 12 da Lei 6.368/76 – Crime permanente – Preso na posse de cocaína não há falar em nulidade do flagrante sob a alegação de haver sido preparado ou provocado. ´O crime de tráfico, dado seu caráter permanente, consuma-se com a só guarda e transporte da substância entorpecente, autorizador, por si só, da entrada dos policiais na residência do réu, quando de cumprimento de mandado de busca e apreensão" (STJ – RHC 6704-0 – Rel. Cid Fláquer Scartezzini – j. 09.09.97 – Bol. STJ 19.12.97, p. 45-46)
"As diligências que se iniciaram na rua e se complementaram na residência do réu, havendo séria suspeita de que substância entorpecente nela estaria guardada para fim de traficância, justificaram a invasão do domicílio, o que não ofende o art. 5º, XI, da CF" (TJSP – AP – Rel. Celso Limongi – RT 683/295)
"Se o flagrante subseqüente a busca efetivada sem mandado ou sem a presença de autoridade, desenganadamente apurou ocorrência de infração de natureza permanente, quando da sentença não há sacrificar-se a verdade apurada por escrúpulos formais quanto à regularidade inicial da diligência que provocou a ação penal depois instaurada. Irregularidade que tais, quando existam, deverão acarretar punição dos executores, mas não constituem motivo para exarar-se, a final, decreto absolutório, desde que devidamente comprovado o fato delituoso e a autoria" (TACRIM-SP – AP – Rel. Azevedo Franceschini – RT 453/421 – JUTACRIM-SP 30/257).
Ocorre que, como já se fez frisar alhures, na atual sistemática normativa não há direitos absolutos, sejam fundamentais, ou não, nem tampouco, hierarquia entre normas constitucionais, pois, o hermeneuta pode lançar mão de uma norma constitucional de caráter fundamental, em detrimento de outra norma constitucional, fundamental ou não, e que axiologicamente, mostre-se, em determinado caso concreto, em patamar inferior àquela. Nestas ocasiões, o instrumento, via de regra, utilizado pelo intérprete, será o sistema e mecanismo hermenêutico construído pelo denominado Princípio da Proporcionalidade, mais especificamente, Pro Societate.