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A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus.

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Agenda 20/05/2019 às 13:50

Há muitas famílias brasileiras instruindo os seus filhos fora do ambiente escolar, fortes na convicção de que, em casa, a criança desenvolveria os seus potenciais intelectuais de um modo mais apropriado do que na escola. Contudo, o Poder Público entende que a criança deve ser educada dentro da escola, seja a estatal ou a não-estatal.

Resumo: Analisa-se, a partir da leitura das peças processuais e da oitiva dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal por ocasião das sessões de julgamento do feito, os principais fundamentos normativos e os mais relevantes argumentos jurídicos deduzidos pelas partes,  magistrados e outros atores processuais nos autos do Recurso Extraordinário n. 888.815, que apreciou a questão da educação domiciliar (homeschooling), verificando se essas manifestações estão em sintonia com o direito humano fundamental da criança à educação.

Palavras-chave: Direitos Humanos Fundamentais - Direito das Crianças – Educação Domiciliar – Supremo Tribunal Federal – Recurso Extraordinário n. 888.815.

Sumário: 1 Introdução; 2 O direito humano fundamental da criança à educação; 3 O processo e o julgamento do RE 888.815; 4 Conclusões; 5 Referências.


1. INTRODUÇÃO

O presente texto visa analisar os principais fundamentos normativos e os mais relevantes argumentos jurídicos deduzidos por ocasião do processo e do julgamento do Recurso Extraordinário n. 888.815[1], no qual o Supremo Tribunal Federal decidiu que a educação domiciliar (homeschooling) não está autorizada no Brasil.

 Este artigo descansa a sua justificativa no fato de que há muitas famílias brasileiras que estavam instruindo os seus filhos fora do ambiente escolar, fortes na convicção de que em casa a criança desenvolveria os seus potenciais intelectuais de um modo mais apropriado do que na escola. Além desse aspecto fático, há o conflito normativo, visto que as famílias entendem possuir a liberdade de instruir os seus filhos fora da escola, enquanto que o Poder Público entende que a criança deve ser educada dentro da escola, seja a estatal ou a não-estatal.

A finalidade deste texto consiste, no entanto, em apresentar os principais fundamentos normativos e os mais relevantes argumentos jurídicos deduzidos pelos atores processuais (partes e magistrados) no curso do feito, levando em consideração as prescrições normativas, nacionais e internacionais, sobre os direitos humanos fundamentais das crianças, mormente o de ser instruída e educada, a fim de verificar se as razões das partes e dos magistrados são consistentes, convincentes e coerentes.

Para alcançar esse desiderato, o caminho a ser percorrido consiste em analisar os autos do processo, lendo com atenção e rigor todos os expedientes relevantes, escutar os áudios das sessões de julgamento do feito disponibilizado em plataforma midiática, apreciar os textos normativos pertinentes e colher adequados subsídios no apropriado magistério doutrinário. Nesse percurso, visitaremos, inicialmente, o direito humano fundamental da criança de ser educada. Depois, avançaremos sobre o feito judicial.


2. O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL DA CRIANÇA À EDUCAÇÃO

Está prescrito no caput do art. 6º da Constituição Federal que a educação é um dos direitos sociais. No inciso XXV do art. 7º desse citado diploma político-normativo está enunciado o direito do trabalhador à assistência gratuita aos seus filhos e dependentes desde o nascimento até cinco anos de idade em creches e pré-escolas. Nessa toada, entre os arts. 205 e 214 da Constituição, consta uma Seção apenas para cuidar do tema “educação”. Dentre esses comandos normativos recorda-se o caput do art. 205 que prescreve ser a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Nos demais comandos constitucionais, há a regulação da educação escolar formal a ser prestada ou na rede pública ou na rede privada. No art. 227 está prescrito que o Estado, a família e a sociedade assegurarão à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, vários direitos, e dentre eles o direito à educação. Assim, sem maiores esforços interpretativos, à luz do quanto prescrito na Constituição, houve a opção normativa preferencial pela educação formal escolar, concedendo aos pais a liberdade de escolher entre uma escola pública ou uma escola particular. Cuide-se, a bem da verdade, que a Constituição não veda explicitamente a possibilidade de educação domiciliar. Daí que poderia o legislador infraconstitucional regulamentar esse modelo alternativo de educação. Porém, essa regulamentação infraconstitucional legal não adveio.

Com efeito, no plano infraconstitucional, o “Estatuto da Criança e do Adolescente” (Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990) dispõe, no art. 4º, em regulamentação ao texto constitucional, o dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público, com absoluta prioridade, a efetivação do direito referente à educação, dentre outros direitos constitucionalmente assegurados. Ainda no “Estatuto da Criança e do Adolescente” – ECA, entre os arts. 53 e 59, há um extenso rol de preceitos que reconhecem às crianças o direito de serem educados em escolas, ou públicas ou privadas, e o consequente dever da família e do Poder Público de viabilizarem esse direito à educação escolar, reitere-se.

A reforçar esse direito da criança, e o consequente dever da família e do Estado, recorde-se o disposto na “Lei das Diretrizes e Base da Educação Nacional” – LDB (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) que preceitua enunciados específicos sobre o tema da educação. O art. 1º dessa citada Lei enuncia que a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. No § 1º desse mencionado art. 1º está enunciado que a educação escolar se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino em instituições próprias. E, no art. 6º, está prescrito ser dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade. E, para as autoridades públicas, está disposto, no §4º do art. 5º, que comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.

Cuide-se que nessa “LDB”, entre os arts. 58 e 60, há a regulamentação para a educação especial, entendida como a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, e nessas hipóteses, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular, serão possíveis serviços especializados. Ou seja, se acaso for melhor para a criança, tendo em vista suas peculiares características, a sua não participação na escola formal, poderá ser autorizada, excepcionalmente, a educação especial em serviços especializados. Assim, se a família comprovar que o melhor para a criança for a sua não participação na escola, ou pública ou privada, poderá o órgão competente autorizar a aplicação de modelo extraordinário de educação especial.

No plano normativo internacional, recorde-se o disposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que prescreve, no artigo 26, o direito humano à instrução e, dentre outros comandos, o direito dos pais à prioridade na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos. Por meio do Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992, o Brasil promulgou e internalizou o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, que estabelece, em seu artigo 13, o direito das crianças à educação e o dever dos Estados Partes à garantia desse direito, inclusive o direito dos pais de escolherem escolas distintas das públicas. Ou seja, garante-se o direito de escolher uma escola, mas não se dá o direito de não matricular em escola alguma. Tenha-se, por fim, o Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990, que promulgou e internalizou a Convenção sobre os Direitos da Criança, cujo artigo 28 enuncia que os Estados Partes reconhecem o direito da criança à educação e o seu exercício progressivo e em igualdade de condições. Todos esses citados diplomas internacionais não estipulam o modelo educacional, conquanto sinalizem em favor da educação escolar, sem vedar a educação ou ensino domiciliar.

O tema da educação domiciliar (homeschooling) já tinha sido objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do Mandado de Segurança n. 7.407[2], ocasião na qual o Tribunal negou o direito à educação domiciliar, uma vez que não há previsão constitucional ou legal reconhecendo essa modalidade de ensino. Pede-se licença para transcrever excertos do voto vencedor do ministro Peçanha Martins:

É inconteste que na conjuntura atual, quando se procura erradicar o analfabetismo, reduzir o absenteismo escolar, retirar menores e adolescentes das ruas, estimular o retorno às escolas etc., o ordenamento jurídico em vigor no país pertinente ao ensino básico fundamental, constante de preceitos constitucionais e legais, dispõe que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, com colaboração da sociedade, competindo ao poder público, aos pais ou responsáveis e aos estabelecimentos de ensino controlar a frequência às escolas, que não poderá ser inferior a setenta e cinco por cento do total de horas do período letivo para a aprovação.

São comoventes as constantes reportagens da TV sobre professoras abnegadas e pessimamente remuneradas, nos mais distantes rincões do país, improvisando salas de aulas; alunos encanecidos desenhando letras com as mãos calejadas pela labuta diária; crianças percorrendo quilômetros a pé, ou em transportes precários como frágeis canoas nos igarapés amazonenses, a fim de comparecerem às escolas. Outro tanto se diga em relação a programas desenvolvidos por diversas entidades privadas e governamentais, despertando o interesse de menores e adolescentes por atividades culturais e esportivas.

Os filhos não são dos pais, como pensam os Autores. São pessoas com direitos e deveres, cujas personalidades se devem forjar desde a adolescência em meio a iguais, no convívio social formador da cidadania. Aos pais cabem, sim, as obrigações de manter e educar os filhos consoante a Constituição e as leis do País, asseguradoras do direito do menor à escola (art. 5º e 53, I, da Lei nº 8.096/90) e impositivas de providências e sanções voltadas à educação dos jovens como se observa no art. 129, e incisos, da Lei nº 8.096/90 supra transcritos, e art. 246, do Código Penal, que define como crime contra a assistência familiar "deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar", cominando a pena de "detenção de quinze dias a um mês, ou multa, de vinte centavos a cinquenta centavos".

Esses os motivos pelos quais, à míngua de direito líquido e certo dos Autores, denego a segurança.

Nada obstante esse precedente superior, o Poder Judiciário foi novamente instado a se manifestar sobre essa importante questão. Sobre esse novo processo que foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal que iremos avançar.


3. O PROCESSO E O JULGAMENTO DO RE 888.815

O feito se originou em um mandado de segurança[3] impetrado em face de ato praticado pela Secretaria de Educação do Município de Canela, Estado do Rio Grande do Sul, que não autorizou a solicitação dos pais em educar a sua filha por meio da educação domiciliar. O ato questionado está vazado no seguinte teor:

“Em resposta a sua solicitação de educar sua filha, no Sistema de Ensino Domiciliar, esta Secretaria, conforme decisão do Conselho Municipal de Educação, e amparada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e Estatuto da Criança e do Adolescente, orienta para a imediata matrícula de Valentina Dias na rede regular de ensino, assim como o compromisso com a frequência escolar”.

A impetração aduziu que a convivência com outras crianças de diferentes idades e com distintas formações culturais poderia ser prejudicial para a criança impetrante, por aspectos morais, religiosos e ate sexuais.  Os pais invocaram a liberdade de crença religiosa em favor de sua postulação e evocaram a falência da educação pública brasileira para justificar a educação domiciliar. Na impetração aludiu-se inexistir normas proibitivas da educação domiciliar e aludiram a uma lacuna normativa sobre o tema. O ponto central da impetração reside na tese de que a primazia na educação dos filhos pertence à família, de sorte que somente na hipótese de falência familiar competiria ao Estado cuidar da educação das crianças. Segundo a impetração, os pais não têm o direito de educarem domiciliarmente, mas o dever de educarem no domicilio familiar. E, segundo a impetração, o Estado é, portanto, uma estrutura auxiliar e subsidiária da família no processo educacional das crianças.

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Na impetração, evocaram fundamentos normativos que dariam conforto à postulação, e esses fundamentos estariam ancorados em textos normativos constitucionais, legislativos e internacionais, que, segundo a impetração, conduziriam à tese segundo a qual a educação domiciliar é um dever familiar. E que os pais possuem o direito natural de criarem e educarem os seus filhos, que somente não poderão exercer esse direito/dever se não houver condições de seu exercício. Ademais, a impetração recorda a legislação que autoriza que o aluno ingresse em algum nível da educação básica sem necessidade de ter frequentado anteriormente a escola, bastando a realização de uma avaliação que meça seu grau de desenvolvimento. Nessa perspectiva, segundo a impetração é possível que aquele que foi educado em casa possa se submeter aos exames nacionais de ensino médio (ENEM), o que resultaria no reconhecimento implícito da validade da educação domiciliar.

A impetração recordou como direito fundamental a liberdade de crenças e de consciência, de sorte que obrigar os pais ao dever de matricular os filhos em escolas (públicas ou privadas) seria uma violação a esses dois direitos fundamentais. Na impetração concluiu-se:

1. O ensino domiciliar não é proibido no Brasil. Não há nenhuma norma jurídica que, expressamente, o considere inválido. E casos como esse, aplica-se o princípio constitucional da legalidade, que considera lícito qualquer ato que não seja proibido por lei;

2. O ensino domiciliar é um dever que os pais ou responsáveis têm com relação aos filhos. A educação, em sentido amplo, deve ser dada principalmente em casa, sendo a instrução escolar apenas subsidiária;

3. O ensino domiciliar também é um direito dos pais, pois, conforme o Código Civil, uma das atribuições decorrentes do poder familiar é a de dirigir a educação dos filhos. A escolarização somente é necessária se os pais não puderem ou não quiserem educar os filhos em casa;

4. Essa interpretação foi adotada implicitamente pelo Ministério da Educação ao dispor que a obtenção de determinada pontuação no Enem dá direito a um certificado de conclusão do ensino médio, sendo desnecessária qualquer comprovação escolar;

5. A matrícula em instituição de ensino somente é obrigatória, nos termos da LDB e do ECA, para os menores que não estejam sendo ensinados em casa ou cuja educação domiciliar revele-se, indubitavelmente, deficiente;

6. Somente há crime de abandono intelectual se não for provida instrução primária aos filhos. O CP, ao prever essa conduta, não colocou como requisito que essa instrução deva ser dada na escola; e

7. O Conselho Tutelar tem o poder, assegurado legalmente, de fiscalizar a educação recebida por crianças e adolescentes, podendo, inclusive, submeter aqueles educados em casa a avaliações de desempenho intelectual condizente com sua idade. Não pode, porém, determinar o modo como serão educados, em casa ou na escola, o que constituiria abuso de autoridade por intromissão indevida na esfera do poder familiar dos pais.

O juiz de primeiro grau sentenciou[4] indeferindo de pronto a inicial, forte no argumento de que não há direito líquido e certo a viabilizar a pretensão contida no mandado de segurança e entendeu que não existia possibilidade jurídica do pedido por absoluta falta de amparo legal. E o juiz assinalou:

O convívio em sociedade implica respeitar as diferenças que marcam a personalidade de cada indivíduo. Em tenra idade, a escola é o primeiro núcleo em que a pessoa se vê diante dessas diferenças. Há contato com colegas de diferentes religiões, cor, preferência musical, até de nacionalidades distintas, etc.

O mundo não é feito de iguais.

Uma criança que venha a ser privada desse contato possivelmente terá dificuldades de aceitar o que lhe é diferente. Não terá tolerância com pensamentos e condutas distintos dos seus.

A escola é um ambiente de socialização essencial na formação dos indivíduos. Nela se aprende a conviver com o outro, desenvolvendo-se a alteridade necessária à vida em sociedade.

Ademais, a orientação religiosa de um cidadão não se sobrepõe à observância das normais legais que regem o país em que vive.

No Brasil, a educação é dever do Estado e da família, conforme estabelece o artigo 205 da Constituição Federal. Assim sendo, foi devidamente regulamentada mediante a sua divisão em ensino infantil, fundamentai, médio e superior.

Consequentemente, cabe à impetrante frequentar o ensino regularmente estabelecido e reconhecido pelo Poder Público. Nada impede, evidentemente, que em horário não colidente com o da escola, tenha contato com outros métodos de ensino, inclusive religiosos, que seus pais entendam adequados ao seu desenvolvido físico e psíquico, até porque a formação moral compete à família.

Se o aluno recebe uma boa educação em casa, estabelecendo os limites do certo e do errado, o que for ensinado na vida discente apenas acrescentará valores à sua formação. Não será, entretanto, capaz de mudar-lhe o comportamento a ponto de negar os ensinamentos que recebeu no lar.

Irresignados, os impetrantes manejaram os competentes recursos e interpuseram recurso de apelação para o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Em seu apelo, os impetrantes reiteraram as principais razões contidas na petição inicial. Perante o Tribunal gaúcho, o Ministério Público[5] opinou pela manutenção da sentença e indeferimento da impetração. Essa opinião se fundou no cânone de que a educação é um dever do Estado e dos pais, e que consiste em um direito social fundamental da criança à educação, e que não há o direito de não frequentar a escola, cabendo aos pais zelar por essa frequência escolar. E, segundo o Parquet,  no conflito entre os direitos ideológicos e religiosos dos pais e os deveres deles com a educação escolar dos filhos, há de prevalecer este sobre aqueles.

O acórdão[6] do Tribunal de Justiça negou provimento ao apelo dos impetrantes e manteve a sentença, reforçando o aspecto de que não há que se falar em “direito líquido e certo”, visto que não há Lei confortando o interesse postulado. A decisão do TJ encampou os fundamentos normativos e os argumentos jurídicos deduzidos na sentença judicial. Nada obstante, vez mais irresignados, os impetrantes interpuseram recurso extraordinário[7] para o Supremo Tribunal Federal e alegaram:

  1. A obrigatoriedade de ensino prevista no art. 208, I, da Constituição, dirige-se somente ao Estado;
  2. A Constituição não pretende criar um Estado totalitário e paternalista que possa validamente se substituir aos pais na escolha da melhor educação a ser dada aos filhos (arts. 1º, caput, - ‘Estado Democrático de Direito’, e V – ‘pluralismo político’; 3º, I; 206, II e III);
  3. Cabe, sim, ao Poder Público fiscalizar as condições em que o ensino privado é ministrado, mas jamais proibir uma modalidade de ensino sem qualquer razão para tanto – a escola não é o único lugar em que as crianças podem ter contato com a diversidade;
  4. Ademais, é necessário, no presente caso, a aplicação do princípio da razoabilidade por tratar-se ‘de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, [...] por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema"2 (grifo nosso). Assim, os dispositivos da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, e da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que obrigam a matrícula devem ser interpretados dessa maneira: Os pais são obrigados a dar educação aos filhos, mas têm liberdade para escolher o melhor meio para tanto, considerados o interesse da criança e as suas convicções pedagógicas, morais, filosóficas e religiosas. Nesse contexto, somente poderão ser obrigados a matricular seus filhos na rede regular de ensino se, de outra forma, não puderem prover à educação dos filhos.

Na petição de recurso extraordinário, além de repisar os fundamentos e argumentos esgrimidos desde a inicial, os recorrentes recordaram várias decisões no plano do direito comparado, visando demonstrar que em nações desenvolvidas, o respectivo Poder Judiciário reconheceu o ensino domiciliar, além de se fiar em respeitável magistério doutrinário justificador de sua pretensão, bem como invocando preceitos de textos normativos internacionais que autorizariam o reconhecimento do direito à educação domiciliar. No apelo extraordinário concluiu-se:

O acórdão da Apelação Cível n. 70052218047 é flagrantemente inconstitucional, uma vez que ao impedir a educação em casa, com realização de provas normais em sala de aula, restringe arbitrariamente o sentido da expressão educar no art. 229 da CF à realizada em estabelecimento de ensino convencional, ignorando os diversos princípios constitucionais relativos à educação, à família, bem como garantias fundamentais individuais.

Os Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário, bem como os documentos relativos a direitos humanos de maior relevância para as modernas democracias são unânimes quanto à garantia do direito fundamental dos pais de escolherem os meios que julgarem mais apropriados para educar seus filhos.

Deve-se dar aos arts. 6° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevêem a obrigatoriedade de matrícula em estabelecimento de ensino, interpretação conforme a Constituição. Os pais são obrigados a dar educação aos filhos, mas têm liberdade para escolher o melhor meio para tanto, considerados o interesse da criança e as suas convicções pedagógicas, morais, filosóficas e religiosas. Nesse contexto, somente poderão ser obrigados a matricular seus filhos na rede regular de ensino se, de outra forma, não puderem e prover à educação das crianças.  

Em face desse recurso extraordinário, o Município de Canela apresentou suas contrarrazões[8] e defendeu a manutenção do acórdão recorrido. Segundo o Município:

O ensino domiciliar não pode ser visto como um substituto do ensino escolar, mas sim como uma complementação, uma participação ética e conjunta dos pais na educação de seus filhos.

A escola proporciona o primeiro contato das crianças com a sociedade em que vivem, pois é o primeiro lugar que frequentam fora do âmbito familiar.

A participação dos pais na educação das crianças é essencial para o desenvolvimento escolar de seus filhos, pois são eles que fornecem suporte moral, social e emocional às crianças, por isso devem participar efetivamente da vida escolar delas, acompanhando seus estudos, auxiliando nas tarefas e incentivando a leitura.

Todavia, a ida à escola, o convívio diário com pessoas diferentes, com os professores, a realização de atividades de classe e em grupo são fundamentais, pois propiciam o desenvolvimento da criança, proporcionando o desenvolvimento da criatividade e do descobrimento de seus talentos.

A simples divisão de tarefas em uma atividade em grupo funciona como propulsora para a formação pessoal como ser humano, pois visualizam que cada pessoa tem seu papel na construção de um trabalho comum, aprendendo o porquê da convivência em sociedade.

No Supremo Tribunal Federal, o feito restou distribuído ao ministro Luís Roberto Barroso, que saneou vícios procedimentais e submeteu ao Tribunal a seguinte proposta de questão constitucional, que restou acolhida pela Corte: saber se o ensino domiciliar (homeschooling) pode ser proibido pelo Estado ou viabilizado como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação, tal como previsto no art. 205 da CRFB/1988.

A relevância da referida controvérsia constitucional provocou a obrigatória manifestação da Procuradoria-Geral da República[9], e manifestações facultativas, como amici curiae, da Advocacia-Geral da União[10], do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal[11] e da Associação Nacional de Educação Domiciliar[12].

O Procurador-Geral da República (PGR) opinou no sentido do desprovimento do recurso extraordinário e pela ilicitude do ensino domiciliar. Eis trechos relevantes da ementa do parecer ministerial:

1 - Proposta de Tese: A utilização de instrumentos e métodos de ensino domiciliar (homeschooling) para crianças e adolescentes em idade escolar em substituição à educação em estabelecimentos escolares, por opção dos pais ou responsáveis, não encontra fundamento próprio na Constituição Federal.

2 (...)

3 - Pais e responsáveis legais não têm autorização para, mediante invocação do poder familiar, negar aos filhos educação nos parâmetros legais, ainda que na forma da escusa constitucional de consciência e de crença (art. 52, VI, da CF I 1988). Inexiste estipulação legal de prestação alternativa que lhes permita escusar-se da obrigação legal a todos imposta de matricular seus filhos e mantê-los na escola (art. 52, VIII, da CF/1988).

4 - É inconcebível tutelar juridicamente práticas deliberadas de desescolarização no país, sem que haja previsão legal que as autorize e compatibilize com o imperativo constitucional de formação integral e socialização do educando.

5 - A Carta elevou a educação ao patamar de direito constitucional. Não está vedada, pela Constituição, a criação legal de estratégias alternativas ao ensino escolar, desde que resguardado o projeto constitucional de socialização e formação plena do educando. Novas formas de escolarização, meios de aferição da frequência escolar e outras variáveis do padrão pedagógico de ensino devem ser autorizados pelo Poder Legislativo, locus republicano de debate e deliberação públicos por excelência, dada a forte implicância política do tema.

6 - Impossibilidade de considerar, no que se refere ao caso sub judice, o ensino domiciliar, ministrado pela família, como meio lícito de cumprimento do dever de educação.   

Em seu parecer, o PGR formulou duas indagações para enfrentar o mérito da questão:

a) A utilização de instrumentos e métodos de ensino domiciliar para crianças e adolescentes em idade escolar, em substituição à educação em estabelecimentos escolares, por opção dos pais ou responsáveis, tem fundamento na própria Constituição Federal?

b) Em caso de resposta negativa para a primeira questão, é possível a adoção, pela via legislativa, dos referidos instrumentos e métodos de ensino domiciliar para crianças e adolescentes em idade escolar, sem entrar em conflito com as disposições constitucionais?

O PGR, para alcançar suas conclusões às indagações acima elencadas, partiu da correta premissa de que a educação não se resume no processo ensino-aprendizagem de conteúdos curriculares, mas integra a iniciação da vida em sociedade, mediante o reconhecimento do outro e o respeito à diversidade e pluralidade. De porte dessa pré-compreensão, o PGR construiu suas alegações no sentido de que, enquanto não advier lei específica regulando o ensino domiciliar, não há espaço para esse modelo alternativo educacional em nosso País. Nesse caminho, o PGR buscou suporte nas experiências estrangeiras e colheu opiniões de respeitáveis especialistas educacionais, para concluir que a educação domiciliar, em si, não está vedada, mas que, no Brasil, ela necessita de autorização legal, o que não existe.

O Advogado-Geral da União (AGU) também se manifestou pelo desprovimento do recurso extraordinário forte na tese de que o ordenamento jurídico exige a frequência escolar para as crianças, competindo aos pais e professores zelarem por essa regularidade. Ademais, entende o AGU que o processo educacional é complexo e deve ser praticado tanto pela Escola quanto pela Família, com o auxílio da Comunidade, de sorte que não há espaço para a exclusividade educacional familiar ou domiciliar, em prejuízo da educação escolar, sobretudo para as famílias mais carentes. Outrossim, na escola a criança terá acesso a outros conhecimentos que talvez a família não consiga oportunizar, o que é válido para o seu processo de amadurecimento, como sucede com ensinamentos e práticas sobre diversidade, tolerância e pluralidade. Nessa perspectiva, escola e família, segundo a legislação brasileira, devem ser instituições galvanizadoras de um bom desenvolvimento e integral desenvolvimento da criança.

O Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, na mesma toada do PGR e do AGU, se manifestou pelo desprovimento do recurso extraordinário. Em sua manifestação, o Colégio aduziu aspectos metajurídicos sobre o processo educacional, sobre os papéis da família, da escola e da comunidade. Também invocou decisões de outros tribunais e documentos normativos internacionais em favor de sua postulação. No entanto, o Colégio assinala que um dos papeis da escola é preservar os filhos de seus pais. Essa perspectiva é arriscada, pois coloca em xeque o papel central da família e dá valor sobranceiro à escola. Nada obstante, o Colégio reconhece a importância de uma escola capaz de ensinar, além de conhecimentos, valores indispensáveis para uma boa vida em sociedade. Daí que, para o Colégio, qualquer forma de ensino domiciliar é inconstitucional na medida em que afasta a criança da escola formal.

A Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANEDE), forte no fato de que a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural é a família, achegou pesquisa junto às famílias praticantes da educação domiciliar e recordou os Princípios do Rio elaborados e assinados pelos participantes do Global Home Education no ano de 2016, reiterando o papel sobranceiro da família na formação e educação dos filhos em face do Estado e, por essa razão, seria possível uma leitura do texto constitucional autorizadora de modelos educacionais alternativos aos modelos oficiais. Em sua manifestação, a ANEDE recordou decisões judiciais e o magistério doutrinário que colocam a dignidade da pessoa humana e o pluralismo ideológico (político, moral, religioso etc.) como fundamentos do Estado democrático e da sociedade brasileira. Isso implicaria o reconhecimento de modos de viver alternativos, mas dentro da normalidade institucionalizada, como sucede com o interesse ao “homeschooling”.

Nessa linha, a ANEDE reforçou a tese do caráter subsidiário do Estado em face da família, mormente em matéria educacional. Para isso, aduziu diplomas normativos internacionais de direitos humanos que, ao seu ver, endossariam a pretensão deduzida. Também evocaram a liberdade de crença religiosa em favor de sua postulação, na medida em que pretendem evitar que os filhos tenham acesso a magistério contrário ao das fés dos pais das crianças. Defenderam que a socialização das crianças participantes do “homeschooling” não é pior do que as das crianças das escolas formais, e que teriam, inclusive, melhores desempenhos intelectuais e emocionais do que as outras crianças. Ao final, a ANADE requereu:

a) O reconhecimento do modelo educacional conhecido no Brasil como Educação Domiciliar como um direito constitucional autoaplicável, podendo o Estado brasileiro, se assim o desejar, adotar os procedimentos necessários para registrar os educandos e seus responsáveis legais que optem pela prática, podendo, ainda, adotar parâmetros educacionais, pedagógicos e psico-pedagógicos atuais para medir os resultados educacionais dessas famílias optantes, em tudo levando-se em conta os ideais e princípios basilares de liberdade que fundamentam o Estado Democrático de Direito brasileiro, a necessária colaboração da sociedade, assim como as finalidades da Educação Nacional insculpida na Constituição da República Federativa do Brasil;

b) Alternativamente, o reconhecimento do direito fundamental democrático à objeção de consciência como fundamento da adoção da educação domiciliar pelas famílias.

A Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente[13] apresentou Nota Técnica sobre essa questão e se manifestou no sentido de que não há no ordenamento jurídico brasileiro autorização normativa para o “homeschooling” e que para que esse modelo passasse a existir, no Brasil, se faria necessária a edição de lei regulamentando com rigor esse modelo educacional, visto que a criança tem o direito de frequentar uma escola, ou pública ou privada, e os pais têm o dever de matriculá-la. Essa tem sido a opção normativa do Estado brasileiro, daí que somente se houver lei aprovada pelos legítimos representantes eleitos do povo é que se poderia cogitar de uma modelo educacional alternativo ao modelo educacional escolar. E que a Escola é um espaço que ocupa lugar relevante no processo de amadurecimento da criança, sem diminuir ou substituir o espaço central que é indiscutivelmente da Família. Mas ambas devem ter como perspectiva o melhor interesse da criança, seu desenvolvimento moral, espiritual e intelectual, e sua capacidade de conviver em uma sociedade plural e complexa.

De posse dessas alegações, os ministros do Supremo Tribunal Federal enfrentaram o tema. O relator, ministro Luís Roberto Barroso[14], expôs a controvérsia a partir de duas indagações redutoras de complexidade:

1. Podem os pais ou responsáveis por uma criança optarem pelo ensino domiciliar para a educação dos filhos ou a Constituição exige a matrícula das crianças na escola?

2. No caso de se admitir a educação domiciliar, quais são os requisitos e obrigações a serem observados, considerando que não há uma lei específica que regulamente o ensino domiciliar?

 Segundo o ministro relator, do ponto de vista jurídico não há norma constitucional específica sobre o tema (educação domiciliar), visto que a Constituição só cuida do ensino oficial. Logo há duas possibilidades interpretativas, segundo o relator: uma, a de que somente é possível o ensino formal, escolar, ou a segunda, de que como a Constituição não veda o ensino domiciliar, deve-se respeitar a autonomia dos pais na escolha do modelo educacional dos seus filhos. O relator parte de quatro premissas: primeira, o Estado brasileiro é gigantesco e ineficiente, e prática políticas públicas inadequadas e sem qualquer tipo de monitoramento; segunda, os resultados das avaliações educacionais estão sendo desoladores, que revelam a falência da educação pública brasileira; e terceira, por convicção filosófica, o relator é favorável à autonomia e a emancipação das pessoas, do que ao paternalismo e as intervenções heterônomas do Estado, salvo onde essas intervenções são indispensáveis; e quarta e última, o fato de se admitir a possibilidade de educação domiciliar não significa um juízo de valor sobre a eventual superioridade desse modelo em relação à educação escolar, mas que cabe a cada pai escolher qual o melhor modelo para os seus filhos.

Depois de fincar essas premissas, o relator passou a tecer comentários sobre o homeschooling, e analisou a situação dele e as suas várias modalidades.  E elencou sete razões para que os pais escolhessem essa modalidade educacional: primeira, o desejo de conduzir diretamente o desenvolvimento dos filhos; a segunda, o fornecimento de instrução moral, científica, filosófica e religiosa da forma que os pais consideram a mais adequada; a terceira, a proteção da integridade física ou mental dos educandos, retirando-os de ambientes escolares, agressivos, incapacitantes ou limitadores; quarta, o descontentamento com a real eficácia  do sistema escolar ofertado pela rede pública ou privada; quinta, o desenvolvimento de um plano de ensino personalizado e adaptado às peculiaridades das crianças e adolescentes; sexta, a crença da superioridade do método de ensino doméstico em relação aos métodos tradicionais empregados pela rede regular de ensino; e sétima, a dificuldade de acesso a instituições de ensino tradicionais em virtude de dificuldades financeiras ou geográficas. E, para o relator, são genuínas as preocupações dos pais com o desenvolvimento educacional e emocional dos seus filhos, pois nenhum pai ou mãe faz essa opção por preguiça, pois é mais difícil educar em casa do que encaminhar o filho para a escola.

No decorrer de seu voto, o relator buscou as exitosas experiências estrangeiras sobre o homeschooling, bem como de julgamentos de outras Cortes sobre o tema, e depois passou a enfrentar os argumentos contrários a esse modelo educacional, basicamente para dizer que não há na Constituição preceito que vede a adoção dessa modalidade educacional, e que a criança seria avaliada periodicamente para aferir o seu aprendizado. Ademais, recordou pesquisas empíricas demonstrando a inexistência de problemas de socialização de crianças que participam da educação domiciliar, e recordou diretivas internacionais que autorizariam aos pais escolher o gênero de educação dos filhos, inclusive em respeito à ampla livre iniciativa, não apenas no aspecto econômico, mas inclusive no plano das liberdades ideológicas, como as religiosas, de consciência e de convicções filosóficas ou políticas. Na finalização de seu voto, o relator fixou as seguintes teses para efeitos de repercussão geral:

É constitucional a prática de ensino domiciliar a crianças e adolescentes em virtude da compatibilidade com finalidades e os valores da educação infanto-juvenil, expressos na Constituição de 1988;

Para evitar eventuais ilegalidades e garantir o desenvolvimento acadêmico das crianças e adolescentes,  e avaliar qualidade do ensino até que seja editada lei específica sobre tema com fundamento no artigo 209, os seguintes parâmetros devem ser seguidos:

1 Os pais ou responsáveis devem notificar secretaria municipal de educação a opção pela educação domiciliar de modo a se manter cadastro e registros dessas famílias que adotaram essa opção de ensino naquela localidade;

2 Educandos domésticos, mesmo que autorizados ao ensino em casa, devem ser submetidos às mesmas avaliações periódicas a que se submetem os demais estudantes de escolas públicas ou privadas;

3 As secretarias municipais de educação, a partir do cadastro, devem indicar escola pública em que a criança irá realizar avaliações periódicas com preferência em estabelecimento de ensino mais próximo ao local de residência;

4 As secretarias municipais de educação podem compartilhar informações do cadastro com demais autoridades, como ministério público, conselhos municipais de direitos e/ou conselhos tutelares; e

5 Em caso de comprovada deficiência na formação acadêmica verificada por meio do desempenho nas avaliações periódicas anuais, cabe aos órgãos públicos competentes notificarem os pais e na hipótese em que não haja melhoria do rendimento dos testes periódicos, determinar a matricula das crianças e adolescentes submetidas ao ensino doméstico na rede regular de ensino.

Segundo o relator, com essas regras estariam conciliados os diferentes interesses em jogo: o dos pais em educarem os seus filhos em casa, e os do Estado de verificar se o ensino domiciliar está permitindo o pleno desenvolvimento da criança. Em que pese os judiciosos argumentos do relator, a maioria do Tribunal dele divergiu. Essa divergência foi inaugurada pelo ministro Alexandre de Moraes[15], que restou secundado pelos demais ministros da Corte presentes na sessão de finalização do julgamento (Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Cármen Lúcia).

Em sua divergência vencedora, o ministro Alexandre de Moraes partiu de três premissas: a primeira, saber se a Constituição veda expressamente a educação domiciliar; a segunda, se não vedar expressamente, qual modelo de ensino domiciliar poderia ser válido; e terceira, se o ensino domiciliar é autoaplicável ou se há necessidade de regulamentação legal pelo Congresso Nacional.

E, segundo o ministro Alexandre de Moraes, não há vedação constitucional ao ensino domiciliar. Nada obstante, o ministro Alexandre diferencia educação de ensino. Para ele há uma solidariedade na educação envolvendo a família, o Estado e a sociedade, que devem compartilhar as responsabilidades pela educação das crianças, adolescentes e jovens. Daí que inafastável a participação da família na formação (educação, no sentido amplo) da criança, sem prejuízo da atividade de ensino (educação formal) da escola. E que nas democracias as famílias devem participar do processo de ensino e não se pode afastar a escola da educação. Há uma relação solidária e simbiótica, para que ambas cooperem, como parceiras, em favor dos interesses das crianças e dos adolescentes.  Nessa perspectiva, segundo o ministro Alexandre de Moraes, a educação domiciliar possível seria aquela que respeite os comandos constitucionais e legais pertinentes e similares à educação escolar, aceitando inclusive a participação estatal com a fiscalização e com os conteúdos básicos mínimos, a fim de aferir periodicamente os conhecimentos assimilados pelas crianças.

Porém, segundo o ministro Alexandre de Moraes, e eis a divergência central com o voto do relator ministro Luís Roberto Barroso, esse direito não é autoaplicável e diretamente extraído da Constituição, pois necessitam da intermediação legislativa do Congresso Nacional. Assim, somente haveria direito a educação domiciliar se houvesse lei específica regulando esse tema. É que para o ministro Alexandre de Moraes, todas as normas constitucionais e infraconstitucionais conduzem à educação escolar, mas não veda a possibilidade de educação domiciliar, desde que, reitera o ministro, haja legislação específica regulamentando o tema. Os demais ministros da Corte acompanharam a divergência e entenderam que não há direito à educação domiciliar à míngua de amparo legal. Em seus votos, os ministros acolheram os principais argumentos aduzidos pelas partes contrárias ao provimento do recurso.

Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. A educação domiciliar (homeschooling) no banco dos réus.: Uma breve análise do julgamento do Recurso Extraordinário n. 888.815, sob as luzes do direito humano fundamental da criança à educação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5801, 20 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73943. Acesso em: 25 nov. 2024.

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