Sumário:1. Introdução 2. Os reflexos do Estatuto do Idoso nas relações jurídico-familiares 3. Da solidariedade da obrigação alimentar em favor da pessoa idosa 4. Conclusões. 5. Referências bibliográficas
1- INTRODUÇÃO
O Direito de Família atravessa um período de fecunda produção doutrinária e jurisprudencial e, para tanto, é inegável a influência da Constituição Federal de 1988 ao dar-lhe novos contornos.
Todavia, o Código Civil de 2002, apesar de ter patrocinado inúmeros avanços nas outras esferas do Direito Privado, em sede familiarista provocou retrocessos inaceitáveis. Basta imaginar, dentre outros infelizes exemplos, a verdadeira caçada aos direitos dos companheiros, ao lado da ignominiosa vedação à livre escolha do regime matrimonial de bens que impôs aos sexagenários, ambos incompatíveis com a normação constitucional.
Aliás, acabou-se por reforçar aquela velha idéia de que legislador ordinário é sempre mais conservador do que o constituinte. Deveras, sob certos aspectos, no âmbito do Direito de Família, a nova codificação tem sido um refúgio do conservadorismo jurídico, ao permitir, mesmo indevidamente, que se oponham barreiras ao ímpeto transformador das disposições da CF/88.
Mas os ventos fortes das mudanças sopram em todos os quadrantes e, dando concretude aos valores abraçados na lei maior, vieram a lume as disposições da Lei n° 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), verdadeiro microsistema legislativo, com princípios e regras peculiares.
2.OS REFLEXOS DO ESTATUTO DO IDOSO NAS RELAÇÕES JURÍDICO-FAMILIARES
Ainda é cedo para avaliar a extensão dos efeitos que o Estatuto do Idoso acarretará na esfera do Direito e do processo de Família, pois, ao longo de seus mais de cem artigos, várias de suas disposições repercutem em institutos familiaristas, a exigir do intérprete e aplicador do direito uma cuidadosa apreciação dos seus vetores principiológicos e legais.
Com efeito, suas regras buscam assegurar direitos fundamentais inerentes à pessoa do idoso e impõe obrigações legais a todos:
Art. 3o É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Neste contexto, tão somente com propósito ilustrativo, é possível identificar algumas das inovações albergadas pelo novel estatuto:
a)a obrigação alimentar em favor dos idosos passa a ser solidária, cabendo-lhes optar entre os prestadores (art. 12);
b)as transações relativas a alimentos podem ser celebradas perante o Promotor de Justiça, valendo como título extrajudicial (art. 12);
c)assegura aos seus destinatários o direito à mantença, a ser fornecida pelo poder público, se eles não puderem prover seu sustento e não contarem com familiares idôneos a fazê-lo;
d)prevê a possibilidade de criação de varas especializadas e exclusivas do idoso;
e)estabelece a prioridade na tramitação de processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que eles figurem como partes ou intervenientes (art. 71), reduzindo para 60 anos o limite previsto no art. 1211-A do CPC;
f)impõe ao Ministério Público o dever de promover e acompanhar as ações de alimentos, de interdição total ou parcial, de designação de curador especial, em circunstâncias que justifiquem a medida e oficiar em todos os feitos em que se discutam os direitos de idosos em situação de risco (art. 74, II);
g)atribui ao Ministério Público a qualidade de substituto processual do idoso em situação de risco (art. 74, II);
h)determina a intervenção obrigatória do órgão ministerial na defesa dos direitos e interesses de que cuida o estatuto, sob pena de absoluta nulidade do feito (art. 77).
Evidente que o idoso e a criança encontram-se em pólos opostos do ciclo existencial. Em certa medida, são extremos que se aproximam. Daí a sábia atitude do legislador em estabelecer um relativo paralelismo entre o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e do Adolescente, tanto mais palpável quando se comparam dois dos seus dispositivos mais capitais:
ESTATUTO DO IDOSO
Art. 43. As medidas de proteção ao idoso são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I – por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II – por falta, omissão ou abuso da família, curador ou entidade de atendimento;
III – em razão de sua condição pessoal.
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:
I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III - em razão de sua conduta.
A situação de risco a que a criança e o adolescente pode se expor é quase da mesma natureza da situação de risco a que pode se expor o idoso, ambas a exigirem uma forte e imediata intervenção dos órgãos estatais e não estatais de apoio e, em especial, dos representantes do Ministério Público.
Todavia, em virtude dos objetivos deste escrito, a análise restringir-se-á ao trato das mudanças que o Estatuto do Idoso trouxe à configuração da obrigação alimentar em favor do idoso, a ser objeto das próximas considerações.
3.DA SOLIDARIEDADE DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR EM FAVOR DA PESSOA IDOSA
Para um melhor entendimento das novas diretrizes legais, impõe-se uma rápida incursão no território da evolução legislativa que disciplinou a matéria.
O revogado Código Civil de 1916 expressamente preocupou-se com a situação dos pais na velhice, carência ou enfermidade, a teor do preceito abaixo transcrito:
Art. 399. São devidos os alimentos quando o parente, que os pretende, não tem bens, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e o de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento.
Parágrafo único. No caso de pais que, na velhice, carência ou enfermidade, ficaram sem condições de prover o próprio sustento, principalmente quando se despojaram de bens em favor da prole, cabe, sem perda de tempo e até em caráter provisional, aos filhos maiores e capazes, o dever de ajudá-los e ampará-los, com a obrigação irrenunciável de assisti-los e alimentá-los até o final de suas vidas. (Parágrafo acrescentado pela Lei 8.648, de 20.04.1993).
Evidente que o acréscimo promovido pela Lei n° 8.648/93 mereceu acerbas críticas da doutrina, posto que desnecessário em face da amplitude da obrigação alimentar que envolvia os parentes.
De todo modo, em se tratando dos pais que buscavam alimentos dos filhos, a dúvida era saber se haveria um litisconsórcio passivo necessário ou se a integração à lide dos filhos seria facultativa, o que ensejou algumas polêmicas e dividiu opiniões.
A primeira posição podia ser exemplificada no acórdão ora transcrito:
ALIMENTOS – AÇÃO DE ALIMENTOS PROPOSTA PELA MÃE CONTRA UM DE SEUS FILHOS – Comprovado o "cerceamento de defesa", indiscutivelmente havido, é de ser anulada a sentença, bem como a audiência, impondo-se também a citação dos outros filhos da autora, como litisconsortes passivos necessários, já que, coexistindo vários filhos, todos sujeitos à obrigação alimentar para com sua genitora, eis que não se trata de obrigação solidária, em que qualquer dos co-devedores responde pela dívida toda (CC, art. 904), cumpre sejam todos eles citados. Acolhimento da alegação do "cerceamento de defesa", anulando-se a sentença e a respectiva audiência. (TJRJ – Ap. 5.501/89 (SJ) – Rel. Des. Francisco Faria – J. 04.09.1990) (RT 669/150) (RJ 175/80)
Sob tal perspectiva, haveria um litisconsórcio passivo necessário obrigando a presença de todos os filhos na lide, sob pena de nulidade do feito.
Numa outra vertente doutrinária seguiam as ensinanças de YUSSEF CAHALI:
"Segundo entendimento que vimos sustentando, o chamamento dos demais filhos para que integrem o pólo passivo da lide não pode ser colocado em termos de litisconsórcio necessário, resolvendo-se em juízo de simples conveniência no interesse do alimentando para não expor-se ao risco de ver a pensão fixada apenas na proporção do correspondente à responsabilidade do filho demandado."
Este último ponto de vista veio a prevalecer e, assim, vigorava a tese de que o credor poderia, ao seu alvedrio, promover a integração à lide dos diversos coobrigados e, se apenas acionasse um deles, tão somente correria o risco de ver seu pensionamento fixado na exata medida das possibilidades do acionado. Por exemplo, imagine-se uma senhora que possuísse três filhos aptos à prestação alimentícia. Suas necessidades orçam em R$ 1.000,00 (hum mil reais). O primeiro filho poderia fornecer-lhe R$ 500,00 (quinhentos reais); e os restantes a soma de R$ 250,00 (duzentos e cinqüenta reais), cada um.
Se ela optasse por demandar apenas o primeiro filho, diante da divisibilidade da obrigação alimentar e do princípio da proporcionalidade, sujeitar-se-ia a receber apenas o "quantum" de R$ 500,00 (quinhentos reais).
Por tal motivo, se entendia que a integração à lide de todos os potenciais alimentantes, sobre ser medida salutar, serviria de antídoto a questionamentos jurídicos posteriores, já que, numa única demanda, o magistrado teriam mais aptidão para distribuir, entre os parentes, os encargos da obrigação alimentícia, na proporção dos recursos que detivessem.
Daí o CC/2002 expressamente ter adotado, com este intuito, um novo regramento:
Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.
Entretanto, este dispositivo vem sendo muito criticado, não apenas por significar uma "incursão indevida no direito processual", como pondera FRANCICO CAHALI, [02] mas igualmente por ter trazido a possibilidade de se suscitarem inúmeros questionamentos no âmbito da ação de alimentos, quando o esforço haveria de ser encaminhado no propósito de simplificá-la.
Deveras, em face da omissão acerca de como se daria a "integração à lide" dos eventuais coobrigados, muitas dúvidas surgiram a respeito da natureza jurídica desta inclusão, dos legitimados a provocá-la e do momento processual adequado à sua adoção.
Revela-se convincente a tese de que se trata de litisconsórcio passivo facultativo ulterior simples, consoante doutrinam FREDIE DIDIER JR [03] e ZENO VELOSO. [04]
Demais disso, sustenta o jovem processualista baiano que somente o autor poderia sustentar a aludida integração, ao tempo que admite a legitimidade excepcional do Ministério Público nas situações do art. 82, II, do CPC e, mais ainda, defende que esta modalidade interventiva encontraria no saneador o limite de sua provocação.
Ocorre que um fato novo veio a jogar mais lenha na fogueira destas controvérsias: trata-se do inusitado preceito contido no Estatuto do Idoso, ora transcrito:
Art, 12. A obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores.
Este dispositivo entra em rota de colisão com praticamente toda a doutrina e jurisprudência [05] que sustentam o entendimento de que a obrigação alimentar não é solidária, mas conjunta e divisível. Ou seja, havendo pluralidade de devedores, cada um responde por uma parte da dívida, na medida de suas possibilidades.
Sempre foi esta a lição dos velhos mestres, dentre os quais o grande CLÓVIS BEVILAQUA, ensinando que se "os alimentos forem devidos por mais de uma pessoa, a prestação deverá ser cumprida por todas, na proporção dos haveres de cada uma. A obrigação de prestar alimentos não é solidária". [06] De igual modo o parecer de CUNHA GONÇALVES: "A obrigação alimentar, quando recai sobre mais de uma pessoa, não é solidária, nem indivisível". [07] E, entre os modernos e por todos, a voz abalizada de YUSSEF CAHALI, afirmando peremptoriamente: "A obrigação alimentar não é solidária". [08]
Aliás, este o regramento imposto pelo CC/2002:
Art. 1696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.
Art. 1697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.
Art. 1698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.
A norma estatutária quebra, de uma só penada, o princípio da isonomia constitucional no tratamento dos mais vulneráveis, pois o privilégio da solidariedade em favor do idoso não foi estendido a outros eventuais credores de assemelhada debilidade, como as crianças e os adolescentes, por vezes muito mais necessitados do que aquele, mormente quando se sabe que a solidariedade não admite aplicação analógica.
Contudo, a despeito desta previsão, o emprego da solidariedade na hipótese sob comento há de ser promovida levando-se em consideração as demais regras codificadas que disciplinam a obrigação alimentar, mesmo porque a Lei n° 10.741/2003 deixa claro que os "alimentos serão prestados ao idoso na forma da lei civil" (art. 11), e que o idoso deve optar "entre os prestadores".
Em face das novas diretrizes, é útil trazer à liça o quanto dispõe o Código Civil a respeito da solidariedade:
Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto
Invocando CINO DE PISTOIA, o saudoso WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO [10] recorre a forte e expressiva imagem dos devedores solidários semelhantes a "bois atrelados ao mesmo carro".
Se assim o é, o idoso pode acionar quaisquer dos parentes coobrigados na totalidade da dívida comum. Como promover isso na prática ?
Imagine-se um octogenário com quatro filhos e que careça de R$ 1.000,00 (hum mil reais) para seu sustento. Todos os seus filhos gozam de excelente condição financeira e estão aptos, mesmo cada um individualmente, a suportar o ônus do aludido desembolso. Neste caso, pode o ancião demandar tão-somente o filho mais velho, ou mais de um filho, ao seu alvedrio.
Suponha-se, na mesma hipótese, que a condição econômica dos filhos não seja tão próspera. Neste caso, de nada adiantará a solidariedade, pois a obrigação alimentar sustenta-se no binômio necessidade/possibilidade e, se um dos co-devedores não pode sozinho encarregar-se do pagamento, o credor há de acionar os demais, se pretender a integralidade da prestação almejada.
O caso se torna mais intrigante quando se avança para outros graus de parentesco.
Voltando ao exemplo, se os quatro filhos do credor apenas podem juntos adimplir com R$ 800,00 (oitocentos reais) e ele possui ainda dois netos em condição de complementar o valor, mais uma vez se aplica a solidariedade ? Evidente que sim, em face dos dizeres peremptórios do Estatuto do Idoso. Ele pode acionar tanto um neto quanto outro, ou até mesmo diretamente um dos netos para obter deste a integralidade da prestação.
Reconheça-se, de fato, que, como posta, a solidariedade rompe com o princípio de que o parente em grau mais próximo exclui o parente em grau mais remoto.
Ultrapassada esta etapa e uma vez satisfeita a obrigação alimentar, surge a tormentosa questão do exercício do direito de regresso por parte do devedor que adimpliu a obrigação, problema este que se agrava pela natureza periódica das prestações a serem adimplidas.
Com efeito, prevalecente a tese de que na solidariedade não se encerra uma única obrigação, mas sim tantas obrigações quanto os titulares respectivos, deve-se ressaltar que ela somente existe entre os coobrigados e o credor. Ou seja, na medida em que um dos co-devedores passa a adimplir a prestação e exerce o direito de regresso em desfavor dos outros devedores, deixa de subsistir a solidariedade e o que se tem é uma responsabilidade pro rata, as quais são presumivelmente iguais, na forma do Código Civil:
Art. 283. O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos co-devedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-devedores.
Como a prestação alimentar, insista-se, caracteriza-se pela periodicidade, é interessante retomar o exemplo do octogenário com seus quatro filhos, um dos quais vem adimplindo integralmente as prestações determinadas pelo juízo.
Diante da solidariedade imposta por lei, faculta-se ao acionado que vem satisfazendo a dívida, diferentemente da hipótese prevista no art. 1.698 do CC, promover o chamamento ao processo dos demais devedores solidários, nos termos do art. 77, III, do CPC. Neste caso, aceitando-se o opinativo de MARCELO ABELHA RODRIGUES [11], não se tem mera ampliação subjetiva do pólo passivo pelo réu, mas sim dois processos, "uma base procedimental, duas ações e duas pretensões". [12]
Já se pode imaginar quão dificultosas vão ser as situações a serem resolvidas nestes casos, pois o legislador, no intuito de proteger o idoso, transferiu para o devedor diretamente acionado o grave problema de buscar a fixação das quotas a serem adimplidas pelos restantes. Ou seja, no exemplo invocado, caber-lhe-á prover integralmente o sustento do pai e, em ação regressiva, buscar as quotas-partes dos seus irmãos, ou seja, os R$ 250,00 (duzentos e cinqüenta reais) de cada um, já que presumivelmente iguais.
Ocorre que esta presunção é relativa e é bem possível que um dos co-devedores, acionado regressivamente pelo sub-rogado, demonstre sua insolvência ou a impossibilidade de adimplir integralmente sua quota, o que trará ao pagador infindáveis transtornos.
Ademais, nos exatos termos do art. 81 do CPC, para que seja possível o exercício do direito regressivo, faz-se mister, no incidente de chamamento ao processo, que a sentença que julgue procedente a ação de alimentos (ação principal) condene também os coobrigados na relação destes com o devedor acionado. Ora, em virtude da notória lentidão no andamento dos feitos, já se pode prever a dramática posição do chamante (aquele que satisfaz a dívida), que terá de esperar a prolação do "decisum" para voltar-se contra os demais co-devedores, na busca do reembolso das quotas respectivas quando, com toda certeza, durante anos já estará desembolsando alimentos provisórios ou provisionais.
Mesmo que o demandado não opte pelo chamamento ao processo dos demais co-devedores para exercer o direito de regresso, haverá de lançar mão de ação autônoma, sem as vantagens advindas da adoção do incidente referido. [13]
As hipóteses acima descritas, de previsível ocorrência no mundo da vida, revelam que a adoção da solidariedade nos termos previstos pelo estatuto do idoso pode gerar mais problemas do que soluções e, possivelmente, alimentar ódios e ressentimentos entre parentes muito próximos, malgrado as boas intenções do legislador.
Em conclusão: assentar a solidariedade da obrigação alimentar em favor do idoso pode dar ensejo a cizânias domésticas, quando um filho, v.g., por ter melhor condição financeira, suporta todo o encargo das prestações devidas; ou, numa outra hipótese, oferece uma falsa garantia de abrigo, considerando que os eventuais obrigados somente respondem nos limites de suas posses e desde que não haja desfalque ao próprio sustento.
Realmente, os clássicos já alertavam para a inocuidade de se atribuir natureza solidária à obrigação alimentar, o que se comprova à luz das imorredouras lições de CUNHA GONÇALVES:
Demais, para que pudesse haver solidariedade ou indivisibilidade, seria preciso que todos os parentes demandados fossem responsáveis simultaneamente e pela mesma soma. Mas, nada disso sucede com os alimentos, visto que cada um dos parentes é obrigado conforme as suas posses, tem de ser demandado em acção separada e, portanto, por uma distinta verba. É certo que, se um só dos parentes do mesmo grau tiver meios suficientes, sendo os restantes pobres ou remediados, só esse terá de pagar a totalidade dos alimentos, o que produz a ilusão da solidariedade ou indivisibilidade afirmada por alguns escritores; mas tal ilusão desfaz-se logo que se pense que, nesta hipótese, os parentes pobres são havidos como inexistentes, ou considera-se que só esse parente rico é obrigado a prestar alimentos.
Por tais considerações, é inegável que a possibilidade do idoso estabelecer o litisconsórcio passivo facultativo ulterior simples, prevista no art. 1.698 do CC/2002, por si só já é uma garantia de satisfação do crédito alimentar, dispensando, por inútil, a solidariedade. [15]
A despeito das críticas lançadas, o aludido dispositivo se afina inteiramente com a natureza da obrigação alimentar, considerando que esta não se resume em uma mera relação débito/crédito, mas envolve uma teia complexa de relações afetivas, humanas e sociais, que exigem do legislador o uso de um aparato teórico e conceitual mais amplo no disciplinamento do seu conteúdo, como recomenda juristas de aguçada visão interdisciplinar, a exemplo de CRISTIANO CHAVES DE FARIAS:
Ora, sem dúvida, a família traz consigo uma dimensão biológica, espiritual e social, afigurando-se mister, por conseguinte, sua compreensão a partir de uma feição ampla, considerando suas idiossincrasias e peculiaridades, o que exige a participação de diferentes ramos de conhecimento, tais como a sociologia, a antropologia, a filosofia, a teologia, a biologia (e, por igual, a biotecnologia e a bioética) e, ainda, da ciência do Direito. Tentar compreendê-la de forma sectária, isolando a compreensão em algumas das ciências, é enxergá-la de forma míope, deturpada de sua verdadeira feição.
Por fim, se em última instância os parentes não possuírem condições econômicas de prover o sustento do idoso, recai no Poder Público, no âmbito da Assistência Social, este encargo.
Neste sentido a Lei n° 8.742 de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social - LOAS, dando aplicação ao art. 203, V, da Constituição Federal, assegura a assistência social à velhice e garante 1 (um salário mínimo) mensal ao idoso com 70 anos, que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. Este limite etário foi reduzido, conforme a Lei Federal nº 9.720 de 1998, para 67 anos e agora, com o Estatuto do Idoso (art.34), cai para 65 anos.
Registre-se que apesar da lei expressamente considerar idosa a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, é possível identificar que ela criou duas categorias de beneficiários: uma, a quem atribuiu todos os direitos do estatuto, quais sejam os maiores de 65 anos, aos quais outorgou também a gratuidade nos transportes coletivos (art. 39) e o referido benefício da LOAS; e uma outra categoria, entre os 60 e os 65 anos, beneficiária dos direitos remanescentes.