1. Introdução
O setor de atividade econômica do transporte de cargas terrestres brasileiro, ao longo da história brasileira tornou-se a pedra fundamental da logística nacional, por conta desta realidade criou-se a ANTT, proibiu-se a Carta Frete e regulamentou-se o Cartão Frete, regulamentou-se o tempo de carga/descarga com a previsão de Indenização por Estadia, estabeleceu-se a obrigatoriedade do prévio custeio do custo de pedágios incidentes no frete por meio do Vale Pedágio, e, recentemente, criou-se a tão polêmica Tabela do Frete.
Neste estudo propomo-nos analisar a etiologia (origem) dos marcos da regulamentação do frete acima referida, a etologia (comportamento) daí decorrente, como por exemplo greves do setor dos caminhoneiros autônomos ocorridas em 2015 e 2018, e descrever as patologias decorrentes dos fatores regulamentares em seus aspectos pragmáticos relativos à baixa efetividade da fiscalização, para ao fim discutir algumas sugestões relativas à transformação da Tabela de Frete em uma Planilha de Frete, cuja obrigatoriedade recomenda-se seja somente em operações que envolvam o Transportador de Carga Autônomo - TAC (Caminhoneiro Autônomo), com a obrigatoriedade do registro do CIOT como ferramenta de combate à sonegação fiscal e previdenciária que prejudicam os direitos comerciais e previdenciários do mesmo.
2. Um breve resumo do processo regulatório do setor de transporte de cargas terrestres durante o século XXI e suas consequência para o Transportador Autônomo de Carga
2.1 - ANTT, princípios e diretrizes
A Lei nº 10233, de 05 de junho de 2001, entre outros órgãos regulatórios, criou a ANTT - Agência Nacional de Transporte Terrestres, cujos princípios (art. 11) e diretrizes gerais (art. 12) que expressam princípios que, entre outras coisas, priorizam a necessidade de “preservar o interesse nacional e promover o desenvolvimento econômico e social” (art. 11, I)e “assegurar, sempre que possível, que os usuários paguem pelos custos dos serviços prestados em regime de eficiência”(art. 11, IV), e, neste ponto, destaco, para o presente foco de estudo, a diretriz geral no sentido de “reprimir fatos e ações que configurem ou possam configurar competição imperfeita ou infrações da ordem econômica” (art. 12, VII), tendo em vista que a evolução legislativa que será abaixo descrita originou-se, essencialmente, de práticas setoriais que configuram uma “competição imperfeita” associada intimamente com “infrações da ordem econômica” que sempre prejudicaram, e continuam causando prejuízos, aos Caminhoneiros Autônomos.
2.2 - Regulamentação da Profissão do Caminhoneiro Autônomo
A Lei nº 11442, de 05 de janeiro de 2007 revogou a Lei no6.813, de 10 de julho de 1980, regulamentou o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração, estabeleceu a natureza comercial desta atividade econômica, a obrigatoriedade de prévia inscrição do interessado em sua exploração no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas - RNTR-C da Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT, e adotou a terminologia de Transportador Autônomo de Cargas (TAC) para identificar o Caminhoneiro Autônomo.
Ora, a inovação legislativa relativa à Lei nº 11442/2007 criou um duplo ônus ao Caminhoneiro Autônomo, isto é, transformou sua atividade laboral autônoma numa atividade empresarial autônoma, a ser socorrida pelas vara judiciais de direito civil e comercial, e exigiu-lhe fazer frente aos custos da regularidade junto à ANTT, sem que com isso lhe fosse garantida qualquer salvaguarda contra o abuso de poder econômico presente no setor de logística, principalmente, em relação à exploração do trabalho por meio da utilização de “Carta Frete”, que:
[...] é utilizada para gerar um mercado informal, por se tratar de uma ordem de pagamento sem qualquer formalidade prevista em lei, que representa o valor do frete a ser pago, que de forma irregular se torna o comprovante da prestação do serviço entre as partes.
A carta-frete é emitida pelo contratante do serviço de transporte do frete e o entrega ao acontratado caminhoneiro autônomo, este por sua vez somente poderá converter a ordem de pagamento em moeda em Postos de Combustível "conveniados" com o contratante.
Todavia, a conversão da ordem em pagamento em moeda sempre se revela danosa e irregular, pois o caminhoneiro autônomo é obrigado a receber parte do valor em combustível, em regra com preço majorado, e o saldo do valor do frete com deságio e, eventualmente, em cheques do posto de combustível ou de seus clientes, não em espécie.
A carta-frete é um título fiduciário apócrifo. Muitas vezes ocorre o fato de que o caminhoneiro autônomo não consegue descontá-lo nos postos de combustíveis credenciados, em razão de o emissor da carta-frete estar na condição de devedor no "mercado de cartas-frete", e, assim, sua "ordem de pagamento" não seria mais aceita para troca, o que transforma a carta-frete em uma moeda podre na mão do caminhoneiro autônomo. (COÊLHO, Werner Nabiça. A prática ilícita da carta-frete: informalidade, sonegação fiscal e abuso do poder econômico no setor de transporte de cargas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5458, 11 jun. 2018. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/66826>. Acesso em: 28 maio 2019.)
2.3 - Carta Frete, Conta Frete e Cartão Frete
Em 06/02/2009 a União Nacional dos Caminhoneiros - UNICAM, protocolou na ANTT o "Manifesto Sindical pelo Fim da Carta-Frete", e, assim, após intenso debate sobre tais reivindicações a ANTT, no exercício de suas atribuições, na forma do art. 20, II, b, da Lei nº 10.233/2001 c/c o art. 5º-A da Lei nº 11.442/2007, regulamentou o pagamento do frete mediante a Resolução ANTT nº 3.658/2011, para que o pagamento do mencionado serviço seja, obrigatoriamente, em moeda, a ser depositado em conta bancária, ou mediante cartão de débito regulamentado pela ANTT, ou seja, passou-se ao regime da "Conta Frete".
Todavia, o mecanismo de pagamento à vista por meio da “Conta Frete” foi desvirtuado, uma vez que por meio da regulamentação deste instrumento de pagamento criou-se empresas administradoras de cartão de débito que entraram em conluio com as grandes transportadoras, e, com isso, ignoram a regra legal de pagamento à vista, e prosseguem até hoje com a prática de “Carta Frete”, mediante a adoção do “Cartão Frete” que perpetua todos os problemas anteriores à regulamentação da forma de pagamento.
Assim sendo, por mais que tenha sido regulamento o meio de pagamento à vista por meio de “Conta Frete”, tal regra tem sido deturpada para dar prosseguimento à prática de “Carta Frete”, em sua forma evoluída para o “Cartão Frete”, cuja movimentação depende de comandos oriundos do contratante em conjunto com a empresa administradora, sem possibilitar ao Caminhoneiro Autônomo o direito de dispor livremente de seus recursos financeiros relativos ao valor do frete.
2.4 - CIOT e o necessário combate à sonegação fiscal e previdenciária
A Resolução nº 3658, de 19 de abril de 2011 regulamenta o art. 5º-A da Lei Federal nº 11.442/2007, que tornou obrigatório "pagamento do frete do transporte rodoviário de cargas ao Transportador Autônomo de Cargas - TAC deverá ser efetuado por meio de crédito em conta mantida em instituição integrante do sistema financeiro nacional, inclusive poupança, ou por outro meio de pagamento regulamentado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT".
O CIOT é o cadastro gerenciado pela ANTT que garante a regularidade da operação de transporte, e, entre outras coisas, pretende garantir o recolhimentos dos tributos e contribuições federais incidentes sobre o trabalho do Caminhoneiro Autônomo art. 6º, IX (“o valor dos impostos, taxas e contribuições previdenciárias incidentes”).
Portanto, do ponto de vista legal e regulamentar, todos os problemas do Caminhoneiro Autônomo estariam solucionados, seja quanto à forma de pagamento de seu frete, seja em relação ao recolhimento de seus encargos perante ao INSS e à Receita Federal (IRPF), todavia, a realidade se apresenta de forma muito deficitária e alarmante uma vez que a fiscalização da ANTT não consegue ser efetiva ao ponto de garantir que a “Conta Frete” seja eficaz, e que o “CIOT” torne-se uma ferramenta para o combate à sonegação fiscal e previdenciária que aflige a categoria dos Caminhoneiros Autônomos.
O setor de transportes de cargas terrestres tem navegado nos mares selvagens da informalidade ao longo dos anos, na qual embarcadores, transportadores e destinatários têm ignorado toda a regulação existente e perpetuado as práticas espúrias que foram reiteradamente proibidas pela força da lei, ocorre que a lei não tem braços e pernas no campo da fiscalização de seu cumprimento.
2.5 - As greves de 2015/2018
Este estado de coisas ilegais acima descritos, associados ao descalabro econômico provocado pelas desastrosas administrações dos Governos PT/MDB que destruiram a saúde econômica do país, seja por meio do saqueamento da Petrobras, fato que desestabilizou o mercado de combustíveis, seja por meio da ruinosa prática de venda subsidiada de caminhões promovidas pelo BNDS, que inflou artificialmente a quantidade de veículos de carga no mercado distorcendo a concorrência no setor, fatos estes que associados à consequente depressão/recessão que vivenciamos, ao longo dos anos, provocou o achatamento do preço do frete ao mesmo tempo que os custos do frete se elevavam.
As greves de 2015 e 2018 foram patologias que nasceram do comportamento espúrio generalizado de não ser dado cumprimento à legislação do setor, bem como foram marcos divisórios para demonstrar que os Caminhoneiros Autônomos, na sua condição de Transportadores Comerciais são uma força política e econômica relevante para o “interesse nacional” (art. 11, I, da Lei nº 10.233/2001), e cujos integrantes são vítimas de práticas e “ações que configurem ou possam configurar competição imperfeita ou infrações da ordem econômica” (art. 11, VII, da Lei nº 10.233/2001).
O governo federal em 2018 generalizou para as empresas transportadoras, de forma indevida, conquistas importantes que foram o fruto da mobilização dos autônomos, tanto no que diz respeito à redução do valor do combustível, quanto, principalmente, no que diz respeito à criação da Tabela do Frete.
2.6 - A Tabela do Frete como ferramenta regulatória do Caminhoneiro Autònomo
A Tabela do Frete, tal como se configurou no acalorado clima da greve dos caminhoneiros de 2018, resultou em uma ferramenta imperfeita, uma vez que promoveu uma nova regulamentação centralizadora de poder nas mãos da ANTT, e, também, tornou-se uma nova ferramenta de opressão contra a categoria dos autònomos, na medida em que empresas de transporte beneficiaram-se do tabelamento obrigatório no setor de frete, e perduraram com as práticas ilícitas de sonegar o pagamento à vista do frete ao Caminhoneiro Autônomo, por meio do uso espúrio da velha “Carta Frete” ou de sua evolução na forma de “Cartão Frete”, e prosseguem sonegando o recolhimento de tributos e contribuições federais, uma vez que o CIOT e os recolhimentos legais não são cumpridos, prevalecendo a informalidade total em relação ao trabalho autònomo, corriqueiramente escondido por dentro da documentação de Conhecimento de Transporte e Notas Fiscais emitidos somente em nome das empresas transportadoras.
Ora, uma vez que visualizamos o problema, percebemos que sua origem qualifica-se em dois níveis, o primeiro é inexistência de uma séria repressão às práticas criminais que predominam no setor de transporte de cargas terrestres, apesar de termos uma excelente legislação em vigor, suficiente teoricamente, mas cuja fiscalização padece de total inanição em amplas regiões do país, como se dá na Região Norte do Brasil, e, em particular no Estado do Pará, que nem sequer possui um único fiscal da ANTT, apesar que possuir uma das mais densas e intensas logísticas de transporte terrestre do Brasil, inclusive, com relevante papel no transporte destinado aos portos de exportação internacional, um grande e imenso buraco negro na qual somem bilhões de reais em razão da sonegação de encargos fiscais e previdenciários incidentes sobre o trabalho do Caminhoneiro Autônomo.
O segundo nível está em que há visão distorcida do setor por parte dos agentes público e da sociedade em geral, o Caminhoneiro Autônomo é um empreendedor, um empresário, um comerciante autônomo, cujo produto é seu serviço de frete, mas por outro lado, é como um marinheiro em águas turbulentas remando uma canoa durante uma borrasca enquanto se desvia de grandes iates e navios pertencentes às grandes transportadoras, e, corriqueiramente, tais transportadoras são meros intermediários e exploradoras do trabalho do autônomo, ao mesmo tempo em que lhe sonegam o justo preço do frete e seus recolhimentos legais que comprovariam sua condição econômica de classe média e lhe garantiriam o crédito bancário e os direitos previdenciários à qual fazem jus como fruto de seu esforço.
3. Considerações finais
Como curar tais mazelas? Pensemos primeiro em algumas premissas:
- O Caminhoneiro Autônomo é um titular de atividade comercial que merece receber o justo preço do frete que custeie sua atividade e lhe confira o lucro necessário para investir em seu negócio;
- O Caminhoneiros Autônomo é uma profissão regulamentada (TAC-Transportador Autônomo de Carga) cujo exercício está vinculado ao devido registro profissional (RNTC) e ao cadastro de cada operação contratada (CIOT) no órgão de regulação (ANTT);
- O Caminhoneiro Autônomo é hipossuficiente nas relações negociais no mercado de frete, pelo que merece a aplicação do princípio legal que preconiza “reprimir fatos e ações que configurem ou possam configurar competição imperfeita ou infrações da ordem econômica” (art. 12, VII, da Lei nº 10.233/2001).
Com base em tais premissas, alguns mecanismos possíveis de aplicação imediata e mediata para atender às demandas dos Caminhoneiros Autônomos poderiam ser adotados pelas autoridades competentes no seguinte sentido:
- Intensificação da fiscalização por meio de um efetivo reforço às atividades da ANTT com a celebração de convênios institucionais com a Polícia Rodoviária Federal para a fiscalização das vias de rodagem federais, bem como com a Polícia Federal para apuração dos intensos e incríveis crimes de sonegação fiscal e de fraude interestadual praticados no setor;
- Extinção do termo “Tabela do Frete”, para adoção do termo “Planilha de Frete”, e, que, simultaneamente, seja estabelecido que a obrigatoriedade de sua observância seja restrita às operações que envolvam a utilização da mão de obra do Caminhoneiros Autônomo e a inclusão do CIOT na documentação pertinente ao conhecimento de transporte, ficando expresso que aos demais transportadores empresariais prevalecerá a livre concorrência;
- Que o CIOT seja integrado à Receita Federal e ao INSS, para alimentação da base de dados do IRPF e da contribuição previdenciária do Caminhoneiro Autônomo;
- Que seja destacado de forma expressa na regulamentação da “Tabela do Frete/Planilha do Frete” que as margens de lucro incidente sobre o custo calculado sejam passíveis de ser objeto de negociação coletiva entre os sindicatos envolvidos nas operações de frete terrestre, com o devido registro junto à ANTT para efetivo controle regulatório de seu cumprimento mediante o CIOT e demais ferramentas disponíveis.