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Primeiras linhas do garantismo penal tridimensional.

Impunidade brasileira e o Direito Penal do Amigo

Agenda 29/05/2019 às 16:48

O presente artigo procura elaborar uma diagnose do fenômeno da impunidade brasileira e analisa alguns recortes do garantismo unidimensional encontradiços no direito pátrio, tais como, a inefetividade do regime semiaberto como farol de impunidade.

                                                                    

                                                Resumo

O presente artigo procura elaborar uma diagnose do fenômeno da impunidade brasileira e analisa alguns recortes do garantismo unidimensional encontradiços no direito pátrio, tais como, a inefetividade do regime semiaberto como farol de impunidade; a falta de proporcionalidade no trato dos direitos constitucionais à vida e à segurança pública; a banalização do remédio processual habeas corpus, exclusivo da defesa, ferindo de morte a paridade de armas; a tentativa de esvaziar os poderes-deveres do Ministério Público pela PEC 37 e a não-admissão da execução provisória penal após a condenação em segunda instância, de modo que, a proposta é resguardar os interesses da sociedade e, sobretudo, da vítima, relegados a plano secundário no processo penal, numa visão sistêmica de todos valores albergados pela Constituição Federal, passando a enxergar o criminoso como responsável pelos seus atos e merecedor de punição, ao invés de vítima da sociedade, portanto, numa visão tridimensional do garantismo penal, consubstanciado no atendimento do trinômio acusado-vítima-sociedade.

Palavras-chave: Garantismo Penal Tridimensional; impunidade brasileira.

                                                  Abstract

The present article tries to elaborate a diagnosis of the phenomenon of Brazilian impunity and analyzes some unidimensional garantism cuts found in the right of the country, such as the ineffectiveness of the semi - open regime as a beacon of impunity; the lack of proportionality in the treatment of constitutional rights to life and public safety; the elimination of the procedural remedy habeas corpus, exclusive to the defense, wounding to death the parity of arms; the attempt to deprive the powers-of-duty of the Public Prosecutor's Office by PEC 37 and the non-admission of provisional criminal execution after conviction in second instance, so that the proposal is to safeguard the interests of society and, above all, the victim, relegated to a secondary level in the criminal process, in a systemic vision of all values ​​hosted by the Federal Constitution, starting to see the criminal as responsible for his actions and worthy of punishment, instead of a victim of society, therefore, in a three-dimensional view of criminal guaranty, consubstantiated in the care of the trinomio accused-victim-society.

Keywords: three-dimensional criminal guaranty; brazilian impunity.

1. Introdução

Vivenciamos uma quadra da história em que a violação do direito ocorrida num ponto da terra é sentida em todos os outros (BOBBIO, 2004). No século XVII, o poeta e clérigo britânico, John Donne (1839, p. 574), vaticinava que “nenhum homem é uma ilha em si mesmo. Todo homem é parte do continente... A morte de qualquer pessoa me diminui, porque faço parte da espécie humana [...]”.

É indesviavél que uma coisa é proclamar os direitos à vida e à segurança, outra bem diferente é desfrutá-los efetivamente, abeberando-se da ensinança de Norberto Bobbio (2004). No Brasil, malgrado os aludidos direitos estejam plasmados no artigo 5º da Constituição Republicana de 1988, ainda assim não é possível dizer que estejam sendo, de fato, usufruídos, num país com a insólita magnitude das ameaças que pesam sobre nós, em função do paroxismo da macrocriminalidade e cujos números anuais de homicídios – 62.517 pessoas em 2016, segundo o Atlas da Violência de 2018 - ultrapassam qualquer país do planeta em estado de guerra.

A despeito disso, não é exagerado sustentar que o Estado brasileiro fraqueja ao não entregar minimamente os direitos sociais, de ordem prestacionais (educação, saúde etc), aos seus concidadãos, equivalendo à crise do welfare state, de maneira que, exatamente por isso, é uma tarefa deveras tempestuosa falar de prevenção primária do delito no Brasil, tida como a genuína prevenção (CALHAU, 2013).

A par dessa amargurada e inescondível realidade, após o crime ocorrer no mundo fenomênico -, e aqui repousa o recôndito do artigo -, a impunidade revelada pela reduzida taxa de elucidação de 5 a 8% dos homicídios (ENASP, 2012) passou a ser resultado do sucateamento das forças policiais que enfrentam a (diária) guerra assimétrica[1] com o crime organizado, a doçura da legislação brasileira beccariana absorta de infindáveis benesses penais – algumas provenientes de outros veículos que não a lei e outras gestadas pela própria jurisprudência – capazes de reduzir, ao máximo, as penas já consideradas baixas, somadas às interpretações laxistas (DIP; JUNIOR, 2012)[2] e acomodatícias do Poder Judiciário, contaminado por uma ideologia hipergarantista, que foram responsáveis por nos conduzir ao direito penal do amigo, antítese do direito penal do inimigo, no qual como o próprio nomen juris indica, é consubstancial a um tratamento deveras leniente e condescendente ao delinquente - principalmente, quando abastado financeiramente -, em detrimento dos interesses da vítima e da sociedade.

A aglutinação desses fatores retroalimentam o crime num ciclo nada virtuoso, responsáveis por naturalizar a violência e o morticínio brasileiros, anestesiando-nos numa resignação bovina, outrossim, passam a impressão de que os operadores do direito estão fazendo um (re)trabalho ad infinitum, sem nenhum impacto prático, tal qual Sísifo, personagem da mitologia grega, punido pelos deuses, que deveria rolar uma pedra até o topo de um morro. Quando lá chegava, a pedra rolava montanha abaixo, devendo recomeçar, numa rotina que se repetiria por toda a eternidade.

Um dos recortes mais escancarados da adoção do hipergarantismo -  além da “criação” de direitos tendentes a absolvição de culpados, a partir do julgamento de casos concretos, em que o Judiciário se imiscuiu do papel do Legislativo, como verdadeiro legislador positivo - , é a degeneração e banalização jurisprudencial da garantia constitucional do habeas corpus, porquanto ao invés de ter o cabimento admitido apenas quando configurada a inequívoca (ou virtual) afronta a liberdade de locomoção, o predito remédio processual passou a ser capaz de desconstituir qualquer decisão no processo penal, como por exemplo, ter aptidão para dar um vigoroso salto da primeira para a última instância, restituir valores apreendidos, assegurar o direito de visita de filho a detento ou anular ordem de sequestro de bens, configurando-se hodiernamente num super remédio em prol da defesa, sem equivalente para acusação, o que fere de morte a paridade de armas.

Longe de ter a pretensão de haurir o tema ou solucionar os graves entraves encontradiços no cenário político, social e jurídico que tornam o Brasil o país com maior número absoluto de homicídios do planeta, mormente porque problemas intrincados e persistentes não apresentam soluções simples e milagrosas, entrementes o presente artigo tem por mote fazer uma diagnose do fenômeno impunidade no Brasil e para isso analisa alguns recortes da adoção indiscriminada do garantismo penal unidimensional e como isso conduz a um cenário crônico. Para tanto, é feita uma pesquisa bibliográfica, legislativa e de excertos de decisões judiciais e como elas podem ser faróis criminógenos, ao invés de contribuir para a pacificação social.

2. Desenvolvimento.

2.1. Garantismo penal tridimensional: primeiras linhas

Na década de setenta, a Itália passou a ser palco de confrontos entre, de um lado, a Polizia del Stato e os Carabinieri, e, de outro, dezenas de grupos terroristas, a maioria de viés marxista-leninista, que praticavam atentados, assassinatos e sequestros de policiais, políticos, juízes, promotores e advogados, destacando-se o sequestro do juiz Mário Sossi pelo grupo comunista Brigate Rosse em 1974, que motivou forte reação repressiva com a edição de legislação antiterrorista que flexibilizava os direitos e garantias individuais (PESSI; SOUZA, 2018), ocasião em que o movimento filosófico-jurídico conhecido como garantismo penal idealizado pelo magistrado italiano Luigi Ferrajoli - que fazia parte do grupo de juízes da denominada Magistratura Democrática -, detinha o propósito de limitar os arbítrios estatais e viabilizar um programa de Direito Penal mínimo com a finalidade de enxergar o acusado não como objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos.

Verdade seja, está é uma! Se a Itália vivia uma época de redução de garantias textuais, ocasião em que o garantismo penal teve o mérito de limitar a atuação estatal; no Brasil, ao revés, com a redemocratização e a Constituição Cidadã de 1988, atingimos um nível de garantias constitucionais e legais invejáveis a qualquer país de primeiro mundo. Portanto, é inegável reconhecer os momentos históricos e constitucionais diversos das duas nações.

Nessa ordem de ideias, indaga-se se o Brasil precisa de um incremento das garantias para o acusado, visando aplacar a fúria do Estado-Leviatã ou estamos sendo aos poucos tragados para o epicentro da macrocriminalidade que viceja em nosso país, impulsionada pelo combustível da impunidade? A nós parece que a resposta é intuitiva. Manter as coisas como estão, com o império da bandidolatria e a glamourização do criminoso (PESSI; SOUZA, 2018), é admitir que à custa do derramamento de sangue alheio, esse morticínio se perpetue, até chegarmos ao estado de natureza hobbesiano, verdadeira anomia.

Para Ferrajoli, um sistema só é considerado garantista se observar os 10 (dez) axiomas[3], que compõem o sistema de garantias, visando entregar limites e controles, pois na sua ausência, os poderes tendem a concentrar-se e acumular-se em formas absolutas, transmudando-se em poderes selvagens (FERRAJOLI, 2014). Pois bem, basta um fugaz passar de olhos no rodapé do presente artigo para se chegar à ilação de que o Brasil adota integralmente o sistema de garantias de Luigi Ferrajoli. Agora, o grande problema é que exageramos na hiperproteção do celerado e apenas dele, como se fosse uma ilha, tanto na jurisprudência como na edição de leis benignas, criando uma verdadeira redoma intransponível para a prática de crimes, capaz de infirmar qualquer persecução penal, até mesmo quando devidamente provada a culpabilidade de um delinquente, na procura de uma saída de viés absolutório.

Uma das principais contribuições do garantismo penal é a valorização do papel do magistrado que passou a analisar o Direito Penal a partir de uma interpretação e leitura dos valores da Constituição Federal e assim arrostar a legislação incompatível com o texto constitucional, ao invés de labutar em automatismo legal, como juiz boca-de-lei, de concepção montesquiana. Não obstante esse não tenha sido o único contributo do garantismo penal, como veremos, a importação da doutrina para o Brasil é que foi canhestra e reducionista, talvez pela não compreensão integral de seus mandamentos (daí porque passou a ser cognominado de garantismo à brasileira), já que se resumiu a dar exagerado e desproporcional enfoque a proteção isolada do celerado, no que toca aos direitos individuais dos acusados no processo criminal, sendo inexorável sinônimo de impunidade, olvidando-se dos direitos (e, sobretudo dos deveres) sociais e coletivos, numa perspectiva hiperbólica monocular (FISCHER; CALABRICH; PELELLA, 2018).

Pouco divulgado é o fato de que Ferrajoli tenha reconhecido que um programa de Direito Penal mínimo tem também de voltar seus holofotes para a tutela de bens fundamentais, o que implica, necessariamente, em uma “maior penalização de condutas, hoje não adequadamente proibidas nem castigadas”. Logo, até mesmo o grande timoneiro do garantismo penal sublinha que há campos socialmente relevantes nos quais o legislador penal foi omisso ou excessivamente brando, o que se faz bem marcante nos interesses titulados pela coletividade (MAGALHÃES, 2010).

Américo Bedê Júnior e Gustavo Senna advertem:

O exagero garantista, no sentido de que a ‘defesa tudo pode’, é tão gritante que chega ao ponto de ensejar decisões inacreditáveis, que acabam fomentando comportamentos maliciosos, criminosos e desonestos dos réus no processo penal, desde que não venham a atingir os interesses de particulares, em uma visão individualista e – data vênia – ultrapassada de um processo penal verdadeiramente democrático e garantista [...] a preconceituosa oposição à modernização dos ideais garantistas acaba por gerar uma espécie de "síndrome de Alice", como se, assim como a citada personagem, estivéssemos no país das maravilhas, onde não existem indivíduos movidos por cabal descaso para com os valores sociais, nem organizações empresariais criminosas com poder suficiente para comprometer a estrutura do Estado e o bem-estar da coletividade (JUNIOR; SENNA, 2015, p. 32).

A nosso juízo, à semelhança da gênese do Direito forjado por três elementos isomórficos e interdependentes entre si (fato, valor e norma), que se implicam e se exigem reciprocamente (REALE, 2002, p. 42), o nascedouro do garantismo penal tridimensional também é a sua composição por três elementos acusado-vítima-sociedade[4], que se exigem reciprocamente, de maneira que, essas são as colunas mestras do Estado de Direito, ou seja, a teorização configura um apelo a uma moderna visão sistêmica do edifício penal, em função do princípio da proporcionalidade, consubstanciado numa pauta axiológica que emana diretamente ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida e valores afins, umbilicalmente conectado com à própria ideia de Estado de Direito pela sua íntima ligação com os direitos fundamentais, que lhe dão suporte (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008). De um lado, veda-se o excesso; e, lado outro, obsta-se a proteção deficiente ou infraproteção, nesse último caso, proibindo o Estado de promover uma defesa meramente formal e aquém dos direitos proclamados por ele mesmo.

Ora, nem tanto ao céu, nem tanto ao mar. Enquanto a proibição de excesso é uma proteção vertical, isto é, de “cima para baixo”, um escudo do indivíduo contra os desmandos do Estado (Leviatã) durante a persecução penal, diversamente a proibição da proteção deficiente é uma proteção horizontal, pela qual se afigura uma garantia dos cidadãos de não serem vitimados por terceiros (BOMFIN, 2008), portanto, nesse caso, o Estado deve atuar positivamente na posição de garantidor de direitos, devido à eficácia horizontal dos direitos fundamentais (LENZA, 2014).

Pode-se, desse modo, argumentar por influxo do princípio da proporcionalidade, que se o Estado não pode ser voraz ou leonino na persecução penal ainda que diante do pior delinquente, devendo respeitar os direitos e garantias fundamentais; com maior razão, também não poderá deixar a coletividade e a vítima inermes em razão de práticas delitivas, possibilitando um tratamento laxista de criminosos e o completo esvaziamento dos sagrados direitos à vida e à segurança, numa visão miopizada e isolada de hipergarantismo.

E mais, não se pode perder de vista que a inspiração do garantismo penal de Luigi Ferrajoli é a ideia liberal e iluminista, como o próprio Norberto Bobbio reconheceu ao prefaciar a obra Direito e Razão (2002), voltado à isolada proteção do celerado contra os abusos estatais, entretanto, hodiernamente, a própria passagem do Estado Liberal para o Estado Social de Direito demonstra, de forma hialina, que o garantismo de uma única dimensão deve ser compreendido como peça de museu, na medida em que, no processo de evolução estatal abandonou-se a faceta negativa, apanágio do liberalismo, de não se envolver na vida em sociedade, objetivando apenas a não interferir na liberdade dos concidadãos; para, na sequência evolutiva, o Estado assumir o relevante papel positivo, de defesa da vítima e de promoção do bem-estar coletivo (welfare state), por influxo do reconhecimento e proclamação dos direitos fundamentais de segunda dimensão (sociais).

Evidentemente, os direitos sociais são mais difíceis de proteger do que os direitos de liberdade (primeira dimensão), pois dependem da instável definição de políticas públicas, daí surgindo o dilema na alocação dos (finitos) recursos públicos, no contexto das denominadas escolhas trágicas (LENZA, 2014). Prova disso que há uma miríade de exemplos de contraste entre as declarações solenes e sua consecução, entre a grandiosidade das promessas e a miséria das realizações (BOBBIO, 2004). Trata-se de uma tarefa complexa, para não dizer penosa, a aplicação das normas constitucionais definidoras dos direitos sociais, pois, de um lado, os operadores são obrigados a emprestar-lhes a máxima efetividade; e, de outro, observar outros cânones de igual hierarquia, como os princípios da unidade da Constituição e da proporcionalidade, de modo que, sucessivamente, não podem interpretar a Constituição em ‘fatias’ (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 713).

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Sucede que, no campo dos direitos sociais, quando verificada a inércia estatal injustificável, o Judiciário estabelece a intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’, sendo inoponível a cláusula da reserva do possível (LENZA, 2014). Desse modo, é indiscutível que o direito social à segurança pública se enquadra no espectro de proteção do “mínimo existencial”, pois retoricamente pode-se asseverar que não há como reconhecer que o direito à vida – pré-requisito de fruição dos demais bens jurídicos - possa continuar com a chama acesa na ausência do direito à segurança, logo, por imperativo lógico, o direito à segurança é um verdadeiro desdobramento do direito à vida! E deveria, por essa razão, ser objeto de especial proteção estatal, o que não se verifica na prática, como sói acontecer.

Nessa esteira, Canotilho (2002) professora que é inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios. É o efeito cliquet dos direitos humanos, à semelhança do movimento no alpinismo que impede o alpinista de descer, de modo que, em tema de direitos humanos, só é válido caminhar para frente e não retroceder, na proteção dos indivíduos. Também conhecido como princípio da vedação do retrocesso. (LENZA, 2014).

Sem solipsismo, mas em certo tom soturno, indefectível pelo dissabor da realidade, pode-se dizer que a cada gota de sangue derramada das vítimas brasileiras nesse morticínio, o Brasil avança um passo para trás, involuindo, quando deveria estar com os olhos voltados para o horizonte da proteção dos direitos humanos e, em especial, da vida humana (digna), fitando esse execrável e abominável passado no retrovisor. Quantos mais precisarão tombar e jazer inermes, pra que se possa navegar pra frente, com o norte da bússola rumo à eficácia e efetividade dos direitos humanos da vítima e da sociedade?

Numa leitura constitucional dos direitos à vida e à segurança e cônscia de que aludidos direitos gozam de fragorosa força normativa, é fácil concluir que o magistrado não pode mais se voltar apenas ao julgamento do acusado como se aquele processo fosse uma ilha estanque, alheia aos interesses da vítima e da sociedade.

Apenas por amor ao debate, se a Constituição Federal erigiu os direitos à vida e à segurança (pública) na cabeça do artigo 5º da CF/88, tal postulado deve ser dirigente, sob pena de, assim não o fazendo, convolar em tabula rasa a garantia assegurada constitucionalmente, ou, noutros termos, uma promessa constitucional inconsequente. Até porque, na lei não existem palavras inúteis. Se na norma suprema vem expresso que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (art. 144), é porque aquele preceito deve encontrar correlata ressonância no mundo fenomênico (CF, 1988).

Pois bem, a preocupação de reposicionar a vítima no centro do processo penal foi adquirida apenas recentemente com algumas ações afirmativas, através de um processo de especificação do sujeito de direito, como por exemplo, a edição da Lei n. 11.340/06 – após o Estado brasileiro ser condenado pela OEA no caso “Maria da Penha” (LIMA, 2017, p. 882), que ficou paraplégica depois de sofrer sucessivos delitos por parte do companheiro, por meio do Relatório n. 54/2001 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de que “a ineficácia judicial, a impunidade e a impossibilidade de a vítima obter uma reparação mostra a falta de cumprimento do compromisso assumido pelo Brasil [...]” – e, mais recentemente, pela inserção da qualificadora do feminicídio no delito de homicídio.

Rogério Greco argumenta que o Direito Penal está sofrendo uma paulatina privatização, com enfoque na vítima, onde a reparação do dano é enxergada como uma terceira função da pena, ao lado da prevenção e repressão. E que o exemplo seja a composição civil dos danos no Juizado Especial Criminal (parágrafo único do art. 74 da Lei n. 9.099/95), em que o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação (GRECO, 2008, p. 14). Forçoso é reconhecer, todavia, que a vítima ainda não goza de prestígio no processo penal, afigurando-se muita tímida na legislação penal e adjetiva essa tendência de privatização, de maneira que esse é um quadro desejável, mas que está bem longe de ser alcançado.

2.2. A inefetividade do regime semiaberto como farol de impunidade

Imagine-se a seguinte hipótese: o celerado é denunciado pela prática de um homicídio simples (art. 121 do Código Penal) ou no Tribunal do Júri obtém a desqualificação do homicídio qualificado para simples (cujo preceito secundário prevê abstratamente a pena de 6 a 20 anos), assim, se for primário e condenado a mínima (6 anos)[5] iniciará o cumprimento de pena no regime semiaberto e se cumprir um sexto da pena (um ano)[6], obterá o benefício da progressão do regime semiaberto para o aberto.

Rememore-se que a condenação de um acusado não reincidente, com pena superior a 4 (quatro) anos e que não exceda a 8 (oito) anos, deve ser iniciada no regime semiaberto (art. 33, parágrafo 2º, do Código Penal), a ser cumprida em colônia penal agrícola, industrial ou estabelecimento similar, por influxo do parágrafo 1º, alínea “b”, do art. 33 do CP. 

Convirá, ainda, dizer que na falta de colônia penal agrícola por deficiência do Estado, uma realidade de praticamente todos os municípios brasileiros, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no HC n. 96.169/SP, firmou entendimento de que não se pode manter o condenado preso em regime mais rigoroso do que o imposto na sentença condenatória, logo, o detento deve ser posto em regime aberto ou inexistente a casa de albergado, em prisão domiciliar, daí porque, o regime semiaberto é cognominado de “sempre aberto”, na medida em que, mesmo condenado, o celerado cumprirá a pena no conforto de sua residência, apenas com o incômodo de usar o acessório da tornozeleira eletrônica, burlável, isso quando o Estado as disponibiliza, pois se o Estado não detiver os aparelhos - a maioria nem mesmo se esforça para adquiri-las -, a soltura é feita de forma incondicionada.

É absolutamente irrealizável cumprir as finalidades da pena (repressão e prevenção previstas no artigo 59 do Estatuto Repressivo) se logo após a prática do crime, o criminoso, mesmo tendo sofrido uma condenação, cumprir a pena no conforto de sua residência. É uma absurdidade lógica pensar o contrário. Aliás, como sustentar a emenda se o celerado não teve tempo suficiente de cárcere e isolamento social para (re)pensar a sua vida de crimes e ouvir a sua própria consciência, na presença de si mesmo? Como exigir a ressocialização se não houve mudança factual pós-delito? E onde fica a função dissuasória/intimidatória da pena? E o que dizer daqueles potenciais celerados que estão avaliando os riscos e benefícios de praticar um crime, na fase de cogitação, ao enxergar esse desmesurado benefício consistente no cumprimento da pena domiciliar?

Eis, na verdade, um inegável fator criminógeno que configura, sem nenhum desforço intelectivo, um convite aberto à criminalidade, ou, noutros termos, é lançar no imaginário coletivo a premissa de que o crime compensa, isso porque quando o potencial celerado está decidindo entre se aventurar ou não na empreitada criminosa - durante a fase da cogitação do iter criminis -, momento em que mentalmente são sopesados os riscos e os benefícios da ação delitiva, as benesses tupiniquins o conduzem ao start criminoso, vez que alfim do raciocínio sentencia: “se for identificado, o que será difícil; mesmo condenado, cumprirei pena dentro de casa”, pois só a certeza da punição - e, acrescente-se, do correlato cumprimento da pena - para dar cabo à eloquência das paixões (BECCARIA, 2015).

Desse modo, a esperança da impunidade é que conduz os celerados à prática da infração penal, vez que “...um dos maiores freios contra os delitos não é a crueldade das penas, mas a infalibilidade dessas, e, por conseguinte, a vigilância dos magistrados, e a severidade de um juiz inexorável” (BECCARIA, 2015, p. 25).

Ora, o próprio vocábulo “penitenciária” tem origem nos antigos cômodos dos conventos, locus para o cumprimento das penitências e a consequente obtenção da remissão dos pecados (NOVAIS, 2018), numa concepção de prisão-remédio. A prisão, mesmo com todos os inconvenientes, “ainda é a detestável solução, de que não se pode abrir mão”, pois é o único aparelho para transformar os indivíduos, ao encarcerar, ao retreinar, ao tornar dócil (FOUCAULT, 1997, p. 224). E mais, “entre o crime e a volta ao direito e à virtude, a prisão constituirá um ‘espaço entre dois mundos’, um lugar para transformações individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que este perdera” (FOUCAULT, 1997, p. 121).

A par disso, elucidada a autoria da infração penal, o que, como repisamos, só ocorre em 5 a cada 100 homicídios registrados, nem mesmo a condenação é capaz de arrostar definitivamente a impunidade, seja pela excessiva quantidade de benefícios penais, seja por interpretações laxistas dadas pelo Poder Judiciário. De um lado, e, de outro, uma hipotética condenação a pena de seis anos pelo delito de homicídio consumado, permitindo a progressão de regime em um ano, a ser cumprida em regime domiciliar, na ausência de colônia penal agrícola, não terá o condão de promover os efeitos dissuasórios que se espera da pena.

A bem da verdade, o crime por excelência - o delito de homicídio - merece uma maior dificuldade em se obter tantos benefícios penais, uma das notórias tentativas quando da edição da Lei n. 8.072/90 ao estabelecer o regime integralmente fechado para os crimes hediondos e assemelhados, o que, como é cediço, o Supremo Tribunal Federal colocou uma pá de cal no aludido regime, por afronta ao princípio da individualização das penas.

É de clareza solar a ilação de que encontrar o castigo é encontrar a desvantagem que o torne definitivamente sem atração a ideia do delito, diminuindo o desejo que torna o crime atraente, aumentando o interesse que torna a pena temível, fazendo que a representação da pena e de suas desvantagens seja mais viva que a do crime com seus prazeres (FOUCAULT, 1997, p. 102).

Paralelamente, já se disse que a vida é o bem mais importante de todos, pré-requisito de fruição dos demais bens jurídicos, e o homicídio, por essa razão, é o delito por excelência. Imorredoura é a ensinança de Nelson Hungria, para quem:

O homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinquência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às eras primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada (HOFFBAUER, 1958, p. 25).

Não bastasse a progressão de regime nos delitos de sangue, ainda há um benefício legal capaz de reduzir a pena cominada, muitas vezes, já considerada baixa, previsto no artigo 126 da Lei de Execução Penal, consistente na possibilidade de ter abatido um dia de pena se o detento trabalhar/estudar por três dias – remição da pena pelo trabalho ou pelo estudo - , ou, ainda, mais recentemente, pela leitura de livros, independentemente da frequência a qualquer curso, através do leading case no HC 312.486-SP da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

A derradeira - remição da pena pela leitura de livros, através de resenhas de obras literárias – é bastante criticável e não encontra sequer previsão legal, estando inserta apenas na Recomendação n. 44/2013 do Conselho Nacional de Justiça, que não detém poder de legislar e, diga-se de passagem, apresenta gravíssimos problemas de fiscalização, mas nem por isso deixar de ser aplicada.

O mais inusitado é aceitar que cantar no coral, conquanto não seja expresso em lugar algum do ordenamento pátrio, valha como remição penal para a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (REsp n. 1666637), por meio de uma interpretação analógica in bonam partem do artigo 126 da Lei de Execução Penal, mesmo que o condenado não seja um Pavarotti ou o faça desafinadamente.

Não raras vezes, a existência de uma pletora de beneplácitos penais na legislação (e fora dela) faz com que as autoridades incumbidas da persecução penal se espantem com uma quantidade imensa de laudas de antecedentes de apenas um celerado, de maneira que, não é exagero concluir, no Brasil é imprescindível que um delinquente pratique uma longa sucessão de crimes graves, à custa de incontáveis vítimas e de grande derramamento de sangue, para efetivamente enfrentar um tempo longo de cárcere no regime fechado, daí porque já se disse que o sistema penitenciário brasileiro é uma imensa porta giratória de criminosos (CARPES, 2017)[7] ou de uma justiça criminal drive-thru (PESSI; SOUZA, 2018), situação diametralmente oposta ocorre nos EUA, em que vigora a regra three strikes laws, em que à semelhança do baseball, a prática de três crimes graves (bolas fora) resulta em prisão perpétua ou pena de morte (JUNIOR, J. B.; JUNIOR, J. L., 2017).

2.3. Execução imediata da pena após a condenação em segunda instância.

Uma das propostas do Projeto Anticrime encampado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, é o de permitir a execução imediata e provisória do acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que na pendência dos recursos extraordinário e especial (inclusive imediatamente após o veredicto no âmbito do Tribunal do Júri[8]), seja que cominem penas privativas de liberdade ou mesmo penas restritivas de direitos[9].

O plenário do STF em 17/2/2016, no julgamento do HC n. 126.292-SP, sob a relatoria do Ministro Teori Zavascki, reconheceu que o disposto no artigo 283 do CPP não impede, como regra, o início da execução da pena e não ofenderia o princípio do estado de inocência, na medida em que já houve demonstração segura da responsabilidade penal do réu e finalizou-se a apreciação de fatos e provas.

É intuitivo que após a condenação em segunda instância já fora observado o princípio do duplo grau de jurisdição[10], malgrado não encontre previsão expressa no texto constitucional, está implícito e deriva da garantia constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF/88), além de estar plasmado no Pacto de San José da Costa Rica, tratado de direitos humanos devidamente incorporado no ordenamento jurídico pátrio, ratificado em setembro de 1992. Ad argumentandum tantum, o princípio é de duplo grau e não de quarto grau, na medida em que prevê apenas a recorribilidade a uma instância superior ao invés de perpassar por todos os graus de jurisdição, sobretudo porque, somos o único país do mundo com quatro graus de jurisdição (DALLAGNOL, 2017), mais uma jabuticaba nacional.

Além do mais, o próprio sistema evita o risco de situações teratológicas, seja pela possibilidade irrisória do recurso ser provido na superior instância – percentual inferior a 1,5%, como bem salienta o Ministro Luís Roberto Barroso em obter dictum do voto no Agravo Regimental n. 964246 – SP, Plenário do STF, julgado em 10/11/2016, publicado DJe 25/11/2016 –, seja pela própria previsão da garantia constitucional do habeas corpus (CF, art. 5º, LXVIII), vocacionado a combater a mais remota ameaça à liberdade de locomoção em qualquer fase da persecução penal (FISCHER; CALABRICH; PELELLA, 2018), ou, ainda, pela possibilidade de concessão de efeito suspensivo nos recursos extraordinário e especial.

Ora, a decisão do Pretório Excelso tem por mote reduzir a seletividade penal, até porque, a quem interessa a condenação após quatro graus de jurisdição, ou seja, após a análise e reanálise do caso por quatro tribunais diversos? É óbvio e ululante que não atenderia aos interesses dos hipossuficientes, assistidos pela Defensoria Pública, instituição na maioria das vezes sobrecarregada de serviço, que não possui minimamente a estrutura para recorrer às instâncias superiores. Ao contrário, estão os opulentos quando acusados da prática de crimes de colarinho branco, capazes de contratar advogados habilidosos, que manifestam insurgência a cada pequeno passo judicial, geralmente com intuito procrastinatório. Portanto, o próprio sistema conduziu a incredulidade de que as pessoas mais abastadas não eram jamais condenadas, pois na quarta instância a persecução penal já teria sido fulminada pela perda da pretensão punitiva ou executória através do reconhecimento da prescrição, em razão do enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição, provocando a inequívoca desmoralização do Poder Judiciário.

2.4. A vulgarização do habeas corpus e o Direito Penal do amigo

A despeito do extenso e portentoso rol de recursos processuais já enumerados na legislação adjetiva penal, capazes de promover inegável procrastinação das lides penais, uma funesta consequência do garantismo unidimensional é a vulgarização e banalização do habeas corpus, de rito expedito e sem a possibilidade de dilação probatória, vocacionado a debelar ameaça ou violação à liberdade de ir e vir, passou a ser admitido contra qualquer decisão judicial no processo penal, mesmo sem virtualmente colocar em risco a liberdade de locomoção, inclusive para análise de questões aprofundadas de mérito de provas, transformando-o num verdadeiro agravo inominado (MATTOS, 2015).

Se o relator do Tribunal indeferir a liminar, discute-se a possibilidade de impetração de novo habeas corpus direcionado a Tribunal Superior. Prevalece que não é possível nova impetração, aliás, o que inclusive é objeto de enunciado sumular n. 691 do STF ao preconizar que: “não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar” (LIMA, 2012, p. 1800). O aludido enunciado sumular é relativizado pelos Tribunais Superiores em caso de flagrante teratologia, ilegalidade manifesta ou abuso de poder, admitindo-se, nesse caso, a impetração dirigida ao tribunal imediatamente superior com vistas a combater o indeferimento liminar do Relator (STJ, HC n. 109.167/SP).

Sucede que, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do habeas corpus de um dos acusados da Operação Satiagraha[11], permitiu que o writ, ao invés de ser julgado pela instância imediatamente superior, desse um vigoroso salto da primeira para a última instância – o Supremo Tribunal Federal -, com supressão de pelo menos duas instâncias, em razão da interpretação extensiva que foi conferida do parágrafo 2º do artigo 654 do Código de Processo Penal, que permite ao magistrado conceder o writ de ofício quando alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.

Como se não bastasse a novel capacidade sobranceira de saltar por instâncias que o transformou num super remédio[12], capaz inclusive de restituir valores apreendidos no processo criminal (STJ, HC 293.052/SP), assegurar o direito de visita de filho a detento, sob o argumento de que o direito de visita é um desdobramento do direito de liberdade (STF, HC 107.701/RS) ou, ainda, para anular ordem de sequestro de bens (STJ, REsp 865.163/CE), o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça ainda aceitam a utilização do writ para anulação de provas das operações policiais mais exitosas da última década, verdadeiros arranha-céus investigativos, descurando-se dos princípios da proporcionalidade, da instrumentalidade das formas e da regra de que apenas se reconhece a nulidade – mesmo, absoluta - se houver prova do prejuízo (pas de nullité sanz grief), inserto nos artigos 563 e 566 do Código de Processo Penal.

Basta uma rápida olhadela no histórico das operações, responsáveis por descortinar a existência de esquemas de desvio de erário público por organizações criminosas e que resultaram na recuperação de bilhões de dólares como proveito (ou produto) do crime, nos mais altos escalões do estamento brasileiro, para concluir que as Cortes Superiores promoveram o reconhecimento de filigranas e anularam os processos, resultando em injustificáveis absolvições, superando inclusive a jurisprudência pretérita dos próprios tribunais. Veja-se que a operação Castelo de Areia fora anulada pelo STJ por ter a Polícia Federal iniciado a investigação por meio de uma denúncia anônima, não seguida de investigações preliminares, vencido o eminente Ministro Og Fernandes que sustentara a legalidade das investigações, por ter a autoridade policial, após o aporte da denúncia apócrifa, feito investigações preliminares consistentes em levantamentos das sociedades empresárias envolvidas no esquema, bem ainda pela própria existência de uma colaboração premiada, já fruto das investigações. Pouco tempo depois, a Operação Chacal também foi anulada pela Segunda Turma do STF, no HC n. 106566/SP, sob o fundamento de que o mandado de busca e apreensão só autorizava buscas no 28º andar da sede do Grupo Opportunity, enquanto a Polícia Federal também fez buscas no terceiro andar do prédio (MATTOS, 2015, p. 105).

E, uma vez mais, o Superior Tribunal de Justiça fez ouvidos de mercador a regra – e as decisões pretéritas daquele Areópago - de que os vícios do inquérito policial não contaminam a ação penal ou pelo menos não deveriam. E mais, o que pensariam os autores da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, dentre eles Nelson Hungria, cujo sentimento era de que o aludido código fosse “infenso ao excessivo rigorismo formal, que dá ensejo, atualmente, à infindável série das nulidades processuais. O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades” (BRASIL, 1941).

Assim como ocorreu com a importação canhestra do garantismo penal, o Brasil trouxe dos EUA apenas a teoria dos frutos da árvore envenenada, segundo a qual a ilicitude de uma prova contamina todas as demais que dela decorram, que salvaguarda os direitos dos investigados e réus. Contudo, olvidou a teoria estatudinense aplicada na Suprema Corte que protege os direitos das vítimas e sociedade, consubstanciada na impossibilidade de excluir uma prova ou anular um processo sem avaliar quais serão as consequências sociais, inclusive o risco de ‘deixar os culpados livres e perigosos à solta’ (Hudson vs. Michigan, 2006) (DALLAGNOL, 2017).

Para Diego Castor de Mattos (2015), o Direito Penal do amigo é sectário e a balança da justiça representada pela deusa Themis pesa em favor dos ricos quando acusados, em sufrágio ao fraseado do poeta Fernando Sabino: “para os pobres é dura lex, sed lex: a lei é dura, mas é a lei. Para os ricos é dura lex, sed latex: a lei é dura, mas estica”, ao passo que, a nosso juízo, não é essa a única característica do Direito Penal do amigo, vez que consideramos que o garantismo penal parcial, a impunidade e o tratamento condescendente do legislador consideram qualquer criminoso como amigo do sistema, primacialmente os opulentos, daí resulta a sutileza do (nosso) acréscimo.  

2.5. PEC 37 – A PEC da impunidade e cui bono?

A partir do momento em que as instituições incumbidas da persecução penal passaram a processar quem antes jamais fora incomodado - os criminosos do colarinho branco (o white collar crime) – houve a criação de “novos” direitos fundamentais e a tentativa de esvaziar os poderes investigatórios do Ministério Público com a proposta de emenda constitucional – a PEC n. 37 -, reconhecida nacionalmente pela antonomásia atribuída pelas associações do Ministério Público como “PEC da impunidade”, com o objetivo de alterar o art. 144 da CF/88 para conferir à polícia a exclusividade da investigação, sob o pretexto de que a investigação direta pelo Parquet violaria o princípio acusatório, o que foi finalmente sepultado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n. 593.727.

Evocando Cícero, surge a indagação: Cui bono? Ou, em bom português, “para quem serve”? A quem interessaria o monopólio da investigação pela polícia judiciária? (NOVAIS, 2018, p. 199). Evidentemente, aos que pretendiam assistir a um Ministério Público fragilizado e inerme. Aliás, a tese de que o Ministério Público não pode investigar é rechaçada pelo próprio Luigi Ferrajoli, timoneiro do garantismo, para quem não há contradição entre os papéis de investigação e garantista, facetas do Parquet, primacialmente por ser uma instituição de garantia de bens, direitos e interesses fundamentais (FISHER; CALABRICH; PELELLA, 2018).

2.6. Outras (criticáveis) decisões laxistas

Há uma miríade de decisões laxistas nos escaninhos da jurisprudência pátria. Colhe-se decisão do STJ, no HC n. 56.824/SP, abaixo ementado:

FORAGIDO. FALSIDADE. IDENTIDADE. UTILIZAÇÃO. Ao prosseguir o julgamento, a Turma, por maioria, concedeu o writ, seguindo voto do min. Og Fernandes. Para S. Exa., a conduta do paciente, embora se amolde à prevista no art. 304 do Código Penal, pode ser considerada como autodefesa. No caso, o paciente, que era foragido da Justiça, fez uso de documento falso ao apresentar à autoridade policial uma carteira de habilitação falsa.

É de convir-se que a inusitada decisão, sem qualquer exagero, conduz o criminoso a praticar novas infrações penais e receber a absolvição como beneplácito, ou, em outras palavras, configura um “empurrão” do Estado para a manutenção do modus vivendi. É criminógena, na medida em que representa um inequívoco estímulo criminal, consistente num cheque em branco para que o criminoso reincida e inclusive se insira cada vez mais na senda criminosa.

É a lógica do quanto pior melhor! O histórico de crimes pretéritos propicia um tratamento mais benigno, vez que aí poderá se valer do argumento falaz da autodefesa, pois, se evidentemente a prática de um crime na sua vida for algo ocasional não poderá se valer de tal expediente, já que não estará foragido e, por imperativo lógico, não poderá se escudar da autodefesa. Dito de outro modo, a personalidade voltada a prática de fatos típicos e ilícitos é um fator de benevolência judicial, pois, ao contrário, quanto mais imaculado for o seu passado, menor a chance de ser absolvido.

Um exemplo esclarece como o aludido decisum encerra uma contradictio in terminis. Imagine-se hipoteticamente que um irmão, primário e sem antecedentes, se utilize da carteira nacional de habilitação do outro irmão gêmeo e seja flagrado pelas autoridades policiais, nesse caso, para o STJ, o irmão recalcitrante deve ser condenado, afinal, vetusto é o adágio: sed lex in dura lex. Doutro giro, se um criminoso – multirreincidente e com mandado de prisão a ser cumprido – para fugir da ação das autoridades policiais e se manter livre, apresente um documento de identificação falso e seja (dessa vez) detido, aí sim, para o mesmo Tribunal, esse merece o beneplácito penal da absolvição, pois estava em pleno gozo do “direito” da autodefesa.

Outra decisão de saltar os olhos foi proferida pela 6ª Turma do STJ, no REsp n. 1574681/RS, que manteve a absolvição de um homem acusado de tráfico de drogas por ter avistado policiais militares e corrido para o interior de sua residência, local em que foram arrecadadas 18 pedras de crack. O Ministro Relator, Rogério Schietti, sustentou que houve violação ao direito de:

...não ter a residência invadida, a qualquer hora do dia, por policiais, sem as cautelas devidas e sob a única justificativa, não amparada em elementos concretos de convicção, de que o local supostamente seria um ponto de tráfico de drogas ou que o suspeito do tráfico ali se homiziou.

O eg. Superior Tribunal de Justiça mesmo munido da base empírica para condenar o acusado, capturado em flagrante de um crime assemelhado a hediondo, passou a atuar como verdadeiro legislador positivo, erigindo direito vocacionado a absolver um culpado, assinalando que o domicílio (ou a violação dele) pode ser utilizado como escudo para legitimar qualquer prática ilícita hedionda, mesmo quando a infração penal de tráfico de drogas seja classificada doutrinariamente como permanente, admitindo a prisão em flagrante entre o crepúsculo e a aurora, o que, por consequência, torna letra morta o preceito constitucional que permite a devassa domiciliar quando um crime estiver ali ocorrendo (art. 5º, XI, da CF/88).

Mas não é só. O direito “criado” de não ter a residência devassada não encontra exceções, pois o fraseado “elementos concretos de convicção” é um conceito jurídico indeterminado, naturalisticamente enfronhado de vaguidão, sujeito as intempéries interpretativas, de modo que basicamente qualquer ação lícita policial seria questionada e isso inverteria o sujeito e o predicado, configurando, ao revés, crime de abuso de autoridade por parte dos policiais. Quer dizer, o policial, no exercício funcional, passaria a ser considerado o delinquente, enquanto o traficante, em plena empreitada criminosa, seria a “vítima”, sob os auspícios e proteção legal. Desse modo, o aludido direito “criado” visando à absolvição de culpados, por apresentar exceção de difícil configuração, traduz-se metaforicamente num Aquiles com calcanhar de chumbo.

3. Conclusão

Na crise do welfare state tupiniquim e, por imperativo lógico, da prevenção primária do delito, a impunidade é o grande vilão a ser enfrentado. Não apenas aquela que provém da elucidação deficitária dos delitos, em especial, dos hediondos, mas também e principalmente aquela que deriva de interpretações laxistas, fruto do garantismo unidimensional, que influenciaram o legislador e alguns setores do Judiciário.

Reconhece-se, todavia, que a tarefa não é simples, pois exige uma resposta dos três poderes constituídos. Ao Judiciário abandonar o culto da bandidolatria. Ao Legislativo propor reformas, uma das propostas do Projeto Anticrime. E, por fim, ao Executivo, quiçá seja o que mais esteja em débito social, pois a ele compete investir na estruturação das polícias, talvez com a aplicação do ciclo completo de polícia, com o objetivo de incrementar a investigação e elucidação dos delitos de sangue; retomar o controle dos presídios, territórios conflagrados pelas organizações criminosas e construir novos presídios, colônias penais agrícolas e casas de albergado, para viabilizar o comando dos éditos condenatórios proferidos pelo Judiciário, obstando que celerados cumpram o preceito condenatório na comodidade de suas residências, desvirtuando as finalidades da pena e da própria condenação.

Ademais, as mudanças devem ser simultâneas, pois de nada adianta que o Judiciário, ombreado com o garantismo tridimensional, profira édito condenatório em desfavor de um delinquente, enquanto não houver colônia penal agrícola para o cumprimento da pena. Seria um relâmpago que não dissipa as trevas da noite.

Note-se, não se está aqui enxergando o delinquente como inimigo, tampouco como amigo, mas sim como responsável pelos seus atos e merecedor de punição, apenas quando a sua culpabilidade for provada no bojo do devido processo legal substancial, assegurados o contraditório e a ampla defesa, de maneira que, não se advoga que se lance mão do Direito Penal de terceira velocidade como remédio para esse sistema enfermo. Em outros termos, o mote não é propugnar pelo afastamento de qualquer garantia inserta ou plasmada no texto constitucional, nem isso seria dotado de juridicidade, por influxo dos direitos e garantias individuais estarem insertos como cláusula pétrea (art. 60, parágrafo 4º, inciso IV, da CF), núcleo duro da Constituição Federal. Todavia é imperativa uma (re)interpretação das garantias do acusado mais consentânea com (todos) os valores albergados no texto constitucional, de molde a conferir a máxima efetividade de todos (volto a dizer, todos) os direitos fundamentais, numa visão sistêmica do edifício penal, com a finalidade de obter a plenitude do garantismo tridimensional, consistente na observância e proteção do trinômio acusado-vítima-sociedade.

Rumando para o término, equivale a deitar um olhar panóptico sobre todo o edifício penal construído nos alicerces do trinômio acusado-vítima-sociedade, ao invés de proceder a uma leitura utilitarista da realidade, apenas do térreo (acusado). Na mesma toada, a interpretação garantista unidimensional propiciou a degeneração do importante instrumento do habeas corpus pela jurisprudência, o que deve ser urgentemente revisto, ao tempo em que racionalizado o seu cabimento para que seja possível o aforamento apenas nas situações em que efetivamente a liberdade de locomoção estiver correndo sério de risco de ser tolhida.

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[1] Basta comparar os armamentos que dispunham as organizações criminosas.

[2] Laxismo é “...a tendência em se propor soluções absolutórias mesmo quando essas mesmas evidências presentes no processo apontem em direção oposta, ou a aplicação de punições benevolentes, desproporcionada à gravidade e circunstâncias do fato e à periculosidade do agente, sob o pretexto de que o agente seja vítima do esgarçamento do tecido social ou de relações familiares deterioradas, sujeitando-se a reprimenda simbólica ao desconsiderar o livre-arbítrio na etiologia do fenômeno transgressivo” (DIP; JUNIOR, 2012, p. 16).

[3]1) Princípio da retributividade da pena em relação ao delito praticado; 2) princípio da legalidade, para o qual só pode haver condenação se houver lei anterior ao fato; 3) princípio da necessidade: somente se deve se socorrer do Direito Penal se for absolutamente necessário como ultima ratio; 4) princípio da lesividade: o ato além de típico deve causar efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado, desde que deflua da Constituição um mandato expresso de criminalização; 5) princípio da materialidade; 6) princípio da culpabilidade, para o qual é necessário comprovar a culpa do réu, do contrário in dúbio pro reo; 7) princípio da jurisdicionalidade, apenas um magistrado investido de jurisdição é que pode aplicara pena; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do encargo da prova, de modo que não compete ao réu provar a sua inocência, mas sim ao Ministério Público provar que é culpado; 10) princípio do contraditório, sendo inadmissíveis “procedimentos kafkanianos”, derivando do devido processo legal (FISCHER; CALABRICH; PELELLA, 2018, p. 85).

[4] Evidentemente, a teorização carecerá de novos aprofundamentos, mas lançadas as primeiras linhas nesse singelo artigo.

[5] O que, não raro, acontece devido a cultura (criticável) da pena mínima do Poder Judiciário brasileiro.

[6] A infração penal de homicídio simples não é considerada crime hediondo, por influxo do critério legal previsto no artigo 1º da Lei n. 8.072/90.

[7] A partir de dados do relatório Infopen, denota-se que apenas no segundo semestre de 2014, enquanto 279.912 pessoas ingressaram no sistema prisional, saíram praticamente 200.000 pessoas.

[8] O Projeto Anticrime ainda propõe alteração do artigo 421 do CPP, ao estabelecer que os recursos contra a decisão de pronúncia não terão o condão de suspender o julgamento, nem mesmo os embargos de declaração.

[9] A 6ª Turma do STJ possui o entendimento de não permitir a execução provisória da pena restritiva de direitos, fazendo uma análise literal do artigo 147 da Lei de Execuções Penais (AgRg no Ag em REsp n. 553.876-SP).

[10] Asseverou a Ministra Elen Gracie do STF, no julgamento do HC 85.886 (DJ 28/10/2005), que em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa, aguardando referendo da Corte Suprema, lançando mão do estudo realizado por Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Mônica Nicida Garcia e Fábio Gusman.

[11] O julgado dessa operação é paradigmático, vez que o Supremo Tribunal Federal após os banqueiros Daniel Dantas e Salvatore Cacciola serem algemados em rede nacional criou o enunciado sumular vinculante n. 11, conhecida por alguns magistrados como Súmula Cacciola-Dantas, que proíbe o uso de algemas, sob pena de anulação do ato e responsabilidade civil, administrativa e penal da autoridade recalcitrante (MACEDO, 2008).

[12] Não à toa é chamado de remédio heroico, perdoem-me pelo uso do trocadilho.

Sobre o autor
Antonio Alceste Callil de Castro

Promotor de Justiça do Estado do Acre. Ex-Delegado de Polícia Civil do Acre. Ex-Advogado. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal

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