6. O que é a justiça para Kelsen?
Este tópico será deslindado em poucos parágrafos. Já plenamente consciente da moral relativista kelseniana e da inexistência de valores absolutos, cabe-nos perguntar, na multidão de inúmeros juízos de valor, qual é o sentido da justiça para Hans Kelsen, ou seja, o que para ele, em particular, exprime a justiça.
Segundo Kelsen, "do ponto de vista do conhecimento racional existem somente interesses humanos e, portanto, conflito de interesses. Para solucioná-los, existem apenas dois caminhos: ou satisfazer um dos interesses à custa do outro, ou promover um compromisso entre ambos". Mais à frente, Kelsen completa: "Não é possível comprovar que somente uma, e não a outra solução, seja justa. Se se pressupõe a paz social como valor maior, a solução de compromisso pode ser vista como justa. Mas também a justiça da paz é uma justiça relativa, não absoluta". [34] Ora, ainda que relativo – Kelsen não abre mão da sua lógica rigorosa e do seu metido cientifico -, é de se imaginar algum valor que, para o filósofo, pode ser tido como uma expressão de justiça.
Tal valor para Kelsen, que fundamenta a doutrina relativista de valores, é o princípio da tolerância. Assim Kelsen define tal princípio: "é a exigência de compreender com benevolência a visão religiosa ou política dos outros, mesmo que não a compartilhemos, e, exatamente porque não a compartilhamos, não impedir sua manifestação pacífica". [35]
No entanto, Kelsen não admite o princípio da tolerância absoluta, mas uma tolerância no limite do ordenamento jurídico positivo. Afirma o filósofo: "obviamente, de uma visão de mundo relativista não resulta o direito à tolerância absoluta, somente a tolerância no âmbito de um ordenamento jurídico positivo, que garanta a paz entre os submetidos a essa justiça, proibindo-lhes qualquer uso da violência, porém não lhes restringindo a manifestação pacífica de opiniões". [36]
Mas aqui reside um outro problema, não resolvido por Kelsen. O limite da tolerância encontra-se no seio de um ordenamento jurídico positivo, que não se tem a priori. Kelsen não nos dá nenhuma resposta. O intolerável, diante da razão humana, talvez seja a violência, no sentido de que os mais altos ideais morais foram comprometidos pela intolerância daqueles que os defenderam.
O senso de tolerância de Kelsen parece coadunar com um sentido de democracia, ou seja, ampla possibilidade de debate, sem repressão a qualquer doutrina, mesmo aquelas antidemocráticas, não admitindo, tão-só, o uso da violência. Nesse sentido, diz Kelsen: "Mas a democracia pode continuar tolerante, se precisar se defender de intrigas antidemocráticas? Pode! – na medida em que não reprimir demonstrações pacíficas de opiniões antidemocráticas". Mas Kelsen completa: "A democracia não poderá se defender se isso implicar desistir de si própria. Mas é direito de todo governo, mesmo democrático, reprimir com violência e evitar, pelos meios adequados, tentativas de derrubá-lo com o uso de violência". [37]
Kelsen, então, admite o uso da violência para a manutenção da democracia. Há um limite tênue e tenso entre aquilo que é tolerável e intolerável para o dito regime democrático ou, como relata Kelsen, entre a propagação de certas idéias e a preparação de uma insurreição revolucionária. É da própria natureza da democracia arcar com tal risco e descobrir tal limite.
A definição particular de Kelsen permanece assim também muito fluida, flertando com a idéia de tolerância. O próprio filósofo diz não saber nenhuma resposta nesta magistral passagem final:
Iniciei este ensaio com a questão: o que é justiça? Agora, ao final, estou absolutamente ciente de não tê-la respondido. A meu favor, como desculpa, está o fato de que me encontro nesse sentido em ótima companhia. Seria mais do que presunção fazer meus leitores acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim: uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da tolerância. [38]
7.A crítica de Mário G. Losano
Mário G. Losano, introdutor de Kelsen na edição italiana de "O problema da Justiça", pode ter sua crítica resumida na seguinte expressão, de notável força: "a pureza realmente é uma virtude recomendável e o asceta que a pratica é digno de todo nosso respeito; mas uma sociedade de ascetas estaria condenada à extinção". [39]
Mário Losano aponta supostas fragilidades na construção lógica kelseniana, partindo exclusivamente da teoria pura do direito para, de um lado, com uma crítica transcendente, de cunho jusnaturalista, salientar que a validade formal de Kelsen pode justificar qualquer regime jurídico, mesmo o mais abjeto; de outro lado, com uma crítica de cunho sociológico, segundo a qual, com a sua pureza metodológica a teoria kelseniana é inconciliável com a realidade jurídica que ela quer descrever.
Segundo Mário Losano, a primeira crítica vincula-se ao ideal formador da estrutura normativa kelseniana. Ora, para Losano, a norma fundamental não é uma norma em sentido kelseniano, já que, em determinado momento, na pirâmide normativa, a norma base não pode retirar sua validade do próprio sistema, ela deve ser pressuposta, tal como uma norma de justiça que expressa um juízo de valor. Aqui deve o jurista, não o político (para Kelsen é este o termo), fazer uma escolha entre juízos possíveis de valores para justificar a norma fundamental como válida e garantir o funcionamento do sistema normativo. Estamos diante de um elemento teórico (pertencente ao mundo da natureza, do "ser") que condiciona a existência de uma norma (pertencente ao mundo do direito, do "deve-ser"); passagem que Hans Kelsen considera inconciliável com o pressuposto da pureza metodológica.
Na segunda crítica, Losano afirma, na outra ponta do edifício normativo kelseniano, a exigência da eficácia para a validade da norma jurídica. Kelsen diria que a validade da norma e sua existência em sentido jurídico são a mesma coisa. A existência dentro do esquadro normativo significaria a validade da norma. No entanto, Losano salienta que há a necessidade de se comprovar a eficácia da norma para garantir a sua validade. Não bastaria o cumprimento de exigências formais, é preciso demonstrar que a norma também é eficaz. Aqui neste ponto faz-se a junção com a realidade, com o mundo do ser, negado por Kelsen em sua pureza científica. Kelsen, segundo Mário Losano, em algum momento, tem que admitir esta ligação com a realidade, quando o filósofo diz que uma norma jurídica perde sua validade quando deixa de ser eficaz.
Vê-se que, nos extremos da teoria pura do direito, segundo Losano, Kelsen encontra obstáculos para justificar a pureza do seu método científico. E no que se refere à justiça, ao ideal de justiça, a primeira crítica mencionada acima coloca Kelsen na inevitabilidade da escolha de um valor de justiça. Para Losano, a teoria pura do direito, associada com o ascetismo kelseniano em face da justiça, oriunda do relativismo axiológico, em algum momento, perde inclusive sua força descritiva.
Quanto à citação feita no final do tópico sexto, naquilo que seria o ponto máximo do método científico kelseniano, ou seja, não só responder as perguntas feitas, mas dizer quais as perguntas que podem ser feitas com sentido, entre as quais, com certeza, não estaria "o que é a justiça?", Mário Losano assevera que nós então devemos nos "virar contra quem a formula: o fato de uma necessidade não poder ser satisfeita por meio do conhecimento racional não implica que se deva renunciar a satisfazê-la. Se determinado tipo de ciência recusa-se a satisfazê-la, o que se deve pôr em discussão – a meu ver – não é a necessidade, mas esse tipo de ciência". [40]
Mário Losano afirma que a teoria pura do direito, na associação com um ideal de justiça, deve ultrapassar, em determinado momento, talvez no extremo da norma fundamental hipotética, o método puro descritivo, para prescrever também, para servir à ação e para evoluir. Para Losano, "quem descreve e enumera simplesmente está delegando a outrem o ato de prescrever e escolher; uma vez que, diante da inércia do outro, prescreve e escolhe quem tem o poder, a teoria pura do direito apresenta-se como doutrina do status quo jurídico". [41]
8. Conclusões
A formidável construção kelseniana continua forte, exercendo sua influência sobre os pensadores do direito, na criação e justificação da norma. A não-idéia de Hans Kelsen quanto à justiça tem íntimo relacionamento com a teoria pura do direito. Há, na verdade, uma radicalização quanto à inexistência de um valor absoluto, pelo menos inalcançável pelo entendimento racional. Daí é que se pode falar é em uma justiça platônica, idealizada sem razão empírica, ou teológica.
De fato, o relativismo de valores kelseniano assusta. A validade formal de qualquer status quo jurídico poderia levar a teoria à sua ruína. Em algum momento, ela deve ser propositiva. No que respeita ao purismo metodológico, Kelsen me parece ainda ter a resposta:
Os fascistas qualificam-na de liberalismo democrático; os liberais ou os social-democratas consideram-na precursora do fascismo. Do lado comunista, é desprezada como ideologia de um estatismo capitalista; do lado do capitalismo nacionalista, é desprezada como bolchevismo crasso ou anarquismo mascarado. Seu espírito, afirmam muitos, tem parentesco com a escolástica católica; outros, ao contrário, acreditam reconhecer nela os traços característicos de uma teoria protestante do Estado e do direito. E tampouco faltaram aqueles que quiseram estigmatizá-la como atéia. Em suma, ainda não existe nenhuma tendência política à qual a teoria pura do direito não esteve sob suspeita de pertencer. Mas é exatamente isso que demonstra a sua pureza, melhor do que ela mesma seria capaz. [42]
Quanto à especulação de um ideal de justiça, Hans Kelsen, ainda que motivado essencialmente por seu espírito científico, nos deixa um rastro a seguir, tal como posto no tópico sete, qual seja: a justiça da liberdade, da paz, da democracia e, em especial, da tolerância. [43] Talvez não haja, de fato, uma resposta absoluta para a justiça, mas há verdadeiramente um caminho a seguir. Vamos segui-lo.
9. Referências bibliográficas
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KOLM, Serge-Christophe. Teorias Modernas da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 625p.
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RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça – Introdução (Vamireh Chacon). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.
RIBEIRO, Fernando Armando. Conflitos no Estado Constitucional Democrático – Por uma Compreensão Jurídica da Desobediência Civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. 405p.
RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental. São Paulo: Ediouro, 2003. 463p.
Notas
01
Como magistralmente diz Kelsen na Introdução ao seu "A Ilusão da Justiça": "De todo o grande contingente daqueles que – desde que o ser humano adquiriu a capacidade de pensar – se ocuparam da questão da justiça, duas cabeças alçam-se muito acima de todas as demais. A primeira, cingida do glorioso esplendor da especulação filosófica; a outra, da coroa de espinhos da crença religiosa. Tanto quanto o divino Salvador, Jesus de Nazaré, apenas o filósofo de Atenas, o divino ‘Platão’ lutou pela justiça. Aquele, mais ainda com sua vida do que com sua doutrina; este, mais com sua doutrina do que com sua vida. Somente os diálogos de Platão revelam-se tão completamente impregnados do pensamento na justiça quanto o está a pregação de Jesus. Se a questão da justiça constitui o problema central de toda teoria e prática social, então o pensamento europeu atual, em uma de suas esferas mais importantes, apresenta-se fundamentalmente marcado pela maneira como o filósofo grego e o profeta judeu colocaram a questão e responderam a ela. Se é que nos cabe esperar encontrar uma resposta para ela, para a questão da justiça absoluta, havemos de encontrá-la em um ou em outro – ou, do contrário, tal questão será inteiramente irrespondível" (KELSEN, Hans. A ilusão de justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1)02
03
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 6.04
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 7.05
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 13.06
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 16.07
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 15.08
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 17.09
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 17-8.10
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 67.11
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 71.12
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 72.13
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 74.14
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 76.15
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 18.16
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 20.17
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 21.18
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 26.19
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 27.20
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 30.21
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 30.22
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça – Introdução (Vamireh Chacon). Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981.23
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 31.24
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 45.25
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 45.26
A aproximação feita por Kelsen pode ser sentida neste trecho: "É o dualismo típico de toda a metafísica: o dualismo que distingue entre uma esfera empírica e uma esfera transcendente, cujo esquema clássico é a Teoria das Idéias de Platão e que, como dualismo do Aquém e do Além, do homem e de Deus, está na base da teologia cristã" (KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 68).27
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 67.28
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 70.29
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 72.30
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 84-5.31
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 86.32
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 99.33
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 114.34
KELSEN, Hans. O que é Justiça? São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 23.35
KELSEN, Hans. O que é Justiça? São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24.36
KELSEN, Hans. O que é Justiça? São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24.37
KELSEN, Hans. O que é Justiça? São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24.38
KELSEN, Hans. O que é Justiça? São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 25.39
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XXXI.40
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XXVII.41
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XXIX.42
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. XXIX - XXX.43
Veja esta magistral passagem de Francis Wolf, professor de filosofia na Universidade de Paris X, sobre a tolerância, em seu artigo "Quem é o bárbaro?" (recomendo a leitura completa do artigo), incorporado ao livro organizado por Adauto Novaes, "Civilização e Barbárie": "Aceitar a igualdade formal das opiniões e seu igual direito à existência e à coexistência não significa considerar que todas elas são igualmente falsas ou verdadeiras, justas ou injustas, nem que não se deva lutar para fazer triunfar a sua própria opinião, no terreno formal da democracia. Do mesmo modo, a tolerância não é uma crença qualquer, é a possibilidade puramente formal da existência da diversidade das crenças, que, estas sim, têm um conteúdo específico, que poderá até se pretender absoluto. Eu não renuncio ao valor da minha opinião política específica por ser democrata ou por aceitar que existam outras; tampouco renuncio à minha fé, ou no valor absoluto da minha fé no meu Deus, por aceitar que possa haver outras crenças ou fés diferentes. Acho apenas que elas são falsas, ou ilusórias, o que é totalmente diferente. É o fanático que considera a "tolerância" uma espécie de crença particular, quando ela é apenas a condição formal de sua existência" (NOVAES, Adauto (Org.). Civilização e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 40-1).