RESUMO: O rigor ao se entender nula uma norma declarada inconstitucional vem sendo substituído por uma interpretação flexível, que entende ser possível uma norma, que contraria a Constituição, continuar a produzir efeitos. Porém, com o surgimento da medida provisória, da arguição de descumprimento de preceito fundamental e outras normas inovadoras, bem como a teoria da modulação dos efeitos da decisão, esse posicionamento vem sendo alterado. A interpretação no sentido de entender como anulável a norma cuja incompatibilidade com a Constituição leva à sérias consequências, que merecem uma investigação aprofundada, o que se pretende com o presente projeto de pesquisa.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem por objetivo analisar as consequências de uma declaração de nulidade de uma norma declarada inconstitucional, conceituando norma inconstitucional, verificando os efeitos da declaração de inconstitucionalidade e analisando as teorias que consideram a norma inconstitucional nula e/ou anulável.
De início, inclusive com Rui Barbosa, uma norma declarada inconstitucional era tida como nula ou inexistente, sendo inadmissível que uma norma contrária à Constituição possa gerar efeito, revogando-se parcialmente a Lei Maior. Caso assim não fosse, durante o período de sua vigência, estaria revogando, temporariamente, o texto constitucional, colocando-se, como norma infraconstitucional, acima da Constituição, o que logicamente é incompreensível.
Porém, inovações trazidas no ordenamento jurídico brasileiro, baseadas em avanços na interpretação constitucional em países como a Alemanha, notadamente, motivaram a evolução de tal entendimento.
A polêmica espécie normativa denominada medida provisória e instrumentos de controle de constitucionalidade como a arguição de descumprimento de preceito fundamental inovaram o posicionamento jurídico brasileiro, passando a apresentar a declaração de inconstitucionalidade como uma decisão que torna anulável norma impugnada por incompatibilidade com o texto Constitucional.
Assim, a presente pesquisa científica se justifica pois o controle de constitucionalidade tornou-se, na vigência da atual Constituição Federal brasileira de 1988, um importante mecanismo de atuação dos tribunais brasileiros na busca de interpretação da legislação infraconstitucional e solução dos novos conflitos que se impõe, principalmente aqueles inerentes à busca de autoafirmação e respeito aos direitos da personalidade pelos indivíduos e grupos sociais.
É uma tendência mundial a constitucionalização do Direito, ou seja, a reinterpretação da legislação ordinária segundo princípios, fundamentos, objetivos e valores constitucionais, tornando a norma mais flexível e sensível a questões complexas que exigem do julgador muito mais do que aplicação de uma regra, que apresente uma solução que atenda a elevadíssimos critérios éticos.
Desta forma, a relativização dos critérios de validade das normas se apresenta como um fenômeno suficientemente importante para a realização desta pesquisa científica, que foi realizada na forma de revisão de literatura, com a utilização de doutrinas na área do Direito Constitucional e análise de jurisprudência, principalmente do Supre Tribunal Federal.
2. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na doutrina tradicional, as normas jurídicas possuem seu fundamento de validade em outras leis, aglutinando-se de maneira a constituir um complexo sistema normativo, fora do qual é impossível a existência de uma regra de Direito. Ou ela existe dentro do sistema, de onde retira sua força coativa, ou permanece fora, não existindo para o mundo jurídico.
Esse sistema normativo, ainda, é hierarquizado, formando uma verdadeira pirâmide jurídica, na qual a juridicidade de cada norma é retirada da juridicidade da norma que a sustenta. Existem, portanto, normas superiores e outras que lhes são subordinadas. Estas normas subordinadas, existindo em face das que lhe são superiores, não as podem contrariar em momento algum, devendo sempre se apresentar em consonância com elas.
Da superioridade da Constituição, conforme proposta por Hans Kelsen, resulta que todos os atos que não estejam de acordo com ela são inconstitucionais. E, para garantir a supremacia da Constituição, torna-se necessária a existência de um controle sobre os atos jurídicos, com o objetivo de identificar os que são contrários à Constituição, sendo assim inválidos. Esse é o dito controle de constitucionalidade.
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, quando o legislador constituinte não prevê, ainda que implicitamente, um sistema de controle de constitucionalidade das leis, a Constituição que nasce é sempre flexível, não importa o esforço que se faça para caracterizá-la como rígida. Ainda, torna-se impossível estabelecer a distinção entre Poder Constituinte originário e derivado.
“A distinção entre Constituição rígida e flexível, entre Poder Constituinte originário e Poder Constituinte derivado, implica a existência de um controle de constitucionalidade” (FERREIRA FILHO, 1990, p. 29).
Isto ocorre, pois não existindo um controle de constitucionalidade, as normas infraconstitucionais, mesmo sendo criadas em desconformidade com a Constituição, adquirem eficácia, alterando o texto da Lei Maior. Desta forma, a Constituição torna-se flexível, podendo ser alterada pelo processo normal de criação de normas infraconstitucionais, notadamente o destinado às leis ordinárias, não havendo que se falar também em Poder Constituinte originário e derivado.
O legislador constituído pode, portanto, nas Constituições flexíveis, modificar a seu talante a Lei Maior quando não existir um órgão, com poder suficiente, destinado a assegurar sua superioridade em relação às normas infraconstitucionais. Utiliza-se tal expressão (legislador constituído) para distinguir o legislador constituinte, que exerce o Poder Constituinte, criando a Constituição; do legislador que elaborará as normas do art. 59, da Constituição Federal de 1988 (emendas à constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções). Este último se identifica como legislador constituído.
O controle de constitucionalidade, como já afirmado acima, não necessita estar previsto expressamente na Constituição, sendo exemplo os Estados Unidos da América do Norte, que implicitamente o prevê.
O surgimento do controle de constitucionalidade se deu no caso Marbury versus Madison (MARSHALL, 1997), quando o juiz John Marshall deduziu que o controle de constitucionalidade das leis pertencia ao Poder Judiciário, pois é ele o encarregado de aplicar a lei, dizendo o Direito.
Demonstrou ainda que, se a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte é a Lei Maior, não podendo ser contrariada por qualquer outra norma ordinária ou ato administrativo e que não pode ser alterada por meio do mecanismo normal de produção legislativa, todas as leis comuns que a contrariassem não poderiam ser verdadeiramente leis, expressão do Direito.
Essas leis inconstitucionais seriam inválidas, sem poder para obrigar os particulares.
A veracidade desta conclusão salta aos olhos, sendo que quando duas leis se encontram em conflito, cabe ao juiz decidir qual será aplicada, restando claro que se uma destas for a Constituição, é ela quem deve prevalecer, desprezando-se o outro comando legal.
Por controle de constitucionalidade, então, deve-se entender o:
“[...] conjunto de vias pelas quais os diversos sistemas constitucionais instauram um procedimento destinado a identificar as leis e atos normativos inconstitucionais para o efeito de anulá-los.” (BASTOS, 1994. p. 30).
O controle de constitucionalidade visa trazer harmonia ao ordenamento jurídico, quando:
“[...] caracterizado o contraste, o sistema provê um conjunto de medidas que visam a sua superação, restaurando a unidade ameaçada. A decretação de inconstitucionalidade consiste no reconhecimento da invalidade de uma norma e tem por fim paralisar sua eficácia” (BARROSO, 2012, p. 17).
Nas palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho é a:
“[...] verificação da adequação de um ato jurídico (particularmente da lei) à Constituição.” (1990, p. 30).
Este controle corresponde à verificação tanto de requisitos formais de constitucionalidade dos atos jurídicos, que podem ser subjetivos, referentes ao órgão de elaboração da norma, como objetivos, referentes à observação da forma, prazos e processo, em sua edição. Quanto aos requisitos substanciais de constitucionalidade do ato jurídico, estes dizem respeito aos direitos e às garantias consagrados na Constituição.
Assim, sendo declarada a inconstitucionalidade de um ato jurídico, segundo a doutrina tradicional, tanto estrangeira, nas palavras do juiz John Marshall (MARSHALL apud BARBOSA, 1962), quanto nacional, nos ensinamentos de Rui Barbosa, o ato jurídico declarado inconstitucional é inválido, sem efeito. Ele não obriga ninguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
“Toda a construção do direito americano tem por base a noção de que o povo possui originariamente o direito de estabelecer, para o seu futuro governo, os princípios, que mais conducentes se lhe afigurem à sua utilidade. O exercício desse direito original é um insigne esforço: não pode, nem deve repetir-se frequentemente. Os princípios, que destarte uma vez se estabeleceram, consideram-se, portanto, fundamentais. E, como a autoridade, de que eles dimanam, é suprema, e raro se exerce, esses princípios têm destino permanente. A vontade primitiva e soberana organiza o governo, assinando-lhe os diferentes ramos, as respectivas funções. A isto pode cingir-se; ou pode estabelecer raias, que eles não devam transpor. Nesta última espécie se classifica o governo dos Estados Unidos. Definiram-se e demarcaram-se os poderes da legislatura; e, para que sobre tais limites não ocorresse erro, ou deslembrança, fez-se escrita a Constituição. Com que fim se estipulariam esses poderes, e com que fim se reduziria essa estipulação a escrito, se os limites prescritos pudessem ser ultrapassados exatamente por aqueles, que ela se propunha a coibir? Acabou-se a distinção entre os governos de poderes limitados e os de poderes indefinidos, se os confins, que se estabelecem, não circunscreverem as pessoas, a que se impõem, e ficarem igualmente obrigativos os atos permitidos e os atos defesos. Ou havemos de admitir que a Constituição anula qualquer medida legislativa, que a contrarie, ou anuir em que a legislatura possa alterar por medidas ordinárias a Constituição. Não há contestar o dilema. Entre as duas alternativas não se descobre meio-termo. Ou a Constituição é uma lei superior, soberana, irreformável por meios comuns; ou se nivela com os atos de legislação usual, e, como estes, é reformável ao sabor da legislatura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo, contrário à Constituição, não será lei; se é verdadeira a segunda, então as constituições escritas são absurdos esforços do povo, por limitar um poder de sua natureza ilimitável. Ora, com certeza, todos os que têm formulado constituições escritas, sempre o fizeram com o intuito de assentar a lei fundamental e suprema da nação; e, conseguintemente, a teoria de tais governos deve ser que qualquer ato da legislatura, ofensivo da Constituição, é nulo. Esta doutrina está essencialmente ligada às constituições escritas, e, portanto, deve-se observar como um dos princípios fundamentais de nossa sociedade” (BARBOSA, 1962, 47-48).
Mas, caso seja aplicado, a declaração de sua invalidade tem efeito ex tunc, retroagindo e invalidando todos os atos praticados sob sua vigência, sendo inválida sua aplicação. A decisão que reconhece a inconstitucionalidade é declaratória.
Hans Kelsen (1998), no entanto, representando uma tendência mais moderna, rejeita esta teoria, afirmando que a invalidade não existe dentro da ordem jurídica. Uma norma inválida é uma contradição, pois dá a ideia de que ela não existe. Quanto à norma contrária às que lhe são superiores, sua existência nem ao menos lhe é conferida, porque desrespeita os princípios estabelecidos pelo próprio Direito para a sua criação.
Quando um ato jurídico é dito inválido, ele não produz, logicamente, efeitos no mundo do Direito, porque não foi produzido, quer quanto à sua forma ou conteúdo, nos termos das normas hierarquicamente superiores.
Ter validade jurídica significa existir perante ao Direito, ou seja, a norma encontrar seu espaço no sistema piramidal, vinculando-se às demais, retirando das superiores seu pressuposto de validade e representando, para as inferiores, o pressuposto de validade destas.
Assim, se a norma for inválida, ela não existe para o Direito, não produzindo efeitos.
A inconstitucionalidade de uma norma jurídica ou de um ato administrativo se apresenta como um caso particular de invalidade dos atos jurídicos em geral, onde a norma ofendida é a constitucional, a qual não se fundamenta em nenhuma outra, mas funda-se em si mesma. Ela traz em si o mínimo indispensável à existência do ordenamento jurídico, criando os órgãos de cúpula do Estado, entre eles o Legislativo, encarregado da produção normativa, fixando a fórmula a ser seguida nesta tarefa.
As leis que ofendem a Constituição, quer deixando de respeitar seus dizeres, quer sendo criadas sem observar o processo constitucionalmente estabelecido para tal, carregam em si um vício gravíssimo, o da inconstitucionalidade. Sendo assim, jamais podem vir a existir, sendo consideradas inválidas.
Quando adjetiva um texto como lei, daí deflui que ele é constitucional, pois caso não o seja, jamais pode se adequar ao ordenamento jurídico, não encontrando o seu lugar na pirâmide do Direito. Por isso se afirma que não existe lei inconstitucional, sendo a afirmação contraditória em si mesma; uma contradição em termos.
“A afirmação de que uma lei válida é ‘contrária à Constituição’ (anticonstitucional) é uma contradictio inadjecto; pois uma lei somente pode ser válida com fundamento na Constituição. Quando se tem fundamento para aceitar a validade de uma lei, o fundamento da sua validade tem de residir na Constituição. De uma lei inválida não se pode, porém, afirmar que ela é contrária à Constituição, pois uma lei inválida não é sequer uma lei, porque não é juridicamente existente e, portanto, não é possível acerca dela qualquer afirmação jurídica”. (KELSEN, 1998, p. 300).
Mas o Direito não pode ser visto apenas tecnicamente, de forma abstrata, pois se submete a um contato diuturno com a realidade social, a que pretende regular. Por isso que não é apenas aplicando-se o princípio da validade da norma em função da sua adequação a outra hierarquicamente superior que irá solucionar o problema do controle da constitucionalidade de lei ou ato administrativo.
Hans Kelsen (1998), então, considera as normas jurídicas inconstitucionais anuláveis tendo esta anulabilidade vários graus. Afirma também, que não é possível se falar em norma jurídica nula.
“Do que acima fica dito também resulta que, dentro de uma ordem jurídica não pode haver algo como a nulidade, que uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula mas apenas pode ser anulável. Mas esta anulabilidade prevista pela ordem jurídica pode ter diferentes graus. Uma norma jurídica em regra somente é anulada com efeitos para o futuro, por forma que os efeitos já produzidos que deixa para trás permanecem intocados. Mas também pode ser anulada com efeito retroativo, por forma tal que os efeitos jurídicos que ela deixou atrás de si sejam destruídos: tal, por exemplo, a anulação de uma lei penal, acompanhada da anulação de todas as decisões judiciais proferidas com base nela; ou de uma lei civil, acompanhada da anulação de todos os negócios jurídicos celebrados e decisões jurisdicionais proferidas com fundamento nessa lei. Porém, a lei foi válida até a sua anulação. Ela não era nula desde o início”. (KELSEN, 1998, p. 306-307).
Uma norma pode ser anulada com efeito ex nunc, para o futuro, permanecendo perfeitas as consequências já produzidas, ou pode ser anulada retroativamente, ex tunc, destruindo-se todos os efeitos jurídicos que já foram produzidos por ela. Neste caso, a decisão judicial possui caráter desconstitutivo, também chamado constitutivo-negativo. (FERREIRA FILHO, 1990, p. 33).
Quanto ao ato inconstitucional, este seria desfeito, e portanto anulável ex tunc, retroagindo-se os efeitos da sentença. (FERREIRA FILHO, 1990, p. 33).
A questão do efeito retroativo da decisão que declara a inconstitucionalidade da lei sempre mereceu atenção, tendo como mote principal a segurança jurídica. Especificamente no Brasil, se o Supremo Tribunal Federal declara inconstitucional uma lei, independentemente de outro ato, ela é considerada nula ipso jure et ex tunc.
Em Portugal, o Tribunal Constitucional, nos moldes da Corte Constitucional Alemã, pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei, sem a pronuncia de sua nulidade (MENDES, 1990, p. 16), como forma de evitar a possibilidade de abrir lacunas na legislação constitucional.
A posição adotada pelo constituinte brasileiro de 1988 acarreta alguns sérios problemas, como, por exemplo: declarada inconstitucional uma lei, desfaz-se todas as situações jurídicas consolidadas sob sua esfera de influência; cria a obrigação de desembolso de recursos para pagamento ou eventual repetição daquilo que se recebeu indevidamente; ocasiona instabilidade e traumas pela insegurança jurídica criada; diante da possibilidade de tais eventos, o Supremo Tribunal Federal pode deixar de declarar a inconstitucionalidade de uma lei manifestamente inválida, evitando um mal maior.
Tais problemas, no entanto, foram superados pela Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, em seu Art. 27, que prevê a possibilidade dos efeitos serem ex nunc, por:
“[...] razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social [...]”:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
Por fim, vale lembrar que os conceitos de inconstitucionalidade ou constitucionalidade não representam somente a desconformidade ou conformidade com a Constituição, referindo-se, também, a atos ou omissões dos Poderes Públicos. (MENDES, 1990, p. 10). Portanto, também são inconstitucionais os atos omissivos ou comissivos dos Poderes Públicos que entram em confronto com a Constituição e constitucionais aqueles que com a Lei Maior se harmonizam.
José Joaquim Gomes Canotilho, revendo toda esta problemática, oferece o seguinte silogismo, apresentado por Gilmar Ferreira Mendes: (1) uma lei inconstitucional é nula; (2) uma lei é nula porque é inconstitucional; (3) a inconstitucionalidade reconduz-se à nulidade e a nulidade à inconstitucionalidade. (apud MENDES, 1990, p. 15).
Sendo assim, com a tendência que se apresenta de maior constitucionalização do Direito, a flexibilização quanto aos efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade de uma norma torna-se assunto relevante que merece a investigação científica de suas consequências nos tribunais, principalmente em nosso Supremo Tribunal Federal.
3. DOS CONCEITOS DE VALIDADE E EFICÁCIA DA NORMA PARA ESTE TRABALHO
Ao se propor discutir a validade e eficácia normativa, necessário antes é definir tais conceitos.
Inicialmente é de se esclarecer que conceitos desenvolvidos e aplicados aos Direito Privado, nem sempre são bem recepcionados pelo Direito Público, pois que não encontram lugar dadas as peculiaridades e distinção entre tais ramos do Direito.
Quanto à validade, sua conceituação depende do entendimento e diferenciação de dois outros, que são os de ato nulo e ato anulável, que pertencem ao Direito Privado e não se encaixam nos ditames do Direito Público.
O conceito de ato nulo e ato anulável, para o Direito Privado, decorrem sempre de um vício de consentimento ou vontade, seja por fraude, coação física ou moral, ou outro meio qualquer.
Porém, em relação à norma está não pode ter sua vontade viciada pois que a mesma não possui vontade. Utiliza-se, no entanto, como figura de linguagem, termos como a “vontade da lei” ou o “espírito da lei”, mas tais expressões são somente o que são e nada a mais do que isso, linguagem figurada.
Portanto, a norma deve ser entendida tão somente como válida ou inválida.
Norma válida é tão somente aquela que está em conformidade com a norma que lhe é superior, da qual retira sua imediata condição de validade. Ao contrário, a norma estranha àquelas que lhe são superiores, por conclusão, são inválidas. E, na lição de Hans Kelsen, a condição para a validade de todo o ordenamento jurídico é a norma superior, entendida como sendo a Constituição do Estado.
Estar em conformidade com a norma que lhe é superior, por sua vez, significa não confrontar o texto maior, estando materialmente em correspondência com este.
Da norma também pode se analisar se a mesma é perfeita. Norma perfeita é aquela criada segundo o procedimento legislativo correto, respeitando-se a iniciativa do processo legislativo, que deve ter sido tomada por pessoa competente; discussão e votação, que deve ter seguido o rito adequado, sem inversões, respeitando-se o quórum mínimo nas votações e a participação de todos os legitimados; sanção ou veto, que quando devida, deve ser respeitada e garantida a participação do Poder Executivo na constituição da norma, sancionando ou vetando, total ou parcialmente o projeto; e, a promulgação e publicação, seja pelo Chefe do Poder Executivo, seja pela Mesa do Congresso Nacional, no caso das emendas à Constituição. A perfeição da norma se relaciona com seus aspectos formais.
E, por fim, a eficácia da norma, que significa ter a mesma atingido os fins para os quais foi criada. Não se pode, no entanto, confundir a eficácia com a eficiência da norma, pois que esta importa em conceito distinto, ainda que relacionado, que se consubstancia em atingir o maior resultado com a menor quantidade de recursos. Enquanto a eficácia está em atingir o objetivo proposto, a eficiência está em medir a relação entre o incômodo causado pela nova norma e os benefícios trazidos pela mesma. Quanto maiores os benefícios em relação aos incômodos, maior será a eficácia.
Mas, o mais interessante é que estas três características de uma norma podem não se apresentar em conjunto, sendo possível qualquer combinação entre os mesmos, ou seja, normas que todos respeitam, possuindo eficácia, mas que foi criada sem respeitar o procedimento legislativo correto e/ou não está em conformidade com a que lhe é superior. Está norma é eficaz, mas não é perfeita e/ou válida.
Como também a norma pode ser válida e perfeita, mas pode não vir a produzir qualquer efeito, caindo em desuso.
Para este estudo tais são os conceitos que serão utilizados, principalmente os referentes à validade e eficácia.
4. EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA
O controle jurisdicional de constitucionalidade das normas no Brasil pode se dar por dois meios, o difuso e o concentrado.
No controle difuso, de forma incidental, todo e qualquer magistrado brasileiro, estando diante de uma situação em que a lei que regula o fato objeto da lide está em desacordo com a Constituição, deve declarar a norma inconstitucional e aplicar a Constituição ao caso concreto. Não se admite, no entanto, que o objeto principal da demanda seja a discussão de constitucionalidade, a qual deve ocorrer de forma incidental, por via de defesa, bem como não se admite, com maior razão, discutir a constitucionalidade de lei por meio de ação civil pública, ação popular e outras ações cuja decisão tenha efeito erga omnes.
Tal ocorre pois senão estar-se-ia usurpando competência do Supremo Tribunal Federal.
A decisão no controle difuso que declara a inconstitucionalidade de norma, até final do ano de 2017, ainda que por recurso extraordinário seja do Supremo Tribunal Federal, possuía efeitos apenas inter partes e ex tunc. A decisão do Supremo Tribunal Federal passava a ter efeito erga omnes quando o Senado Federal suspendia a aplicação da norma, nos termos do artigo 52, X da atual Constituição Federal brasileira.
Porém, com o julgamento das ADI 3.406 e ADI 3.470, em 29 de novembro de 2017, o Supremo Tribunal Federal mudou este entendimento:
“A partir da manifestação do ministro Gilmar Mendes, o Colegiado entendeu ser necessário, a fim de evitar anomias e fragmentação da unidade, equalizar a decisão que se toma tanto em sede de controle abstrato quanto em sede de controle incidental. O ministro Gilmar Mendes observou que o art. 535 do CPC reforça esse entendimento. Asseverou se estar fazendo uma releitura do disposto no art. 52, X, da CF, no sentido de que a Corte comunica ao Senado a decisão de declaração de inconstitucionalidade, para que ele faça a publicação, intensifique a publicidade. O ministro Celso de Mello considerou se estar diante de verdadeira mutação constitucional que expande os poderes do STF em tema de jurisdição constitucional. Para ele, o que se propõe é uma interpretação que confira ao Senado Federal a possibilidade de simplesmente, mediante publicação, divulgar a decisão do STF. Mas a eficácia vinculante resulta da decisão da Corte” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2017).
No controle concentrado de constitucionalidade, no qual a decisão é concentrada no Supremo Tribunal Federal ao julgar as ações direta de inconstitucionalidade, direta de constitucionalidade, direta de inconstitucionalidade interventiva, direta por omissão e arguição de descumprimento de preceito fundamental, os efeitos são erga omnes e ex tunc.
Porém, no controle concentrado, as leis que regulamentam a arguição de descumprimento de preceito fundamental (Lei n. 9.882, de 3 de dezembro de 1999) em seu artigo 11 e a ação direta de inconstitucionalidade (Lei n. 9.868, de 10 de novembro de 1999) em seu artigo 27, permitem que o Supremo Tribunal Federal, por motivo de segurança jurídica ou excepcional interesse social, por maioria de dois terços de seus membros, restrinjam os da declaração de inconstitucionalidade ou decidir que a norma impugnada deixará de produzir eficácia somente a partir do trânsito em julgado da decisão ou de outro momento qualquer, futuro ou pretérito.
“Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” (BRASIL, Lei n. 9.882/1999).
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. (BRASIL, Lei n. 9.868/1999).
Este fenômeno tem sido chamado de modulação dos efeitos da decisão e, quando isto ocorre com o Supremo Tribunal Federal não dando efeitos ex tunc à declaração de inconstitucionalidade tem-se que a norma é declarada inconstitucional, portanto inválida, mas reconhece-se a sua eficácia efêmera.
Segundo Pedro Lenza (2015, p. 410):
“[...] de modo geral, a decisão no controle concentrado produzirá efeitos contra todos, ou seja, erga omnes, e terá efeito retroativo, ex tunc, retirando do ordenamento jurídico [...] lei incompatível com a Constituição”.
De igual modo, leciona José Afonso da Silva (2005, p. 54-55) afirmando que:
“[...] a declaração de inconstitucionalidade em tese visa atingir o efeito imediato de retirar a aplicabilidade da lei. Se não fosse assim, seria praticamente inútil a previsão constitucional de ADI”.
Destarte, é possível assegurar que a ordem jurídica no brasil, adotou a teoria da nulidade da norma inconstitucional, ou seja, ela será nula, haja vista que:
“[...] a lei inconstitucional, porque contrária a uma norma superior, é considerada [...] ineficaz, pelo que o juiz, que exerce o poder de controle, não anula, mas, meramente, declara sua nulidade” (CAPPELLETTI, 1999, apud LENZA, 2015, p. 286).
Ocorre que, a Suprema Corte pode mitigar os efeitos dessa declaração de nulidade, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/1999. Diante disso, embora a norma inconstitucional tenha que ser, em regra, retirada do ordenamento jurídico, poderá se postergar essa retirada, por razões de segurança jurídica e interesse do bem comum, sendo esta mitigação denominada de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade.
Assim, gera-se a problemática de que esta relativização pode ficar à mercê da discricionariedade dos ministros da Suprema Corte, gerando danos ao sistema jurídico e provocando ainda mais problemas à segurança deste sistema. Porém, se a medida for necessária:
“[...] um juízo rigoroso de proporcionalidade poderá recomendar que se declare a inconstitucionalidade sem nulidade, congelando a situação jurídica [...] até o pronunciamento do legislador” (MENDES, 2008, p. 1271).
No tocante a esta afirmação, é necessário que a lei inconstitucional continue sendo aplicada, até que a legislação se adeque e supra este aspecto que põe risco a segurança jurídica, mas com um crivo especificamente técnico, haja vista que essa situação é extremamente excepcional.
O mesmo fenômeno se verifica em relação à medida provisória.
5. MEDIDA PROVISÓRIA
Quanto à medida provisória, a mesma está disciplinada no artigo 62 da atual Constituição Federal brasileira de 1988, sendo interessante a este trabalho os parágrafos terceiro e décimo segundo.
Tais parágrafos estabelecem que as medidas provisórias rejeitadas e que produziram algum efeito durante seu período de vigência, devem ter tais efeitos regulados por decreto legislativo do Congresso Nacional em prazo de até sessenta dias após sua rejeição ou perda de eficácia. Porém, não tendo sido produzido este decreto, determina a Constituição que as relações jurídicas surgidas durante a vigência desta medida provisória continuarão ser por esta reguladas.
“Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
[...]
§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.
[...]
§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”. (BRASIL, Constituição Federal, 1988).
Está-se aqui diante de outra situação, semelhante ao da norma inválida, mas eficaz, acima discutida.
A medida provisória que perdeu a eficácia pode ser tida como aquela que foi rejeitada por decurso de prazo ou rejeitada tacitamente. O outro caso é da medida provisória expressamente rejeitada. Em um caso ou outro a rejeição à medida provisória pode ter ocorrido por motivos políticos, tais como o entendimento pelo legislativo que a medida provisória não atendia ao interesse público, não era oportuna ou conveniente sua aprovação.
Porém, a medida provisória pode ter sido rejeitada por ser inválida, estando em desacordo com a Constituição Federal e, neste caso, por determinação constitucional, continuaria produzindo efeitos caso o Congresso Nacional, em até sessenta dias, não edite o decreto legislativo regulamentando as relações jurídicas surgidas durante a sua vigência.
Estar-se-ia novamente diante de uma norma inválida, mas eficaz.
7. CONCLUSÕES
Desta forma, é possível concluir que no atual estágio do desenvolvimento humano, que nas sábias palavras do filósofo Zygmunt Bauman encontra-se em um período de nítido relativismo e relações líquidas, nos quais os valores tradicionais são derrubados e substituídos por conceitos individualizados e maleáveis de como viver uma vida que vale a pena ser vivida, a possibilidade de se declarar uma norma inválida, mas eficaz encontra total amparo.
É claro que o fato da visão de mundo pós-moderna, vista por Bauman com nítido pessimismo, acolher conceitos como o da modulação dos efeitos da decisão, não legitima a postura do legislador ou a do Supremo Tribunal Federal, dando à mesma apenas a aura de legalidade.
Sendo assim, é de se reconhecer a possibilidade jurídica de uma norma inválida produzir eficácia no ordenamento jurídico.
Porém, em uma análise axiológica, é necessário expressar o inconformismo com tal situação, de relativização de conceitos jurídicos que deveriam ser determinados e precisos.
A relativização traz tão somente insegurança jurídica e o sentimento de que a norma é dobrada ao sabor de interesses que não os nacionais, mas interesses particulares.
Ainda que se tenha a boa intenção de moldar a eficácia das normas, superpondo-a à validade, como forma de atender a situações individuais, personalizando-se o ordenamento jurídico a fim de se atingir mais plenamente elevados critérios de justiça, assim se agindo ofende-se plenamente a justiça em seu conceito equitativo, criando-se distorções e desigualdades inaceitáveis, as quais descambam em evidente privilégio.
Conclui-se, ainda, que a flexibilização da eficácia das normas inconstitucionais não é aceitável, pois cria um anacronismo jurídico, tendo em vista que a norma infraconstitucional estaria superpondo-se à Constituição, revogando-se a Lei Maior, por lei inferior, ainda que momentaneamente, o que é por si só inaceitável.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARBOSA, Rui. Os atos inconstitucionais do Congresso e do Executivo. In: Trabalhos jurídicos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1962. (Obras Completas de Rui Barbosa, v. 20, 1893, tomo 5).
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