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A cultura analítica no mundo jurídico.

Agenda 31/08/2019 às 10:00

O brasileiro não foi ensinado a lidar com dados, mas isso precisa mudar. Instituições mais eficientes já começam a colher frutos da ciência de dados aplicada, com uso de inteligência artificial.

1) Ciência de dados: não sei, desconheço e nunca ouvi falar.

Quando falo com algum amigo ou conhecido que estudo ciência de dados (ou data science) é comum ouvir coisas do gênero "tu estudas para ser cientista?", "tu és maluco?", "mas tu és do Direito?", dentre outros questionamentos. Em todos eles, observo um ponto em comum: as pessoas desconhecem o que realmente significa a ciência de dados.

Basicamente, a ciência de dados ou data science é a junção de três grandes áreas de conhecimento: a ciência da computação, a estatística/matemática aplicada e a área de negócios (conhecimento sobre o objeto ou serviço desenvolvido que, no meu caso, é o Direito).

A partir da reunião dessas três esferas de conhecimento, é possível gerar informação e sabedoria de negócio (insights), potencializando funcionalidades de processos de trabalho, diminuindo custos e auxiliando a tomada de decisões.

Ainda parece confuso? Não se preocupe, é natural que o primeiro contato com a ciência de dados gere certa confusão.

2) O big data: uma revolução dos dados.

Grosso modo, big data significa uma quantidade incrivelmente alta de dados, nos mais variados formatos e das mais diversas origens.

Imagine que estamos 100% do nosso tempo conectados à internet. A conexão é contínua e se dá por meio do uso de smartphones, de computadores, de tablets e até mesmo de televisores. Estamos a todo momento fornecendo dados. Além disso, há sistemas de IOT (internet das coisas): sensores que captam informações sobre nossos hábitos e comportamento. Enfim, por todos os lados que olharmos, encontraremos algo que colha dados.

Mas o que isso tem a ver com a ciência de dados? Tudo!

O big data é o principal responsável pelo desenvolvimento da ciência de dados (ao menos como ela se apresenta atualmente). Os dados gerados em escala incalculável têm sido colhidos, tratados e estudados com afinco, gerando informação e conhecimento de negócio (inclusive e especialmente na área do Direito). Por essa razão, diz-se que "os dados são o novo petróleo".

Certo... A ciência de dados é uma das responsáveis por trabalhar com essa infinita quantidade de dados. Mas como isso é feito?

3) A Inteligência Artificial: robôs estatísticos.

A inteligência artificial é apenas uma tentativa de simular a inteligência humana em máquinas. Por meio das chamadas "machine learning" (máquinas de aprendizado), é possível introduzir funcionalidades preditivas, ou seja, o computador passa a ser capaz de "prever" situações "por conta própria".

Observe que as duas aspas acima - "prever" e "por conta própria" - deixam claro que o computador não goza de uma inteligência singular. As máquinas usam de conhecimentos estatísticos para "prever" situações como prováveis.

Em resumo, inteligência artificial é estatística e matemática aplicada.

Inteligência artificial não é um robô de filme futurista. Aliás, ainda estamos muito longe da chamada "singularidade". A lógica da inteligência artificial é certamente mais simples do que você imagina: é pura matemática/estatística!

Mas como funciona? Vou explicar (de uma maneira bastante genérica) o funcionamento de uma máquina de inteligência artificial:

a) primeiro, é necessária a existência de uma sólida base de dados com uma quantia relevante de informações. Isso é importante porque a estatística depende de dados do passado para prever o futuro (probabilidades);

b)  as características principais do negócio ou serviço são definidas pelo expert do negócio, a fim de desenhar o modelo estatístico para o caso.

c) depois, por meio de um algoritmo (código de programação), o computador recebe dados, realiza cálculos estatísticos e fornece um modelo. Esse modelo fornecerá os outputs do modelo preditivo.

d) Em outras palavras, o modelo receberá dados e poderá prever o que ou qual funcionalidade deverá ser informada na telinha do computador, tudo por meio de cálculos estatísticos e matemáticos.

4) O Direito e a Inteligência Artificial: cases recentes

a) Tribunal de Contas da União:

Introduzido em fevereiro de 2017, o sistema de inteligência artificial batizado como "Alice" faz a varredura em editais de licitações, gerando análises preditivas de aviso sobre possíveis fraudes em certames. O sistema de inteligência artificial avisa aos servidores sobre "possíveis" fraudes, cabendo a estes analisar com mais detalhes cada situação.

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O TCU ainda conta com outros dois sistemas de inteligência artificial: "Sofia" e "Monica" (fonte: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/como-as-robos-alice-sofia-e-monica-ajudam-o-tcu-a-cacar-irregularidades-em-licitacoes.ghtml).

b) Supremo Tribunal Federal:

Em maio de 2018, o STF lançou a parceria formada com a Universidade de Brasília (UNB), a fim de criar o sistema de Inteligência Artificial chamado "Victor", em homenagem ao Ministro Victor Nunes Leal.

O sistema ainda se encontra em fase de treinamento. Acredita-se que, muito em breve, o "Victor" poderá estar sendo usado para prever, por exemplo, quais recursos são ou não vinculados a temas de repercussão geral (fonte: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=380038).

c) Superior Tribunal de Justiça:

Baseada no sistema de inteligência artificial ofertada pela IBM (Watson), o Superior Tribunal criou o "C927", uma ferramenta de pesquisa de jurisprudência (https://www.dizerodireito.com.br/2018/06/enfam-e-stj-lancam-corpus927-sistema.html).

Além disso, há um projeto-piloto chamado "Sócrates", pelo qual se espera haver uma redução em 25% do tempo entre a distribuição e a primeira decisão nos recursos especiais (https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI299820,51045-Projetopiloto+do+Socrates+programa+de+inteligencia+artificial+do+STJ).

Existe uma fortíssima tendência de que o Superior Tribunal de Justiça invista pesadamente em sistemas de inteligência artificial nos próximos anos.

d) Tribunal de Justiça de Rondônia:

Conhecido por "Sinapses", o sistema de inteligência artificial adotado pelo Tribunal de Justiça de Rondônia destaca-se por ter sido criado a partir de pequenas funcionalidades. A sua implantação tem sido paulatina e gradual, por meio de microssistemas que englobam tanto a área judiciária quanto administrativa (fonte: https://www.tjro.jus.br/noticias/item/9472-inteligencia-artificial-desenvolvida-pelo-tjro-pode-revolucionar-o-judiciario).

Algumas das funcionalidade em destaque são os sistemas de movimentação processual preditivos (sugestões), os modelos de triagens e os "autocomplete" de textos.

Outro ponto de destaque é que o TJ-RO disponibiliza o sistema para outros tribunais por meio de APIs.

e) Tribunal de Justiça do Pernambuco:

Em novembro de 2018, lançou o "Elis", sistema de inteligência artificial que analisa processos de execução fiscal (https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2019/05/04/justica-de-pernambuco-usa-inteligencia-artificial-para-acelerar-processos.ghtml).

5) A tecnologia e o mindset de dados: uma nova forma de encarar as coisas no mundo do Direito.

Veja que a alta tecnologia já é uma realidade dentro dos segmentos do Direito. Os exemplos citados acima, todos do setor público, são a mais pura realidade disso. Deixei de citar outros cases da seara privada, na medida em que já estão tão avançados e consolidados que seria necessário escrever um artigo à parte.

E o que tudo isso significa? Significa que devemos parar para pensar, analisar e aceitar as tecnologias (jamais se olvidando da preocupação efetiva com o ser humano que irá operá-las).

O jurista não pode mais ficar alheio à tecnologia, achar que tal assunto é coisa da TI (sigla que significa a área de tecnologia da informação) ou do "cara que arruma a sua impressora". A tecnologia já faz parte do cotidiano de quem trabalha com o Direito.

É preciso, ademais, voltar-se para o mindset de dados: usar a tecnologia para a análise de dados. Desenvolver cada vez mais a cultura da análise de dados nas instituições de grande porte. Onde há decisões complexas, volume de dados e relevante quantidade de transações, deve haver a cultura da análise de dados.

Veja que não se está a dizer que atualmente não são feitos o controle e a análise de dados nas instituições. Em verdade, defende-se o uso da tecnologia associada à análise de dados, como ferramenta inovadora e incrivelmente eficiente para compensar as dificuldades causadas pela dura crise que assola o Brasil. Um grande desafio, sem dúvidas.

6) Cultura de dados: ainda não aprendemos a lidar com dados.

Culturalmente, o brasileiro não foi ensinado a lidar com dados.

Somos o povo do argumento, da vivência e da experiência prática. Por vezes, confiamos muito na nossa intuição, no nosso "taco". O termo "Confia em mim que vai dar certo" é apenas um exercício de fé, embora seja usado (em muitas oportunidades) como uma certeza absoluta de que tudo dará certo.

Veja que a experiência não é algo desprezível. Muito pelo contrário. Ela é um elemento fundamental para a tomada de decisões. Mas, isoladamente, pode ser falha, já que pode estar sendo tomada uma decisão a partir de premissas equivocadas ou de uma visão incompleta dos elementos que a cerca.

É fato que nenhuma pessoa detém toda a experiência necessária: alguns têm mais, outros menos, mas nenhuma pessoa possui toda a experiência para a tomada de decisões (esbarra no limite cognitivo do ser humano). É justamente nesse vácuo que se introduz a cultura dos dados, a cultura da ciência de dados e as tecnologias disponíveis.

Trabalhar com dados é trabalhar cientificamente. Isso é ciência de dados.

7) Quantas oportunidades foram perdidas por acreditarmos apenas na nossa intuição?

O mindset de dados é um cultura, uma forma diferente de encarar e resolver os problemas.

Você já parou para refletir sobre quantas oportunidades foram perdidas por tomarmos decisões baseadas apenas na nossa intuição? Quantos projetos falharam simplesmente porque não havia uma estrutura de análise de dados para fornecer insights para a tomada de decisões?

Certamente eu, você e muitas outras pessoas já incorreram nesta falha.

Reitera-se: é humanamente impossível deter todos os dados, conceitos e experiências necessárias para a tomada de decisões que envolvam grandes organizações ou instituições (limite cognitivo do ser humano). Grandes volumes de dados tendem a se perder quando analisados linear ou superficialmente. Eis por que a ciência de dados pode ser uma ferramenta inovadora em grandes instituições.

8) O que é preciso para implementar uma área de data science em grandes instituições?

A infraestrutura de data science depende do tamanho e da amplitude do projeto que se pretenda implementar.

Serão necessários alguns profissionais multidisciplinares, que entendam o básico das áreas de negócio (direito), estatística e ciência da computação. Serão eles a darem o start ao projeto, bem como irão gerir todo o processo de introdução de pessoal e das tecnologias adequadas.

Os aludidos profissionais multidisciplinares não precisam ser os melhores programadores, os melhores estatísticos ou os maiores conhecedores do negócio. Eles devem saber mais de estatística do que um programador e mais de programação que um estatístico. Outrossim, devem saber mais da área de negócio (Direito) do que programadores e estatísticos. Assim, transitarão por todas as searas de conhecimento, permitindo reunir os melhores times e fazer o "meio de campo" entre as áreas.

Como se observa, a maior dificuldade na implementação da ciência de dados reside no fato de haver poucos profissionais multidisciplinares, prontos para implantar e implementar o projeto.

A chave do sucesso, portanto, não é ter um unicórnio (o profissional quase inexistente que englobe com profundidade todas essas áreas de conhecimento), mas um bom gestor de projetos que conheça com certa precisão os termos necessários para dialogar com todas as áreas e ser capaz de reunir todas as ferramentas indispensáveis ao sucesso do projeto de revolução tecnológica.

A infraestrutura necessária é um capítulo à parte. Dependerá do projeto e da engenharia envolvida. Não irei me atrever a tratar deste assunto em tão resumido artigo. Mais do que a infraestrutura, a implantação de uma nova cultura de dados depende da mudança do pensamento do mundo do Direito em geral (mindset de dados).

CONCLUSÃO

A tecnologia é aliada e a ciência de dados uma ferramenta incrível para o auxílio à tomada de decisões, fazendo com ela seja mais ágil, correta e efetiva.

Além disso, o uso da ciência de dados pode ser um fator revolucionário nas instituições de grande porte, na medida em que as decisões com suporte em dados que se relacionam entre si podem demonstrar que o gestor obteve insights que o exame de dados tradicional não seria capaz de gerar.

Dados que se relacionam entre si, associados ao uso de modelos estatísticos e algoritmos de análise preditiva podem gerar informações em tempo real, com maior profundidade e volume que números frios inseridos numa planilha de excel. Imagine quantos problemas de fluxo de informação podem ser resolvidos com tais ferramentas...

Acredite, a ciência de dados pode revolucionar uma instituição. Não por outra razão as maiores empresas do mundo já contam com equipes especializadas na área em cada um dos seus segmentos internos.

O ideal é começar pequeno e, aos poucos, ir aumentando as funcionalidades.

1) Parta de um problema concreto, faça associação entre os dados e gere insights para a tomada de decisões.

2) Crie ambientes de visualização (dashboards/paineis, gráficos) de dados em tempo real, facilitando o fluxo de informação entre os setores da instituição.

3) Organize e crie novas métricas que relacionem dados diversos entre si.

Em suma, ouse, inove!

Sobre o autor
Vitor Martins Dutra

Servidor Público do TRF4. MBA em Tecnologia. Especialista em Direito Previdenciário (UNIRITTER CANOAS/RS). Graduado em Direito (UNISINOS/RS). Certificado Scrum e Design Thinking. Técnico em Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUTRA, Vitor Martins. A cultura analítica no mundo jurídico.: a ciência de dados e a tecnologia podem (efetivamente) ser grandes aliadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5904, 31 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74602. Acesso em: 21 nov. 2024.

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