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O pequeno empresário prestador de serviços:

a proteção constitucional e a inconstitucionalidade da lei tributária

Agenda 28/10/2005 às 00:00

É inconstitucional a vedação da adesão do pequeno empresário que explora determinadas atividades ao regime tributário favorecido e diferenciado instituído pela Lei do Simples.

1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

            Sobre a tributação do pequeno empresário, a Constituição Federal (CF) estabelece as seguintes normas: a) a ordem econômica deve observar o princípio do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte (art. 170, IX); b) a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei (art. 179).

            Segundo a regra da Lei superior, nenhuma norma de lei especial ou geral pode ser incompatível com a norma constitucional. O consenso em relação a essa regra é generalizado e se expande para além das pessoas que militam na área jurídica. Trata-se de uma regra de estrutura, a qual determina relações de subordinação e coordenação entre as normas do sistema, no sentido de evitar o caos jurídico.

            A mencionada regra fixa um critério hierárquico, segundo o qual as normas constitucionais são superiores e se impõem como fundamento de validade das leis, decretos, atos declaratórios normativos, circulares etc.

            As normas constitucionais dos arts. 170, IX, e 179 estabelecem que as leis federais, estaduais, municipais ou distritais (normas inferiores) devem definir os conceitos de microempresário e empresário de pequeno porte e conceder-lhes tratamento favorecido e diferenciado, que implique a simplificação, eliminação ou redução de suas obrigações tributárias, previdenciárias, creditícias e administrativas.

            De acordo com a regra da lei superior, as normas constitucionais acima indicadas impõem duas situações jurídicas: a) impedem a edição de leis e de outros instrumentos normativos em sentido oposto aos direitos assegurados ao pequeno empresário na CF, sob pena de inconstitucionalidade; b) impõem aos órgãos legislativos o dever de editar leis as quais concedam ao pequeno empresário (microempresa e empresa de pequeno porte) tratamento tributário, previdenciário, creditício e administrativo favorecido e diferenciado.

            Assim, o princípio do tratamento tributário favorecido e diferenciado expressa o reconhecimento das desigualdades que existem entre grandes e pequenos empresários e, por isso, impõe ao órgão legislativo elaborador da lei tributária o dever de conferir tratamento favorecido e diferenciado ao pequeno empresário, para que este possa resistir no mercado competitivo da livre concorrência.

            Cabe também destacar outros dois princípios constitucionais os quais concorrem para a proteção do pequeno empresário: a) princípio da isonomia tributária: proíbe a instituição de atribuir tratamento desigual entre contribuintes que estejam na mesma situação jurídica, ou seja, todos os pequenos empresários devem receber o mesmo tratamento tributário (art. 150, II, da CF); b) princípio da capacidade contributiva: estabelece que o tributo deve ser graduado em conformidade com a capacidade econômica do contribuinte, ou seja, a carga tributária do pequeno empresário deve ser menor do que a do grande empresário (art. 145, § 1.º, da CF).

            As normas legais em desconformidade com quaisquer desses princípios serão consideradas inconstitucionais.


2. A LEI FEDERAL

            No âmbito da competência tributária da União, a Lei n. 9.317/96 (Lei do Simples), cumprindo o disposto nas normas constitucionais: a) institui o regime tributário favorecido e diferenciado para o pequeno empresário; b) define microempresa e empresa de pequeno porte pelo critério da receita bruta anual; c) proíbe os pequenos empresários prestadores de serviços de optar pelo regime tributário favorecido e diferenciado que a lei institui.

            O regime tributário instituído pela Lei do Simples é um sistema pelo qual o pequeno empresário enquadrado na definição de microempresa ou empresa de pequeno porte pode optar por pagar mensalmente os impostos e contribuições federais de forma unificada, numa mesma data e em uma única guia de recolhimento.

            Sobre a receita bruta mensal do pequeno empresário definido como microempresa incide alíquota progressiva que varia de 3% a 5%, e sobre a receita bruta do pequeno empresário definido como empresa de pequeno porte incide alíquota de 5,4% a 8,6%. Para os pequenos empresários contribuintes do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) as alíquotas são acrescidas de 0,5%.

            A opção pelo regime tributário instituído pela Lei do Simples implica o pagamento mensal unificado dos seguintes impostos e contribuições federais: a) Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ); b) Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep); c) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); d) Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e) Contribuição para a Seguridade Social (INSS); f) Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

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            2.1. A inconstitucionalidade na Lei do Simples

            O art. 9.º da Lei do Simples é inconstitucional. Ele estabelece que, independentemente da receita bruta anual, não pode optar pelo regime tributário do Simples a pessoa jurídica que: a) dedique-se à compra e à venda, ao loteamento, à incorporação ou à construção, à demolição, à reforma, à ampliação de imóveis ou a outras benfeitorias agregadas ao solo ou subsolo; b) realize operações relativas à locação ou administração de imóveis, armazenamento e depósito de produtos de terceiros, propaganda e publicidade, factoring, prestação de serviços de vigilância, limpeza, conservação e locação de mão-de-obra; c) preste serviços de corretor, representante comercial, despachante, ator, empresário, diretor ou produtor de espetáculos, cantor, músico, dançarino, médico, dentista, enfermeiro, veterinário, engenheiro, arquiteto, físico, químico, economista, contador, auditor, consultor, estatístico, administrador, programador, analista de sistema, advogado, psicólogo, professor, jornalista, publicitário, fisicultor, ou assemelhados, e de qualquer outra atividade cujo exercício dependa de habilitação profissional legalmente exigida (art. 9.º, V, XII, XIII, XIX).

            O pequeno empresário (microempresa ou empresa de pequeno porte) que explora qualquer das atividades acima transcritas está, portanto, proibido de aderir ou optar pelo regime tributário favorecido e diferenciado instituído pela Lei do Simples, motivo pelo qual recebe o mesmo tratamento tributário que as leis concedem aos grandes empresários.

            Essa proibição é inconstitucional, porque não está em conformidade com os princípios estabelecidos na CF (tratamento favorecido, isonomia e capacidade contributiva).

            O mencionado art. 9.º restringe de forma acentuada o real alcance e sentido das expressões microempresa e empresa de pequeno porte estabelecidas nos arts. 170, IX, e 179 da CF. O sentido exato dessas expressões está vinculado aos conceitos de empresa e empresário que a Lei do Simples desconsidera ou considera de modo inadequado.

            Essa norma, portanto, rompe com a regra estrutural da lei superior e, com isso, instaura a desordem, tornando o sistema jurídico instável e caótico. Essa situação tem provocado imprevisibilidade e incerteza em relação às decisões do Poder Judiciário.

            2.2. A ampliação da inconstitucionalidade

            O Coordenador-Geral de Arrecadação do INSS, diante do vazio semântico da expressão outras benfeitorias constante no art. 9.º da Lei do Simples, resolveu declarar, mediante Circular n. 6/97, que também estão proibidos de optar pelo Simples os pequenos empresários os quais exercem atividades de pintura, carpintaria, instalação de partes elétricas e hidráulicas, de aplicação de azulejos, de tacos e congêneres.

            Ademais, existe uma tendência, na Receita Federal, de ampliar o real alcance e sentido da expressão serviços assemelhados. Assim, tem sido negada a opção para o pequeno empresário que exerce qualquer atividade de ensino ou treinamento (como auto-escola, escola de dança, instrução de natação, ensino de idiomas, academia de ginástica), por assemelhar-se à de professor. A opção também tem sido negada para o pequeno empresário o qual explora agência de viagens, agência de turismo, casa lotérica ou atividade franqueada dos Correios, por assemelhar-se à de corretor ou representante comercial.


3. O SIGNIFICADO DE EMPRESA E EMPRESÁRIO

            Empresa

é atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, tendo em vista a obtenção de lucros. Empresário é a pessoa jurídica (sociedade empresária) ou física (empresário individual) que explora uma empresa. Esses conceitos são extraídos da própria CF no Capítulo que dispõe sobre os princípios gerais da atividade econômica (arts. 170 a 181).

            As definições acima mencionadas, entretanto, só se tornaram efetivamente esclarecidas no Código Civil de 2002, o qual, em sintonia com a CF, absorve a teoria da empresa e unifica o regime jurídico da exploração da atividade econômica.

            Na vigência da legislação anterior (Código Civil de 1916 e Código Comercial de 1850), prevalecia a teoria dos atos de comércio, motivo pelo qual a atividade econômica era subdividida em civil e comercial. A atividade comercial consistia na prática de atos de comércio (comércio, indústria e algumas atividades de prestação de serviços), a pessoa física que explorava os atos de comércio era denominada comerciante individual e a pessoa jurídica, sociedade comercial. A atividade civil consistia em prestação de serviços; a pessoa física que explorava economicamente atividade civil era denominada autônoma e a pessoa jurídica, sociedade civil.

            Com o advento do Código Civil de 2002, a maioria das sociedades civis passa a compor, juntamente com as sociedades comerciais, o que hoje denominam-se sociedades empresárias, e a maioria dos autônomos passa a compor, juntamente com o comerciante individual, o que se denomina empresário individual.

            Em síntese, portanto, a expressão empresa designa a atividade de produção ou circulação de bens ou de serviços e empresário é a pessoa (física ou jurídica) que explora a empresa.

            3.1. O significado de

microempresa e empresa de pequeno porte na Constituição Federal

            O art. 179 da CF estabelece:

            "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei" (grifo nosso).

            Como se nota, o tratamento jurídico diferenciado a ser conferido pela lei deve consistir na simplificação, eliminação ou redução das obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias.

            O titular (sujeito) de direitos e obrigações é sempre a pessoa (física ou jurídica), jamais a atividade. As expressões microempresas e empresa de pequeno porte do art. 179 acima transcrito designam, portanto, pessoas (microempresário e empresário de pequeno porte) que exploram atividades empresariais (microempresa e empresa de pequeno porte).

            A par dessas observações, fixa-se o seguinte entendimento: microempresa e empresa de pequeno porte consistem em todas as atividades empresariais cujo volume da receita auferida não lhes confere o status de médias ou grandes empresas, motivo pelo qual a CF garante ao microempresário e ao empresário de pequeno porte redução ou eliminação de suas obrigações tributárias.

            É preciso esclarecer que, quando foi promulgada a CF (1988), ainda estava em vigor o Código Comercial de 1850. Esse Código, como dito, absorve a teoria dos atos de comércio e, com ela, o conceito de comerciante, que alcança apenas a sociedade comercial e o comerciante individual. O conceito de empresário, formulado pela teoria da empresa, estava obnubilado pelo de comerciante, o qual é restritivo por excluir as sociedades civis prestadoras de serviços organizadas em empresa e os autônomos e profissionais liberais, cuja atividade constitui elemento de empresa.

            A finalidade dos arts. 170 e 179 da CF foi, justamente, romper com a teoria dos atos de comércio e introduzir no Direito Positivo brasileiro a teoria da empresa, motivo pelo qual são utilizadas as expressões microempresa e empresa de pequeno porte.

            Desse modo, os direitos contemplados no art. 179 da CF são assegurados a todos os microempresários e empresários de pequeno porte, independentemente da atividade empresarial que exploram. O critério que o órgão legislativo está autorizado a utilizar para definir e, desse modo, distinguir o pequeno empresário (o qual explora microempresa ou empresa de pequeno porte) do grande empresário (que explora média ou grande empresa) é aquele que toma como base o volume da receita auferida.

            A Lei do Simples, ao retirar do pequeno empresário que explora atividade empresarial de prestação de serviços os direitos contemplados na CF, burla a finalidade da norma constitucional, porque restringe o seu real alcance e sentido. Trata-se de um mero expediente inconstitucional que, infelizmente, tem merecido o apoio de alguns setores do Poder Judiciário.

            3.2. A definição de

microempresa e empresa de pequeno porte na lei

            O art. 2.º da Lei n. 9.317/96 estabelece:

            "Para os fins do disposto nesta Lei considera-se:

            I – microempresa, a pessoa jurídica que tenha auferido, no ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 120.000,00;

            II – empresa de pequeno porte, a pessoa jurídica que tenha auferido, no ano-calendário, receita bruta superior a R$ 120.000,00 e igual ou inferior a R$ 1.200.000,00" (grifo nosso).

            Nesse dispositivo legal, dois aspectos merecem ser destacados: a) o critério da receita bruta; b) o uso da expressão pessoa jurídica.

            3.2.1. O critério da receita bruta anual

            É perfeitamente compatível com a norma constitucional definir microempresa e empresa de pequeno porte com base na receita auferida pelo empresário. Nesse aspecto, a norma em exame está em perfeita sintonia com a diretriz constitucional.

            3.2.2. O uso da expressão pessoa jurídica

            A Lei reconhece que, na CF, as expressões microempresa e empresa de pequeno porte designam pessoas. Ao estabelecer, no entanto, que são pessoas jurídicas, a Lei introduz duas imprecisões, uma extensiva e a outra restritiva, cujos limites precisam ser demarcados.

            A – A imprecisão extensiva:

Pessoa jurídica é uma expressão genérica, que abrange pessoas jurídicas de Direito Público (externo e interno) e pessoas jurídicas de Direito Privado e, portanto, é imprestável para definir as expressões microempresa e empresa de pequeno porte do texto constitucional. É óbvio que a expressão pessoa jurídica no texto da Lei do Simples não abrange as pessoas jurídicas de Direito Público (organismos internacionais, União, Estados, Municípios, Distrito Federal, autarquias e fundações públicas). A expressão também não abrange as fundações, associações, sociedades cooperativas e sociedades simples, porque essas pessoas jurídicas de Direito Privado não exploram uma empresa, ou seja, não são empresárias. Dessa forma, a expressão pessoa jurídica utilizada pela Lei do Simples na definição de microempresa e empresa de pequeno porte refere-se, apenas, às sociedades empresariais, pessoas jurídicas que exploram uma empresa.

            B – Imprecisão restritiva:

além da pessoa jurídica (sociedade empresária), a empresa também pode ser explorada por pessoa física (empresário individual). A CF não autoriza qualquer restrição que implique excluir o empresário individual (pessoa física) dos direitos contemplados no art. 179. Por esses motivos, a expressão pessoa jurídica utilizada no art. 2.º da Lei do Simples deve ser entendida como empresário, abrangendo, portanto, as sociedades empresárias e o empresário individual.

            3.2.3. Razões da imprecisão

            Quando foi promulgada a Lei do Simples (1996), ainda estava em vigor o Código Comercial de 1850 e, com ele, o conceito de comerciante (sociedade comercial e comerciante individual) elaborado pela teoria dos atos de comércio. Dado que a CF rompe com a teoria dos atos de comércio e introduz a teoria da empresa, a Lei do Simples não utiliza a expressão comerciante para definir microempresa e empresa de pequeno porte, mas, sim, a expressão pessoa jurídica. Embora não seja empregado o termo comerciante, a referida Lei reproduz o mesmo conceito. A análise das atividades excluídas demonstra esse fenômeno, pois não há, por exemplo, exclusões de atividades consideradas atos de comércio (indústria e comércio). As exclusões concentram-se nas atividades de prestação de serviços que, pela teoria dos atos de comércio, eram consideradas atividades civis.

            Ocorre que a CF não recepciona a teoria dos atos de comércio, portanto não distingue atividade comercial e atividade civil. A CF absorve a teoria da empresa, motivo pelo qual estabelece os princípios gerais da atividade econômica e define atividade econômica como empresa, ou seja, "produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços" (art. 173, § 1.º).


4. CONCLUSÃO

            São inconstitucionais as normas da Lei do Simples que proíbem os pequenos empresários prestadores de serviços com receita bruta anual igual ou inferior a R$ 1.200.000,00 de optar pelo regime tributário favorecido e diferenciado instituído na citada lei. A CF não autoriza essa discriminação, e as leis estaduais e municipais que tratam do tema apresentam a mesma inconstitucionalidade.

            Diante do exposto, os movimentos os quais clamam redução da carga tributária dos pequenos empresários deveriam questionar não apenas as medidas provisórias mas também as leis já aprovadas pelo Poder Legislativo nos âmbitos federal, estadual e municipal e que encontram amparo nas decisões judiciais. Tanto o Poder Executivo como o Legislativo e o Judiciário têm uma parcela de responsabilidade nesse assunto que aparenta ser apenas um problema do primeiro.

Sobre o autor
Olney Queiroz Assis

doutor e mestre em Direito pela PUC/SP, professor da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ASSIS, Olney Queiroz. O pequeno empresário prestador de serviços:: a proteção constitucional e a inconstitucionalidade da lei tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 847, 28 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7464. Acesso em: 23 nov. 2024.

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Texto originalmente publicado no informativo eletrônico da Comunidade Jurídica Damásio de Jesus (para receber, cadastre-se no site www.damasio.com.br).

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