Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Algumas questões de direitos humanos

Exibindo página 2 de 2
Agenda 01/10/1999 às 00:00

A PROBLEMÁTICA HODIERNA DOS DIREITOS HUMANOS:

O problema hodierno no tangente à questão dos Direitos Humanos não perpassa a problemática da sua afirmação jurídica ou fundamentação filosófica. Ora, os mesmos encontram-se efetivamente consagrados tanto nas constituições dos Estados, como nas declarações internacionais de direitos. Com efeito, verifica-se factualmente uma latente inércia política dos Direitos Humanos ante as necessidades sociais. A inexeqüibilidade dos mesmos é fruto da falta de mecanismos políticos aptos à sua concretude.

a) A NOÇÃO DE ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO:

Tal inércia política decorre da própria estruturação, no caso brasileiro, do princípio do Estado Democrático de Direito, que, na acepção kantiana, resulta da chamada "liberdade positiva", garantindo a coexistência das liberdades externas. "A obediência à lei consagrada no pacto mais do que a conseqüência de uma renúncia, é o reconhecimento de um dever, a condição da liberdade, a homenagem prestada à nossa humanidade mais verdadeira e profunda" (SOLARI, Gioele apud CICCO, Cláudio de, Op. Cit, p. 184.). É forçoso elucidar o conceito de igualdade, que, sob o prisma da concepção kantiana, postulada pela liberdade, alude à igualdade de oportunidades, a igualdade no ponto de partida, quedando o progresso de cada um na dependência do seu esforço individual. Kant tem uma idéia de Estado Democrático de Direito peculiar com relação às idéias dos demais filósofos do Liberalismo, porquanto contempla o assistencialismo estatal.

Reza o art. 1º, parágrafo primeiro, da Constituição Federal de 1988: "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

Na prática, o preceito em epígrafe constitui-se em mera retórica tendo em vista que a não concretização do Estado Democrático de Direito se dá a partir de seu contexto estrutural na medida em que ocorre o vício de consentimento da participação popular na constituição do poder, que, consoante afirmou Montesquieu, limita o próprio poder exercido pelo Estado, qual seja, o poder legitimado pelos interesses democráticos.

Com efeito, os Direitos Humanos imprescindem do princípio do Estado Democrático de Direito para a sua eficacialidade prática, consistindo em fundamento para a sua consolidação. Daí a relação de interdependência entre os conceitos de Direitos Humanos, democracia e paz.

Forma-se, por conseguinte, um círculo vicioso. A população não detém a devida formação educacional e política. Daí o fato de não exercer o seu poder político, delegando-o a poderosos que não têm interesse em abdicar do seu poder de dominação perante o Estado e que, por esse motivo, não provêm a população de educação, saúde, habitação. Vê-se que o princípio da dignidade da pessoa humana não é aplicado em detrimento de pressões ideológicas, políticas, econômicas e sociais, com o escopo de manter o status quo.

Hannah Arendt aponta o direito à informação como condição sine qua non para a manutenção de um espaço público democrático, sob pena da reemergência de um novo estado totalitário de natureza, a saber, situações em que os homens se tornam supérfluos e sem lugar no mundo comum. "Daí a importância da transparência do público por meio do direito ex parte populi à informação, ligado à democracia, como forma de vida e governo, que requer uma cidadania apta a avaliar o que se passa na res publica para dela poder participar. (...) A transparência do público através de uma informação honesta e precisa é, portanto, condição para o juízo e a ação numa autêntica comunidade política" (LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: A Contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados. São Paulo: IEA/USP, 1997. v. 11. n. 30.).


OS DIREITOS HUMANOS E A CONSTITUIÇÃO
FEDERAL(DIREITOS FUNDAMENTAIS):

a) A CONSTITUIÇÃO COMO PARADIGMA PARA A FORMAÇÃO DE UM ORDENAMENTO JURÍDICO QUE SE COADUNE COM OS DIREITOS HUMANOS:

A Constituição Federal de 1988 é inovadora ao dar ênfase aos Direitos Fundamentais, elencados mormente no art. 5º, com as respectivas Garantias Constitucionais. Deve, mediante o seu cumprimento, servir de mecanismo de afirmação dos Direitos Humanos, assegurando a inviolabilidade dos mesmos.

Conforme os teóricos da democracia, no Estado Democrático, toda ordem estatal, todas as suas autoridades e decisões, inclusive as legais, devem estar submetidas aos Direitos Humanos. Nesse sentido, a democracia exige uma normalidade, pois fora dela, não se pode falar em garantia de direitos. Pressupõe um ambiente estruturado com base numa racionalidade legal, dotado de instituições jurídicas que respondam a uma ética própria do espaço público. Toda vez que se verificar ruptura da normalidade, os direitos humanos estarão sendo postos em risco.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

b) DIREITOS FUNDAMENTAIS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS:

          Prima facie, faz-se mister distinguir com precisão as expressões "Direitos Humanos" e "Direitos Fundamentais", calhando por uma maior objetividade na explicitação a que se propõe o presente texto. Destarte, tem-se a terminologia "Direitos Humanos", mais utilizada entre os anglo-saxões e latinos, como acepção impregnada de um caráter eminentemente histórico; por sua vez, a expressão "Direitos Fundamentais", de origem germânica, destaca-se por sua maior concretude e materialidade, qualificando-se por seu menor desgaste ante a sociedade política.

Os Direitos Fundamentais almejam, consoante Paulo Bonavides, "criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade da pessoa humana" (BONAVIDES, Paulo, Op. Cit, p. 514.). Consistem os mesmos naqueles direitos que expressam e contêm as condições básicas da pessoa humana, ou seja, qualquer indivíduo, de per si, é portador de tais direitos, o que fundamentalmente implica numa distinção entre os conceitos de "pessoa humana" e "cidadão".

Nesse diapasão, elucida a doutrina jusnaturalista que tais direitos são fundamentais porque cabem ao homem enquanto tal e não dependem do beneplácito do soberano. Outrossim, em recente palestra proferida no "XXXIIIº Encontro Nacional dos Estudantes de Direito", proclamou o Professor Dalmo Dallari que o verdadeiro direito é aquele inerente à condição humana e não o direito positivo, o qual considera ser uma mera degradação da idéia de direito por parte da classe dominante, com o escopo de ludibriar o devido entendimento daqueles indivíduos menos esclarecidos, a fim de manter-se no poder segundo seus interesses. De conseguinte, deve-se reconhecer os Direitos Fundamentais como supra-estatais, vez que são inerentes à condição humana, pressupondo sua legitimidade face às legislações positivas.

Salienta-se, por oportuno, a distinção ventilada por Norberto Bobbio acerca dos conceitos de legalidade e legitimidade. O Direito sob o prisma da legalidade reporta-se ao "direito que se tem"; conquanto a acepção da legitimidade alude ao "direito que se gostaria de ter", a saber, um direito racional e crítico, voltado para a satisfação material e espiritual da pessoa humana.

São Direitos Fundamentais o direito à vida, à liberdade, à participação política.

Inobstante a relevância da condição humana como substrato dos Direitos Fundamentais, esta deve ser considerada, abstratamente, em sua essência, estando passível de evoluções ao longo da história. Nesse sentido, faz-se alusão à assertiva propugnada por Heráclito, pensador da remota filosofia pré-socrática, mas que se faz pertinente até os tempos hodiernos: "Tudo flui." Assim, busca-se incessantemente a adaptação do conceito em foco, com o fito de propiciar a realização material do mesmo ante as transformações sociais no percurso da história. Portanto, conclui-se que os Direitos Fundamentais são igualmente fruto de conquistas sociais importantes cujo intento consiste na materialização da liberdade e da dignidade humana.

Conforme explicitado supra, a problemática dos direitos fundamentais não tange à sua fundamentação histórico-filosófica, já consagrada na doutrina, nem à sua enunciação por parte do Direito Positivo, tendo em vista que os mesmos encontram-se contemplados em nível universal e estatal, respectivamente nas declarações internacionais assinadas por diversos países, bem como nas Constituições dos Estados.

Infere-se deste contexto que a questão de maior relevância no tocante aos Direitos Fundamentais, hodiernamente, encontra arrimo no carecimento de eficácia política na aplicação material dos mesmos posto que a sua violação é fato concreto, passível de uma profunda reflexão na sociedade organizada.

Na Constituição Federal de 1988, encontram-se os direitos e garantias fundamentais versados no Título II, consagrado ao tema, e no qual inseriu-se o art. 5º, indubitavelmente o de maior importância na Lex Mater e que elenca uma série de direitos e garantias consignadas à população em geral. Reza o referido artigo: "Art. 5º, caput: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Ante a falta de interesse político quanto à exeqüibilidade dos Direitos Fundamentais, a mera enunciação dos mesmos na Carta Constitucional tornar-se-ia inerte. Conseqüentemente, faz-se mister a inclusão de um sistema de garantias constitucionais que viabilize o cumprimento de suas normas.

Doutrina o Professor Paulo Lopo Saraiva: "A garantia constitucional é um mecanismo jurídico para a concretização dos direitos constitucionais" (SARAIVA, Paulo Lopo. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Acadêmica, 1995. p. 48.). O Direito só é válido se dispuser de um instrumento para a sua concretização. Coaduna-se a essa compreensão a lição do Professor Friedrich Müller, ao asseverar que o Direito não termina na norma, mas nela começa. Tal é o princípio norteador de um sistema constitucional concreto e eficaz, no qual os indivíduos usufruem materialmente daqueles direitos intrínsecos à sua condição enquanto "homens".

O termo garantia, desvinculado de qualquer acepção política, deriva de garant, do alemão gewaehren-gewaehr-leistung, cujo significado é o de sicherstellung, a saber, de uma posição consolidadora da segurança e que põe cobro à incerteza e à fragilidade (QUINTANA, Geleotti e Linhares apud BONAVIDES, Paulo, Op. Cit., p. 481.). "A garantia - meio de defesa - se coloca então diante do direito, mas com este não se deve confundir. Ora, esse erro de confundir direitos e garantias (...) tem sido reprovado pela boa doutrina, que separa os dois institutos" (BONAVIDES, Op. Cit. p. 482.).

Vem a escoimar a confusão doutrinária instaurada as lições de Rui Barbosa e Jorge Miranda, ora citados por Paulo Bonavides: "A confusão, que irrefletidamente se faz muitas vezes entre direitos e garantias, desvia-se sensivelmente do rigor científico, que deve presidir à interpretação dos textos, e adultera o sentido natural das palavras. Direito "é a faculdade reconhecida, natural, ou legal, de praticar ou não praticar certos atos" (BARBOSA, Rui apud idem ibidem, p. 483-484.). Garantia ou segurança de um direito, é o requisito da legalidade, que o defende contra a ameaça de certas classes de atentados de ocorrência mais ou menos fácil" (MIRANDA, Jorge apud idem ibidem.).

Eis uma breve explanação acerca das características das garantias constitucionais de maior importância:

Oriundo do Direito Inglês, o Habeas Corpus tutela o chamado direito de ir e vir. Limita-se à tutela da liberdade de locomoção conforme compila José Afonso da Silva: "É, pois, um remédio destinado a tutelar o direito de liberdade de locomoção, liberdade de ir e vir, parar e ficar. Tem natureza de ação constitucional penal" (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 424.).

O Mandado de Segurança tutela o direito líquido e certo, ameaçado por abuso de autoridade pública. A Norma Sobranceira consagra dois modelos de Mandado de Segurança, o individual e o coletivo. "O mandado de segurança é, assim, um remédio constitucional, com natureza de ação civil, posto à disposição de titulares de direito líquido e certo, lesado ou ameaçado por lesão, por ato ou omissão de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público" (Idem ibidem, p. 425-426.).

O Mandado de Segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, bem como por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses dos seus membros ou associados. O conceito de Mandado de Segurança coletivo funda-se substancialmente no elemento institucional, posto que atribui legitimação processual a determinadas instituições; e no elemento objetivo, mencionando-se a defesa de interesses em nível coletivo.

O Mandado de Injunção é impetrado em casos de norma regulamentadora acerca do exercício de alguns direitos e liberdades constitucionais e de prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. "Constitui um remédio ou ação constitucional posto à disposição de quem se considere titular de qualquer daqueles direitos, liberdades ou prerrogativas inviáveis por falta de norma regulamentadora exigida ou suposta pela Constituição" (Idem ibidem, p. 426.).

A Ação Popular almeja a proteção do patrimônio público, podendo ser ajuizada por qualquer cidadão. "Toda ação popular consiste na possibilidade de qualquer membro da coletividade, com maior ou menor amplitude, invocar a tutela jurídica a interesses coletivos, (...) constitui manifestação direta da soberania popular consubstanciada no art. 1º, parágrafo único, da Constituição" (Idem ibidem, p. 439.).

O Devido Processo Legal, a Ampla Defesa e o Contraditório figuram como garantias constitucionais processuais, cujo ocaso é a pacificação social com Justiça.

Face a um sistema tão avançado de garantias constitucionais, é de se indagar a razão objetiva da ineficacialidade das mesmas, ensejando na impossibilidade de acesso da totalidade dos indivíduos em sociedade aos Direitos Fundamentais.

Tal ineficacialidade prática perpassa alguns problemas próprios ao Direito Brasileiro, conforme exemplos que se seguem.

No que pertine à problemática hermenêutica, alude-se máxime à falta de uma compreensão devida por grande parcela do Poder Judiciário acerca da ideologia preceituada pelos Direitos Fundamentais, cujos princípios regem a Norma Ápice de todo o ordenamento jurídico. De conseguinte, deve a referida ideologia afigurar-se como supedâneo para o arcabouço jurídico em sua totalidade, isto é, todas as leis infraconstitucionais.

A questão processual, igualmente arraigada ao ordenamento jurídico brasileiro, põe em cheque o escopo maior do Direito, a saber, a pacificação social com Justiça. No caso do direito pátrio, a processualística assumiu excessividade tamanha, chegando a se sobrepor ao direito subjetivo a ser tutelado.

Não é de se olvidar, por fim, o legalismo exorbitante, que, em detrimento da Justiça, leva os indivíduos a perderem muitas vezes a tutela de seus direitos, até por ignorância da lei. Far-se-ia interessante que os magistrados, sob a égide da ideologia dos direitos fundamentais, ponderassem melhor acerca de cada caso concreto, proferindo decisões que prezassem pela concretização material desses direitos.


BIBLIOGRAFIA

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

BRASIL. Ministério da Justiça. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília, 1996.

CICCO, Cláudio de. Kant e o Estado de Direito: O Problema do fundamento da Cidadania. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995. pp. 175-188.

COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos Direitos Humanos. Estudos Avançados. São Paulo., n. 2, 1997. Coleção Documentos.

CRETELLA JR, José. Curso de Filosofia do Direito. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1995.

LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: A contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados, São Paulo, v. 11, n. 30, pp. 55-65, mai-ago 1997.

LITRENTO, Oliveiros. Curso de Filosofia do Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

MELO, José Tarcízio de Almeida. Direito Constitucional Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1997.

MORAIS, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 1997.

NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

PNUD/IPEA. Relatório sobre o Desenvolvimento Humano no Brasil. Brasília: 1996.

pp. 139-145.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6 ed. Coimbra: Arménio Amado- Editor, Sucessor, 1979.

REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

SARAIVA, Paulo Lopo. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Acadêmica, 1995.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

Sobre o autor
Marco Bruno Miranda Clementino

acadêmico de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Algumas questões de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75. Acesso em: 2 nov. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!