As considerações que exporemos aqui não são, à evidência, críticas ao Estatuto do Desarmamento que, por sinal, tem sido motivo de polêmicas, desde a posse deste governo. Mas motivo de reflexão no que concerne à aplicação in concreto, do art. 16 e dois de seus incisos constantes do parágrafo único. O referido artigo, parágrafo e incisos, inseridos em “Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”, determina o seguinte:
Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito
Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I - suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;
II - modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;
III - possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
IV - portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;
V - vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente; e
VI - produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.
O enfoque destas considerações centra-se nos incisos I e IV do parágrafo único do art. 16. Isso porque, como é sabido, há juízes que seguem, em suas decisões, à risca, o que determina a lei, indiferente totalmente às peculiaridades da ação do agente, da sua personalidade, de seus antecedentes... e há outros que, diante do fato concreto, consideram as nuances mencionadas, antes de qualquer decisão.
E, a nosso ver, aí reside a injustiça. Já houve decisões divergentes em relação a casos análogos. Numa vara, o cidadão indiciado no inciso IV, do parágrafo único do art. 16, teve sua liberdade cessada, em razão de condenação por 4 anos de reclusão, mesmo sendo réu primário, e a arma em questão não pertencente a ele, mas a alguém da família que havia falecido e a deixado para quem se predispusesse a ficar com ela. O cidadão pagou pela posse! Noutra vara, situação coincidentemente idêntica, o cidadão foi condenado a 3 anos, e como era réu primário, teve sua pena convertida em restritiva de direito. O juiz considerou, pois, o caso concretamente. E na audiência de custódia desses mesmos casos, também houve contrassenso: um teve sua prisão preventiva decretada e o outro, o juiz, como foi dito, considerou os antecedentes do indiciado e concedeu liberdade provisória, sob fiança. Dois pesos, duas medidas.
Observemos o que rezam os dois incisos enfocados:
I - suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;
IV - portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;
Primeiramente, aprendemos em nossas lições de Língua Portuguesa que a utilização do infinitivo de verbos define a ação sem a informação de número, pessoa ou tempo. Logo, são verbos cujas formas expressam ação de forma genérica, sem entrar em particularidades das circunstâncias de cada ação. É denominada de “formas não pessoais dos verbos” (assim como o particípio e o gerúndio).
A gramática de nosso idioma demonstra que verbo no infinitivo, além da própria função de verbo, pode atuar, de acordo com o contexto, por exemplo, como sujeito em uma oração (Beber significa direção perigosa!); ou como complemento nominal, ligado a adjetivo (Ordem difícil de obedecer!) além de outras, como advérbio, complemento circunstancial etc.
Constatamos, pois, que os incisos I e IV trazem verbos no infinitivo: suprimir, alterar, portar, possuir, adquirir, transportar, fornecer... ou seja, expressam as ações consubstanciadas nesses verbos de forma genérica, sem individualização.
Conquanto o infinitivo generalize a ação, a interpretação do inciso I permite subentender que o agente praticante da ação de suprimir ou de alterar a marca, numeração ou qualquer sinal de identificação da arma de fogo ou artefato estará sujeito às penas do art. 16, caput, - 3 a 6 anos de reclusão e multa. Já o inciso II, baste que o agente porte, possua, adquira, transporte ou forneça arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, para que seja condenado.
Aí vem o busílis: supostamente, cidadão é réu primário, folha de antecedentes impecável, o pai, por exemplo, ex-policial dos anos 60 - quando não havia legislação específica como a do Estatuto do Desarmamento - adquirira arma já raspada, e viesse a falecer e em meio a seus pertences, lá estaria a arma com identificação raspada. Um filho resolve guardar a arma do pai, como lembrança. Esse filho é administrador de fazenda; e para citarmos situação hipotética, passível de ocorrer, meliantes atacam a fazenda, a fim de efetuar roubo de gado. Policiais são chamados para atender a ocorrência e descobrem a referida arma raspada dentro da residência do administrador e dão voz de prisão a ele, em razão de posse ilegal de arma e raspada O cidadão explica que a arma raspada pertencia ao pai, falecido, e ele a preservava, tanto que estava dentro da casa, sem nunca ter sido usada.
Contudo, é preso e enquadrado no inciso II do art. 16 do Estatuto do Desarmamento. Um juiz que atua severamente, restringindo-se às letras frias da lei, condena-o.
Indagamos: é justo? Houve justiça? Acreditamos que não. Cada caso é cada caso! A severidade da lei é necessária, mas também necessária é a atenção dos juízes para cada caso concreto. O cidadão do exemplo nunca pôs em risco a integridade física de ninguém. Simplesmente por possuir arma em casa, raspada, que pertencia comprovadamente ao pai, é perseguido e condenado pelo Estado? Qual foi a potencialidade ofensiva dessa posse?
Se fosse enquadrado no inciso I, deveria ser absolvido. Não fora ele quem suprimira ou alterara a identificação da arma. Já a recebera assim e provara na ação. Por isso, comprovadamente – é obvio – quando o cidadão demonstrar que uma arma raspada jamais ofereceu perigo a alguém, é réu primário, antecedentes limpos, que seja exemplarmente recolhida a arma, para destruição dela, mas não condenar o cidadão a ir para a prisão por esse motivo. Que haja revisão dessa pena. Tal condenação com privação da liberdade revolta o cidadão de bem, réu primário, e o coloca, aí sim, em situação de perigo dentro de uma penitenciária. Há casos e casos. Há juízes e juízes. Mas a lei para aqueles magistrados que a seguem cegamente deveria trazer algo em seu bojo para proteger esse tipo de cidadão que demos como exemplo. É preciso que haja alguma alteração nela para contemplar esses casos a que nos reportamos hipoteticamente. Mas que ocorre na realidade forense.