A legalização do aborto como um direito humano
*tradução por Matheus Maciel
Mulheres de todos os lugares, de todas as condições e de todas crenças já experimentaram métodos abortivos para interromper uma a gravidez indesejada. Se trata de uma vontade do corpo que é exclusivamente de responsabilidade das próprias mulheres, embora os constrangimentos que muitas sofreram sejam habituais, obrigando-as a levar adiante uma gravidez indesejadas e forçadas a dar a luz.
Nosso Direito [Direito Argentino – Nota do Tradutor], como o de quase todas as sociedades ocidentais, tipificou-se como crime o aborto, embora no nosso caso, ao contrário de outros países latino-americanos, alguns aspectos divergentes da moralidade religiosa fossem contemplados. A reforma que deu origem ao art. 86 da Lei 23077 descriminalizou o aborto para os casos em que havia risco com objetivo de "evitar um perigo para a vida ou a saúde da mãe" e "se a gravidez vem de um estupro ou um atentado cometido a uma mulher com problemas mentais”, apesar de algumas hesitações sobre a interpretação da norma, desde a decisão do Supremo Tribunal Federal [Argentino N.T.] (2012) a interpretação de que o aborto não é punível quando a gravidez é o produto de uma violação foi firmemente estabelecida.
Contra o Direito Penal e contra a doutrina da Igreja, as mulheres argentinas decidiram abortar para acabar com o sofrimento de não poder assumir o que lhes foi imposto como fatalidade, como tributo que tiveram que pagar por terem relações sexuais. Surgiram idéias contraditórias sobre a "natureza" das mulheres no século XIX, já que boa parte do pensamento médico e psiquiátrico acreditava que elas tinham apenas sensibilidade sexual, enquanto outra parte da literatura alertava sobre as formas carnívoras que sua sexualidade descontrolada poderia adotar.
Um conjunto complexo de valores e novos sentimentos levou as mulheres a não aceitarem se comportar como máquinas de parir. Entre as novas sensibilidades não está só o desejo de mais autonomia, mas também o desejo de escapar da dor insensata da mortalidade das crianças pequenas e a idéia de que os filhos vivessem melhor. Embora muitas mulheres tenham vivido sua sexualidade com maior liberdade, foi graças à enorme renovação do pensamento feminista na segunda metade do século passado que o desejo sexual das mulheres foi reivindicado como um direito fundamental.
É essencial admitir que em nossa sociedade o aborto obteve longa legitimidade, como um contra-espelho à ilegalidade, porque não é possível considerar a chamada "transição demográfica" sem a interrupção voluntária da gravidez a partir do final do século XIX.
Como é possível obter uma curva descendente da taxa de natalidade em nosso país sem pensar em intervenções abortivas? Pense na falibilidade de todos os métodos contraceptivos, começando com o intercurso "interruptus", a técnica mais usada durante a maior parte do século XX e responsável por um grande número de gravidez.
Sendo assim, desde o início do século passado, diante da ineficácia dos métodos contraceptivos, as mulheres optaram por interromper gravidezes problemáticas, e essa revolução silenciosa assegurou a fórmula média de não mais de dois filhos. Não há como responder que a nossa sociedade emprestou uma legitimidade complacente às decisões silenciosas das mulheres que as levaram às parteiras e obstetras e depois aos ginecologistas profissionais, embora talvez na maioria dos casos lhes faltasse a ajuda destas terapêuticas higienicas.
Não podemos deixar de advertir o comportamento dos tribunais judiciais que mantiveram uma espécie de "cone de reserva", como evidenciado por nossa jurisprudência,o que poderia ser visto como uma espécie de prudência jurídica. Essa circunstância manifestou-se de maneira particular em relação ao "segredo profissional" na conhecida "Natividad Frías", decisão da sessão plenária da Câmara Nacional de Apelações Penais e Correcionais da Capital Federal de agosto de 1966. Porém, também houve falhas draconianas às decisões orientadas pela sentença na chave da modelagem penal.
O certo é que além do impedimento legal e da condenação eclesiástica foi levantado um mundo de transgressões, mas uma autêntica diferença de classes divide-se às mulheres entre as quais podem abortar com todas as garantias e as que não têm mais remédio e que correm o risco de morrer durante um aborto. É ameaçador concordar com o resultado homicida produzido por essa diferença. Não podemos deixar de pensar que há uma forma silenciosa e não menos aberrante da pena de morte: aquela sofrida por mulheres sem recursos devido a um aborto.
Todos os países católicos da Europa legalizaram o aborto removendo seu estigma de crime enquanto nossos países latino-americanos - exceto Cuba, a Cidade do México e o Uruguai - atrasam a descriminalização. A grande maioria dos que se opõem à interrupção voluntária da gravidez o fazem em termos religiosos e brandem o direito à vida. Na era da clonagem, a vida não tem desperdício, pois sabemos que ela pode ser reproduzida mesmo com poucas células. Eu estou entre aquelas que defendem o aborto legal, enfatizando o direito ao gozo sexual, separando-o da reprodução e tenho a prerrogativa do aborto de igualar as condições do exercício da sexualidade diferencial entre homens e mulheres. O sexo não engravida os homens - a menos que sejam anatomicamente no caso de pessoas transexuais - ou transforma radicalmente a vida. Mas a gravidez muda a vida de qualquer mulher e a altera desde o momento da relação sexual, porque basta estar na experiência de cada mulher em idade fértil para entender que o ato sexual não pode ser liberado da sombra da gravidez, embora todas as precauções sejam tomadas "responsavelmente".
Uma noção elementar de soberania, característica das modernas sociedades democráticas e encontrada na própria base da idéia do indivíduo, deve ser baseada na capacidade de decidir sobre nossos corpos; É a sociedade que deve concordar com este princípio do "direito ao corpo", porque se não o fizer, é certamente menos democrático.
Finalmente, se é dificil reconhecer a legalidade do aborto como uma contribuição fundamental para a vida dos menos protegidos e dos mais pobres, aqueles que sofrem restrições e quase certamente são menos autônomos, eu o faço mais enfaticamente em nome dos direitos fundamentais das mulheres. A gravidez é uma contingência, não pode ser uma fatalidade. Legalizar o aborto é um passo transcendental para obter uma sociedade mais igualitária, mais democrática e, finalmente, mais humana. Sim, estamos de acordo, trata-se de defender a vida, a "vida digna de ser vivida".
*Matheus Maciel é Advogado, Especialista em Direito Processual Civil e Assessor Especial da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas.