4. COMPREENDENDO LOGICAMENTE OS INDÍCIOS À LUZ DAS LIÇÕES DE MALATESTA
Tratar de lógica de provas - no caso, de indícios - sem dar atenção à doutrina de Nicola Framarino Dei Malatesta é o mesmo que analisar a teoria da relatividade sem dedicar-se aos conceitos de Albert Einstein. Na verdade, é mais além: é como falar de Sheakspeare sem ler Hamlet.
Em seu indispensável “A Lógica das Provas em Matéria Criminal” (MALATESTA, 1996, p. 197), ao tratar especificamente sobre a temática dos indícios, questiona, retoricamente, a “força substancial do indício”:
“Mas qual a força substancial do indício? A medida desta força só pode encontrar-se na natureza íntima da prova que examinamos, natureza íntima que determinamos numa relação específica de causalidade. É necessário, por isso, para conhecer a força probatória do indício, investigar, em particular, a força da relação específica de causalidade que nele liga o desconhecido ao conhecido.”
E, a seguir, persiste o doutrinador italiano, ícone da matéria da lógica das provas:
“No indício, a coisa apresentada como desconhecida é sempre diversa da desconhecida, que se faz conhecer. Ora, uma coisa conhecida só nos pode provar uma diversa coisa desconhecida, quando se nos apresente como sua causa ou efeito, porquanto entre coisas diversas não há, conforme demonstramos, senão a relação de causalidade, capaz de conduzir uma a outra. A coisa conhecida, que, enquanto serve para indicar a desconhecida, por chamar-se também de coisa indicante, pode apresentar-se tanto como causa quanto efeito e esta coisa indicante pode consistir num fato interno da consciência ou externo do mundo.”
O indício é, por assim dizer, a mera silhueta de determinada prova concretamente vista ao longe, de modo que, tais linhas, por imprecisas, devem ser confirmadas – ou não – após rigorosa valoração de tal(is) elemento(s) na investigação penal. E tal “valoração”, na linha do que determina a lição de Malatesta, deve, necessariamente, passar pela análise aprofundada de cada item trazido à investigação, particularmente.
De certo modo, preceitua MALATESTA que deverá, sempre, ser promovida a investigação do indício da investigação (repetição proposital).
Persistindo na especifica análise da matéria, assevera o tratadista italiano que muito embora descaiba elevar os indícios ao patamar de protagonismo, por outro lado, constitui desacerto excluí-los da trilha lógica que conduz às conclusões da investigação criminal:
“Os indícios não merecem, certamente, uma apoteoso, mas também não merecem a excomunhão maior. É preciso ter cautela na sua afirmação; mas não se pode negar que a certeza, muitas vezes, pode provir deles. E isso, é claro, quando se pensa que entre os indícios também se encontram os necessários. Suponhamos que Tício tenha estado por um ano na América, longe de sua mulher, que ficou na Itália; suponhamos que, ao fim desse período, regressando, encontre-a grávida: não lhes parece que Tício deve estar legitimamente certo do adultério de sua mulher? Não parece que outra pessoa, sabendo do afastamento de Tício durante todo aquele tempo, deve legitimamente ter a mesma certeza? E atentem que nem todos os indícios de certeza se apresentam como tais no princípio do julgamento; há indícios de probabilidade que, no decurso do juízo, pela superveniência de outras provas, tornam-se provas de certeza. E isto acontece quando as provas supervenientes excluem todas as hipóteses, exceto uma, que se refere ao indício de probabilidade, caso em que aquela hipótese fica sendo a única necessária do indício.”
Aqui, percebe-se que, à luz do que ensina MALATESTA, toda a valoração lógica do indício deverá, necessariamente, passar pelo filtro de sua “qualidade”, para fins de que seja possível confirmar – ou mesmo infirmar – se o fato apontado como indicativo de outro é, deveras, fonte segura para a indução desta conclusão ou se, contrário disso, trata-se de simples evento cotidiano que, cromado por presunções, brilha como uma miragem, a exemplo de um oásis em meio ao deserto para aquele que quase sucumbe de sede.
A esse respeito, destaca-se que, muito embora o Código de Processo Penal, em seu art. 155 12 , vede a condenação exclusivamente fundada em meros indícios obtidos na investigação preliminar, impende atentar que, no mesmo dispositivo há direta menção à admissibilidade de tais elementos acaso sejam provas13 cautelares, não repetíveis e antecipadas, o que, acaba, sobremaneira, por refletir diretamente a lição de MALATESTA, no rumo de que é sim possível que determinados indícios, a depender de sua especialidade, adquiram qualidade de prova legalmente motivante.
Obviamente que a constatação – ou não – da presença dos requisitos do art. 239 do CPP, em relação à circunstância apontada por indiciária é o primeiro passo para que se possa atingir, com a segurança exigida em direito criminal, a certeza de sua plausibilidade para a finalidade da investigação que almeja a verdade (processual).
Sendo assim, o exercício primário a ser praticado para que a causa fática examinada seja qualificada como indício é a confirmação de que a circunstância, além de conhecida e provada , possui relação direta ou indireta com o fato e permita, em juízo lógico de plausibilidade , induzir a conclusão de outra(s) circunstância(s) correlacionada(a) ao delito apurado. Se faltar à circunstância algum dos caracteres enunciados no dispositivo legal, descarta-se sua pertinência como indício.
Por conseguinte, identificado o enquadramento do fato ao conceito do art. 239 do CPP, impositivo se faz definir, na medida do possível, o grau de certeza que reside em relação ao indício para que, a este, seja conferida maior ou menor credibilidade e, a partir daí, seja possível persistir rumo à verdade. E para que isso seja possível, MALATESTA propõe dentre outras tantas divisões, a classificação dos indícios em verossímil , provável e probabilíssimo (1996, p. 201), ressaltando, de imediato, a dificuldade de efetivar-se tal graduação no mundo real:
“Restam, pois, como indícios contingentes os prováveis. Ora, os indícios prováveis podem subclassificar-se do mesmo ponto de vista de seu valor probatório? Nós, falando de probabilidade, demonstramos que, enquanto ela é graduável, sua graduação não é determinável em termos fixos e dissemos que, se se pode falar de uma mínima, uma média e uma máxima probabilidade, que chamamos o verossímil, o provável e o probabilíssimo, não se pode, por isso, determinar os limites precisos que separam estes graus, um do outro.
[…]
Recapitulando: o estudo da relação de causalidade no raciocínio indicativo, estudo destinado a conhecer a força probatória dos indícios, levou-nos a uma primeira distinção fundamental destes raciocínios, em relação ao valor probatório: indícios necessários, prováveis e verossímeis. Mas esta distinção, referente ao valor que, no que diz respeito à grande massa dos indícios contingentes, não é determinável em termos fixos, não satisfaz por completo às necessidades da ciência. A ciência tem necessidade de uma distinção que parte de critério substancial e determinado, tal que, dado um indício, este deva subordinar-se-lhe seguramente e sem deslocamentos possíveis.”
Particularmente nesse aspecto, infere-se da lição de MALATESTA que, não obstante abstratamente possível, no plano fático, a ordenação dos indícios de acordo com seu grau de credibilidade não é matéria simples, dadas as inúmeras variáveis que, tanto em grau objetivo, quando especialmente em nível subjetivo, surgem em meio à investigação penal.
Tem-se, pois, como síntese, que a classificação dos indícios proposta por MALATESTA funciona, basicamente, como ferramenta intelectual extremamente conveniente ao investigador, servindo tal especificação como verdadeiro mecanismo de otimização de sua avaliação em relação às circunstâncias examinadas.
Finalmente – apesar de, necessário dizer, não se ter qualquer pretensão de esgotamento da matéria, o que se sabe não se ter feito –, a última das reflexões indispensáveis e básicas para a aferição lógica da qualidade dos indícios reside na manutenção permanente da dúvida como guia : todo e qualquer indício ou prova deve, sempre e necessariamente, estar sob desconfiança, à luz da dúvida, da incerteza.
Com efeito, os maiores erros emanados pelo Poder Judiciário decorrerem de cegas certezas e somente foram sanados após o incansável exercício da dúvida. Cite-se, aqui, como exemplo concreto, o titulado “Caso dos Irmãos Naves”: dois irmãos, absolutamente inocentes, suportaram o cárcere e o opróbrio social e familiar, por conta de terem matado um parente que sequer havia morrido (ironia proposital). Enquanto os condenados, com a certeza de suas inocências , agonizavam presos e sobreviviam descalços sob o frio chão da certeza judicial , as fundadas dúvidas suscitadas pela defesa em relação às imputações foram sumariamente desprezadas14 e só muito tempo depois admitidas.
Por óbvio que, fixar-se na ideia de que a certeza é uma simples quimera, além de constituir, a nosso ver, evidente premissa equivocada, fatalmente redundaria no total engessamento do sistema processual penal, tornando a legislação punitiva letra morta.
Contudo, contrariamente ao que possam julgar prematuras interpretações, a evocação da dúvida como razão permanente 15 para fins de análise lógica dos indícios visa, essencialmente, infundir tal método de raciocínio na perspectiva de qualquer pessoa que, especialmente em meio à investigação criminal, depare-se com circunstâncias nas quais lhe seja demandada a aplicação de juízo de valor.
A constante exposição do fato à dúvida, necessariamente, traz consigo essenciais reflexões acerca do quão próximo – ou distante da verdade – se está e, com isso, consequentemente, se a sanção a ser aplicada em função de tais conclusões resultará – ou não – em uma injustiça.
Sobre a funcionalidade do necessário exercício da dúvida investigadora em matéria de lógica criminal, impõe-se novamente atentar para a lição de MALATESTA (1996, p. 196-197):
“Duvidar sempre é mais fácil que afirmar, quando se quer assentar na dúvida. Por isso, o lado da dúvida investigadora, da dúvida que não descansa, da dúvida dos espíritos fortes, dúvida que se resolve na tendência para a afirmação racional, há outra espécie de dúvida: uma dúvida inerte, que não tende a coisa alguma e na qual se acalenta a grande massa dos espíritos fracos, dúvida que é filha natural da inércia do pensamento e constitui cômoda ciência dos indolentes. Mas quem escreve em matéria científica, não se consente semelhante preguiça. Tem a obrigação de apurar e combater os erros dos escritores que o precederam; como os que lhe seguirem combaterão os seus. O campo dos erros vai-se restringindo, desta forma e o da verdade, alargando-se. A razão humana, por um progresso incessante, vai-se aproximando cada vez mais daquela elevada e completa harmonia das verdades, a nobre aspiração da inteligência humana.”.
Desse modo, toda e qualquer certeza deve estar, sempre e invariavelmente, sob a mira de uma dúvida, jamais repousando a convicção em berço esplêndido. A certeza, deve suportar, sempre, o desconforto da quesitação permanente de sua própria (in)existência. É dizer, em resumo que toda a certeza não passa de uma dúvida sob causa suspensiva.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em remate, como proposto no presente trabalho, a questão da lógica aplicada em relação aos indícios, muito embora possua alta carga de subjetividade, deve, imprescindivelmente, ser objeto de dedicada preocupação em matéria penal, uma vez que, eventuais “vícios de interpretação” são, geralmente, determinantes para a ocorrência de graves erros judiciais, os quais podem se dar em menor escala (i.e. denúncia de pessoa inocente com final absolvição) ou de modo mais severo e irreversível (i.e. condenação de inocente).
Desse modo, superando as dificuldades inerentes à tamanha abstratividade que envolve o tema, é indispensável que, servindo-se dos mecanismos lógicos já apurados pela ciência jurídica – tais como, por exemplo, os aqui elencados – e, sempre, empregando no exercício da atividade cognitiva a responsabilidade superlativa imprescindível ao desempenho de quem atua na área criminal, o investigador16 prime pela superação dos vícios de simplificação da análise dos indícios e, a partir daí, possa substancialmente otimizar a persecução penal desde sua fase preliminar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13. ed. rev. e atual. Saraiva. São Paulo, 2006.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8. ed. rev., atual. e ampl. Saraiva. São Paulo, 2010.
MALATESTA, Nicola Framarino Dei Malatesta. A Lógica das Provas em Matéria Criminal. Tradução da 3ª Edição, de 1912. Bookseller. São Paulo, 1996.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 16. ed. rev. e atual. até janeiro de 2004. Atlas. São Paulo, 2004.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2005.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7. ed. rev. atual e ampl. Del Rey. Belo Horizonte, 2007.
TOCHETTO, Domingos. Balística Forense: aspectos técnicos e jurídicos. 6. ed. Millennium. Campinas, 2011.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado, volume 1. 8. ed. rev. , aum. e atual. Saraiva. São Paulo, 2004.
Notas
1 Sobre o exame residuográfico e sua importância, Domingos Tochetto (2011, p. 285):”A utilização cada vez maior dos exames residuográficos para identificar a presença de resíduos de um tiro, visando a identificar o autor de um tiro ou estabelecer um diferencial entre a ocorrência de homicídio ou suicídio, dá uma relevância muito significativa a esse tipo de exame.”.
2 A questão afeta ao uso do termo “dedução” ao invés de “indução” será abordada no tópico reservado à análise doutrinária do tema.
3 ARTIGO 182 (Conceito de indício)
182.1 Indícios são as coisas, estados ou eventos pessoais ou materiais, ocorridos ou em andamento, capazes de convencer, até certo ponto, sobre a veracidade das declarações ou a existência de um fato que é objeto do processo, uma vez que não constituem prova definitiva.
182.2 Para que os indícios sirvam de base a uma decisão judicial, deverão estar plenamente comprovados, serem inequívocos e ligarem lógica e ininterruptamente o ponto de partida à conclusão probatória.
4 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13. ed. rev. e atual. Saraiva. São Paulo, 2006.
5 FILHO, Fernando da Costa Tourinho Filho. Código de Processo Penal Comentado, volume 1. 8. ed. rev. , aum. e atual. Saraiva. São Paulo, 2004.
6 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2005.
7 GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8. ed. rev., atual. e ampl. Saraiva. São Paulo, 2010.
8 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7. ed. rev. atual e ampl. Del Rey. Belo Horizonte, 2007.
9 Tal como puramente acontece quando um indício surge como elemento inicial da investigação criminal – ainda que em meio a esta, prefigurando novas conclusões possíveis.
10 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 16. ed. rev. e atual. até janeiro de 2004. Atlas. São Paulo, 2004.
11 O termo investigador, aqui, compreende todo e qualquer ator processual – ou mesmo pré-processual – que imprima juízo valorativo sobre o fato em apuração.
12 Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
13 No caso, apesar de utilizar-se do termo prova, viável encarar a questão pela perspectiva do tema do presente trabalho, na medida em que, os elementos cognitivos colhidos na fase preliminar, até que sejam expostos ao contraditório e à ampla defesa na fase judicial, constituem-se de verdadeiros indícios, ainda que sua cautelaridade, irrepetibilidade ou antecipação lhes atribua inegável qualificação especial.
14 Aliás, se você não conhece a história, sugiro que pesquise para que tenha a dimensão da injustiça cometida.
15 Referência indireta – porém específica – aqui, ao conceito de “dúvida hiperbólica ” proveniente da filosofia cartesiana.
16 A referência a “investigador”, novamente, está situada em tom genérico, porquanto relacionada a ideia de que todo o indivíduo que atua na persecução penal investiga o fato objetivado nela.